Percepção, corpo e cegueira

Novos corpos em cena

Afinal qual seria a finalidade da arte? Nos entreter? Nos tornar cidadãos? Nos transformar? Podemos identificar nos dias atuais a arte atendendo as mais diversificadas expectativas da sociedade. Também se verifica o público sendo convidado a tomar parte do espetáculo, dar a sua contribuição e trazer as suas experiências. Essa configuração entre o artista e sua audiência suscita várias questões, algumas gostaria de explorar, nesse ensaio, por exemplo, qual é a atitude do espectador diante do corpo estigmatizado que dança? Ou que tipo de experiência estética o dançarino cego nos convida a tomar parte? E uma última, quais são as relações entre cegueira, escuridão e invisibilidade. Essas indagações vêm em decorrência da observação atenta do crescente movimento de trabalhos artísticos envolvendo pessoas com diferenças físicas e sensoriais que estão acontecendo em vários países nas últimas décadas. Evidencia-se uma série de Encontros, Mostras, Festivais, Congressos, organizados com a finalidade de apresentação e discussão de trabalhos, contando com a participação de profissionais vinculados a diversos setores da sociedade: artistas, educadores, pesquisadores, produtores, agências públicas de fomento, dentre outros.

Com o intuito de examinar esse fenômeno desenvolvi um estudo comparativo envolvendo os países Brasil e Inglaterra (Freire, 2002). Os dados foram coletados nos dois países, através de entrevistas, bibliografia e participação em eventos relacionados ao tema. Assim, por exemplo, no que se refere aos grupos de artes expressivas com artistas com diferenças físicas e sensoriais foi possível identificar uma variedade de propostas, revelando uma complexa rede de possibilidades de análise. Envolvendo, desde políticas de inclusão social, passando pela formação em artes, chegando à questão dos mesmos como consumidores. Também tive a oportunidade de conhecer mais de perto o trabalho de três companhias de dança; cujos trabalhos se caracterizam como experimental, identifiquei, primeiramente, que para Bock & Vincenzi Dance Co. a cegueira é proposta como pesquisa perceptiva. Já na Felix Ruckert Dance Co. a experiência foi apreender a relação de intimidade/ estranhamento entre público e dançarino; por último, na companhia CandoCo o destaque se deu na busca de movimentos específicos para o corpo diferente dançar. Considerando que o tema dessa conferência busca refletir sobre o rompimento de fronteiras no contexto da dança, proponho examinar o fenômeno decorrente da relação entre artista com cegueira e audiência, tendo como ilustração minhas experiências com o projeto invisible dances… desenvolvido por Frank Bock e Simon Vincenzi e Tim Gebbels.

Espectador: ver para conhecer

Chegou o arauto, acompanhado do fiel aedo, entre todos querido da Musa, a qual lhe dera, a um tempo, o bem e o mal, pois o privara da vista e lhe concedera o melodioso canto. (HOMERO, Odisséia, 101)

Na tradição do pensamento filosófico ocidental, no vocabulário grego a palavra conhecer é derivada da palavra ver, ou seja, primeiro você vê e depois você conhece. Também se é possível, identificar que o termo filosófico teoria deriva da palavra grega que designa espectadores, theatai; ou teórico, o qual séculos atrás, significava contemplando, ou seja observar do exterior. Pode se identificar a distinção entre agir e compreender. O espectador pode compreender o espetáculo em virtude de sua posição externa, que lhe permite ver a cena toda. Filosofar, o verbo e não o substantivo, é apresentado pela primeira vez quando Sólon, após ter promulgado as leis de Atenas, partiu em viagem durante dez anos, tanto por razões políticas como também para ver o mundo – theorein. Ao chegar em Sárdia, Creso lhe perguntou: Estrangeiro, as notícias sobre sua sabedoria e suas andanças chegaram até nós, dizendo que você percorreu muitos países da Terra filosofando sobre os espetáculos que viu. (ARENDT, 1991, 124).

Na tradição romana, verifica-se a perda dessa relevância filosófica do espectador. Como indica Arendt (op. cit. 106) os espectadores romanos não estavam mais situados nas últimas filas de um teatro de onde eles, como deuses, poderiam olhar, lá embaixo, o jogo do mundo. Agora o seu lugar era a costa, ou o porto seguro de onde poderiam observar, sem correr riscos, a agitação selvagem e imprevisível do mar varrido pela tempestade. O que se perdeu, além do privilégio do espectador de julgar e do contraste de pensar e fazer, foi a percepção imbuída no fenômeno que toda aparência demanda espectador. Essa é a postura do espectador, que a Idade Moderna herdou e que parece ainda hoje guiar as atitudes frente à diferença – uma distância nobre e vantajosa.

