Performatividade e política | Performativity and politics

Trecho da dissertação "Aquilo de que somos feitos", de Lia Rodrigues: corpo, política, dança e discurso, defendida em abril de 2005 no Centro de Letras e Artes da Universidade do Rio de Janeiro (UNI-RIO), sob orientação do professor Luis Camillo Osório.

Buscar elucidar as formas de uma "performatividade política" em Aquilo de que somos feitos, de Lia Rodrigues, é a questão central deste trabalho.

Dorothea von Hantelmann (1), em seu artigo "Specifcness, again" evoca Clement Greenberg e sua crença modernista de que cada mídia possui uma significação interna específica, mas vai além dele ao postular que esta significação se caracteriza por uma dimensão produtiva, que ela denomina "performativa": "Cada mídia produz uma situação específica de percepção, na qual os corpos são colocados uns com os outros, induzindo portanto sempre a uma dimensão social e política" (2002, p.132).

Ao contrário de endossar a idéia de uma arte autônoma, como propunha o modernismo greenbergiano, a valorização da especificidade da mídia contribuiria para articular, de forma indissociável, o sensível e o político. Se uma mídia não é somente veículo de um conteúdo, mas sua forma prefigura o conteúdo, a escolha de uma mídia artística é sempre uma escolha política, uma tomada de partido. A especificidade de uma mídia é justamente a performance que ela inicia, as implicações sociais e políticas que ela infere, as relações que ela propõe entre obra e espectador. Esta noção da importância da dimensão produtiva de uma obra de arte (2) se articula diretamente com o conceito de política desenvolvido pelo filósofo Jacques Rancière, segundo o qual política não é um estado fixo e institucionalizado, mas está ligado à ação, sendo, portanto, fundamentalmente, um ato performativo: "Política não é o exercício de poder. Política deve ser definida em si mesma, como um modo específico de ação colocado em prática por um tipo particular de sujeito e derivado de um tipo particular de racionalidade". (3)

Jacques Rancière faz uma distinção entre "police – o conjunto de regras que definem as formas de agir, de ser e de dizer" (Rancière apud Hantelmann, 2002, p.134) – e política – o que movimenta e tensiona estas regras: "Podemos definir como política a atividade que desloca um corpo do lugar que lhe estava atribuído, que subverte uma função, que mostra o que não havia para ser visto, que faz entender como discurso o que só era percebido como ruído" (Hantelmann, 2002, p.135).

Esta definição de política como uma instância na qual um conflito não é apenas representado mas na qual esta representação também cria uma tensão com suas próprias regras, será usado por von Hantelmann para fazer uma distinção (especialmente válida para a análise de Aquilo de que somos feitos), entre os sistemas de representação em arte. Segundo esta autora (4), algumas obras de arte, que se pretendem politicamente críticas, reduzem a representação à dimensão estética. O conteúdo sociopolítico em questão é representado, mas o potencial de transformação da arte não é ativado. Em contraposição, outras obras ativam sua potência política através de um caráter predominantemente performativo, interferindo diretamente na forma como se organizam as subjetividades e suas relações. Estas últimas nos permitiriam enxergar o espaço artístico como lugar que não se restringe a representar e comentar a sociedade, mas que atua na sua produção, criando novas formas de subjetividade política.

Esta discussão de Von Hantelmann, a partir de Rancière, é interessante para se pensar as formas da politicidade em Aquilo de que somos feitos.
Uma primeira análise distingue duas camadas: uma mais evidente e explícita, presente sobretudo na segunda parte do espetáculo e no "Empilhamento" de corpos, que se dá através da escolha de um tema e um discurso já reconhecidos socialmente como políticos – e aí se situam as citações/representações das manifestações contestatórias e de todo o contexto revolucionário dos anos 1960/70 (de Che Guevara ao Flower Power e à contracultura), da globalização e do consumismo mundializado, da indústria cultural de massa, das guerras, massacres e genocídios do mundo contemporâneo; e uma segunda camada de politicidade, mais performática (para usar a terminologia de Von Hantelmann), que atua nos códigos da representação espetacular, alterando os dispositivos que habitualmente regulam a percepção do corpo e as relações entre obra e espectador num espetáculo de dança reconhecido como tal.

Estas operações de desconstrução das convenções do espetáculo trazem para a cena um questionamento em relação à dança e a seu papel na construção de um pensamento crítico e indagam sobre o real potencial de transformação social da arte. Aquilo de que somos feitos atua neste questionamento criando contradições em sua estrutura interna. São estas operações em tensão que, de acordo com a conceituação de Rancière, constituem instâncias privilegiadas de ação política, pois criam conflitos com as noções que apresentam no próprio ato de apresentá-las.

Estas diferentes camadas de performatividade política, atuando não apenas nos conteúdos temáticos mas sobretudo nos modos de produção do espetáculo, alterando as formas de ver, de perceber e, portanto, de ser, são o cerne da força política de Aquilo de que somos feitos.

A valorização do corpo como mídia específica da dança, na primeira parte, será subvertida pela cena de conteúdo explicitamente político da segunda parte, que, por sua vez, também é vivenciada a partir da experiência formalmente transgressora do início. O espetáculo funciona como um acúmulo de experiências de significação que subvertem e redimensionam umas às outras. As definições estanques sobre como conteúdo e expressão se articulam dão lugar à emergência de novas estruturas de sentido, nas quais a subjetividade da recepção é posta em evidência. Este ato endossa a importância do espectador dentro do dispositivo espetacular, que não existe sem ele.
Uma vez que o público testemunha e recebe a obra, ela se dispersa. Esta fragilidade e efemeridade do espetáculo têm força política. Ela recoloca a questão da comunidade que se constitui a cada espetáculo, neste encontro entre bailarinos e público, para desfrutar uma experiência de partilha do sensível. Retomando o pensamento de Rancière, esta partilha determina "a divisão de espaços, de tempos e das relações intersubjetivas dentro de um comum, trazendo a possibilidade de fazer existir novos modos de sentir e induzir a novas formas de subjetividade política" (Rancière, 2000, p.7-12).

A interseção entre dois modelos de arte – a dança enquanto produção significante pelo corpo em movimento e as artes plásticas enquanto inscrição de significação na imagem ou no objeto – mistura as categorias próprias de cada manifestação artística, criando deslocamentos que contribuem para desestabilizar a percepção e promover, segundo Rancière, uma ação política pelo "deslizamento da norma hegemônica" (Rancière apud Hantelmann, 2002, p.135).

Os inúmeros dispositivos espaço-temporais experimentados em Aquilo de que somos feitos (o jogo da bidimensionalidade e da perspectiva frontal; as sucessivas mudanças de organização espacial da cena; as operações do fazer tornadas visíveis como em um espaço de colagem; o partilhar de espectadores e bailarinos o espaço em comum do palco; a dilatação do tempo de observação) alteram as categorias centrais constitutivas do espetáculo (e da vida) – os sujeitos e objetos – assim como as formas de relação entre eles.

Os processos de subjetivação e objetivação, que habitualmente