No entanto, a ação criadora é transformadora. A dança contemporânea, por exemplo, tem proposto um novo papel para o espectador. Esse é convidado, de surpresa a tomar parte nos espetáculos. Outras vezes, vai assistir os espetáculos, que em vez de lhe proporcionar entretenimento, o faz pensar sobre si próprio e os outros. O espectador é provocado a ver para conhecer. Entrar em contato com o mundo, como fez Sólon para daí filosofar sobre o que viu. Lembrar que a pluralidade é a lei da terra.

Jornadas: cegueira não é escuridão;

Como toda a gente provavelmente o fez, jogar algumas vezes consigo mesmo, na adolescência, ao jogo do E seu fosse cego, e chegara à conclusão, ao cabo de cinco minutos com os olhos fechados, de que a cegueira, sem dúvida alguma uma terrível desgraça (…) Chegara mesmo ao ponto de pensar que a escuridão em que o cegos viviam não era, afinal, senão a simples ausência da luz, que o que chamamos cegueira era algo que se limitava a cobrir a aparência dos seres e das coisas, deixando-os intactos por trás do seu véu negro. (SARAMAGO, 1995 p. 19)

É muito comum associarmos cegueira com escuridão, como exemplifica a citação de Saramago. Mas essa analogia pode ser equivocada. Com o interesse de saber como uma pessoa que não enxerga pode contribuir para a nossa compreensão da percepção Frank Bock e Simon Vincenzi, incluíram no projeto Invisible dances… a participação de artistas com cegueira. Indaguei-os sobre a cegueira e eles responderam, que primeiramente eles constataram rapidamente que cada indivíduo tem sua especificidade, pois, não é possível generalizar que qualquer artista cego, faça determinadas coisas e que tenha certas experiências. Outro ponto que os surpreenderam foi com a memória que alguns deles têm, referindo-se a uma performer que perdeu a visão há vinte anos atrás e que ainda mantinha uma forte lembrança de movimentos e do vocabulário da linguagem corporal de quem vê. Como se há de verificar, posteriormente nesse texto, e como o próprio nome do projeto já sugere, que a cegueira se trata mais de invisibilidade que de escuridão.

Para Tim Gebbels, ser cego diz respeito a ter menos informação sobre uma certa situação em comparação com uma outra pessoa que pode ver essa situação. Tim tem trinta e quatro anos, o ver e o não ver fazem parte de sua vida, o fato de ter nascido com glaucoma, em ambos os olhos, favoreceu que ele tivesse que ver o mundo com uma visão residual, além de, durante a sua infância ter que submeter-se com certa freqüência a várias cirurgias. Após os seis anos de idade ele, deixa de ver e passa a ser visto. Atualmente, vive em Londres, trabalha como ator/dançarino, freqüentemente é contratado por companhias profissionais de teatro e de dança.
Em entrevista, perguntei sobre o fato de ser visto Tim responde que tudo bem em ser visto durante uma encenação, obviamente as pessoas vão para assistir um espetáculo, ser visto é parte do contrato. O diretor, ao passar uma coreografia também precisa ver o que e como está sendo realizada a atividade. Mas, na vida real, fora do teatro, ele diz sobre o descompasso de não ver e ser visto. Pois para Tim, ver alguém dá muito poder para os outros; apresentando a equação constata que na vida cotidiana geralmente as relações são balanceadas A pode ver B; B pode ver A. No caso dele, pode ser visto mas não pode ver quem está vendo-o. Admite assim, que a pessoa que está olhando para ele tem mais informação a respeito dele do que ele a respeito dela. Tim comenta sobre não poder fazer julgamentos, por exemplo, da linguagem corporal de uma pessoa. Nota que é uma relação de poder de única via, que isso não é sempre um problema, mas às vezes, as pessoas podem fazer mal uso desse poder, sem perceber e isso caracteriza-se como uma questão séria.

Por outro lado, essa experiência com a cegueira faz que Tim, assim como outros artistas com cegueira, tenham um estilo peculiar de vincular percepção, tempo-espaço e movimento, características que chamaram a atenção de Bock & Vincenzi. Frank Bock, argumenta que a disposição de aprender essa forma de se mover de Tim Gebbels, por exemplo, não está relacionado como um modo de fazer um turismo na deficiência, uma jornada na terra dos cegos, mas num esforço de pesquisar aqueles elementos da dança que são difíceis ou somos resistentes em representar (HARGREAVES, 2001). O processo e o produto dessa experimentação vão propor um novo papel para o expectador. A proposição não se materializa somente no que diz respeito ao corpo do artista, como também, em relação aos corpos da audiência.

Danças invisíveis: desafios para o espectador

Sou membro e pastor de uma igreja em que cego não vê e o aleijado não anda e o que está morto fica morto. (O’CONNOR, Sangue Sábio, 109)

O corpo diferente está em cena: na literatura, nas telas do cinema, nos palcos de dança, nos teatros, museus e galerias de arte. Artistas, muitas vezes apresentados por ou para nós como pessoas com corpos estigmatizados, buscam a compreensão através da arte, tentam reconciliar com a realidade que insiste em negar-lhes o direito de uma vida digna. Suas ações criativas os inserem no mundo concebendo um segundo nascimento, original e singular.

Mas aos olhos do espectador, a diferença ainda pode parecer inquietante. Vejamos, como argumenta Arendt (op. cit. 17) nada e ninguém existe neste mundo cujo próprio ser não pressuponha um espectador, por conseguinte, explica a autora: o fato de que as aparências sempre exigem espectadores e, por isso, sempre implicam um reconhecimento e uma admissão pelo menos potenciais, tem conseqüências de longo alcance para o que nós –seres que aparecem em um mundo de aparências – entendemos por realidade – tanto nossa quanto a do mundo. A rejeição ou a comoção do público frente à diferença pode ser interpretada como um não reconhecimento, uma negação à realidade, apresentada como pluralidade humana.

Atualmente, vários artistas, tais como Bock & Vincenzi, ou mesmo Felix Ruckert, utilizam a experiência direta e incluem seus observadores na cena transformando-os em sujeitos. Identifica-se o surgimento de insólitas confrontações no contexto das artes, espaço esse muitas vezes visto como tipicamente distinto da vida real. Essas experiências estéticas, pelo modo que se apresentam, primeiramente desafiam a atitude passiva do observador, em segundo lugar problematizam a perspectiva de tratar o diferente como não-belo.Tim Gebbels comprova a atitude acentuada por parte dos espectadores de que a deficiência é feia, inquietante ou simplesmente não é bela. O corpo diferente em encenação faz que o espectador tenha que rever seu julgamento sobre o que é o belo. Pois o que está sendo apresentado ali é muito mais além do que o evidente. O olhar fenomenológico sugere que o espectador veja, observe várias vezes aquele corpo ali em cena. Veja-o em diferentes perspectivas e distâncias. Olhe atentamente, preste atenção nas partes e no todo.

O trabalho da companhia Bock & Vincenzi, não é somente mostrar alguma coisa, mas preparar uma situação no espaço onde as pessoas ali presentes tenham que oferecer algo de si para apreenderem a experiência. Eles geralmente não dizem: Bem, isto é o que nós fazemos. Mas, sim: Bem, isso é o que está acontecendo. Então, convida a audiência para que dêem de si e interpretem isso. Assim apresentam mais perguntas do que respostas.

Para exemplificar, relatarei a seguir uma das minhas experiências com o trabalho dessa companhia, que intitulei jornadas no espaço-tempo: composição coreográfica.

Observo que Frank coloca os biombos nas janelas, deixando a sala iluminada somente com a luz artificial. Simon explica para Tim e Frank o trabalho e a relação com o espaço. Tim faz reconhecimento do espaço, atenta, com os pés, para as emendas do piso, a localização dos aquecedores, o rack da TV, mesas, cadeiras. Frank, colocando uma venda nos olhos, caminha em direção ao interruptor de luz. Simon me entrega uma venda e avisa que ninguém ia ver nada, porque estaríamos usando venda nos olhos também. Inicia-se o trabalho.
Após um certo período de tempo tiramos as vendas e fizemos alguns comentários sobre a experiência. Tim disse que o fato de não estar sendo visto trouxe-lhe uma certa inquietação em relação à sua segurança. Frank comenta sobre o papel de ser passivo, infiro que a pessoa que vê, no escuro assume um papel mais receptivo. Nessa experiência, um aspecto esclarecedor sobre a simulação foi desvelado. Frank explicita que o uso da venda não nos torna cegos, mas nos favorece a experimentar a escuridão. Simon comenta sobre sua preocupação moral e as questões éticas que tais experiências podem desencadear. Tim destaca que, nessas circunstâncias, a recriação do movimento se pauta em mais detalhes daquilo que foi memorizado do que na forma do movimento. Frank discute o ver e o ser visto, disse que poderia fazer melhor já que a audiência não esta vendo. Tim alerta para a expectativa da audiência. Tanto para Tim como para Frank a experiência foi considerada mais uma jornada no espaço que exploração de movimentos.

Para mim, foi uma jornada no tempo. Comentei que a experiência me pegou de surpresa, que tive dificuldade de me concentrar, que percebi alguns movimentos; que veio algumas imagens de luzes, bolinhas coloridas nos olhos, calor nas orelhas em virtude do aperto da venda…me encolhia à medida que sentia que alguém se aproximava, com medo de machucar ou ser machucada. À medida que a discussão se dava, comecei a reconhecer que já havia tido aquela experiência. Foi quando lembrei de um acidente que sofri anos atrás em São Paulo…Narrei o acontecimento…surpresa, como que despertei uma parte adormecida do meu passado. Lembrei-me da velocidade do carro opondo-se violentamente ao trânsito parado, eu estava cansada, crash…escuridão total… as imagens das violetas, cores vibrantes… As pessoas me chamavam…Ida…eu não sabia quem eu era… Você é a Ida… tentavam insistentemente me convencer… Desesperadamente, considerei que seria minha falência perder a memória, todo o meu conhecimento estava ali, no meu cérebro … aos poucos recuperei minha identidade. [Diário de campo, 18/02/02 4:03 PM]

Diferentemente do trabalho de Felix Ruckert, por exemplo, o material que Frank Bock e Simon Vincenzi, não é a narrativa ou a autobiografia, ainda que os mesmos se guiem a partir da experiência pessoal, o elemento é a percepção. O público é convidado a fazer a sua própria jornada. A dança vinculada com a narrativa pessoal, como analisa Albrigth (1997), propõe que o expectador transforme-se numa testemunha. No meu entender e a partir da minha própria experiência o que Bock, Vincenzi e Gebbels proporcionam não seria somente a transformação do papel de expectador como também da sua própria experiência de observar.

Conclusão

A distância nobre do espectador constitui-se num obstáculo tanto para que ele como para o outro se reconciliem com a realidade e possam sentir-se em casa no mundo. A dança contemporânea, aqui exemplificada pelos trabalhos de Bock, Vincenzi e Gebbels, longe de se caracterizar como um entretenimento ou mesmo dar conta de uma agenda política de inclusão social, convida a audiência a ver ou a não ver para então conhecer. Nesse sentido, o que arte nos oferece é a liberdade de expressão. Nossas palavras e nossos atos criam a nosso existir no mundo, de modo que, podemos compreender os nossos processos de vida, vivendo como seres distintos e singulares entre iguais.

Notas

(1) Esse trabalho deriva do estágio pós-doutoral realizado na The University of Nottingham, em 2001-2002, com o apoio da CAPES. Agradeço a Tim Gebbels, Frank Bock, Simon Vincenzi, e Jane Greenfield pelas entrevistas e as oportunidades de explorar o invisível.
(2) Os conteúdos das entrevistas e os textos em Inglês foram livremente traduzidos por mim.
Bibliografia

ALBRIGHT, A. (1997) Choreographing difference: the body and identity in contemporary dance. Hanover and London, Wesleyan University Press.
ARENDT, H. (1995) A condição humana. Rio de Janeiro, Forense Universitária.
ARENDT, H. (1991) A vida do espírito. Rio de Janeiro, Relume- Dumará.
ARENDT, H. (1993) O que é filosofia da Existenz? In: H. Arendt; A dignidade da política. Rio de Janeiro, Relume-Dumará.
BOCK,F. e VINCENZI, S. (2002) Invisible dances
http://www.artsadmin.co.uk/artists/bv/invisibledancestext.html
FREIRE, I. M. (2002) Múltiplos corpos e Arte expressivas: dança, movimento-educação e conceito de tempo e espaço para estudantes com cegueira e baixa visão. (relatório final) Nottingham.
HARGREAVES, M. (2001) Engaging absence; London: Dance theatre journal; vol. 17, n.2.
HOMERO, (2002) Odisséia. São Paulo, Nova Cultural.
KOKÿK, E. V. (1978) Idea and experience. Chicago, University of Chicago.
O’CONNOR, F. (2002) Sangue Sábio. São Paulo, Arx.
SARAMAGO, J. (1995) Ensaio sobre a cegueira. São Paulo. Companhia das letras.

* Ida Mara Freire: Professora do Centro de Ciências da Educação da UFSC. Diretora do Grupo de Dança Potlach (com dançarinos com e sem cegueira); Formação: Especialização em Dança Cênica, Pós-Doutorado na University of Nottingham. Membro do conselho editorial do Research In Dance Education.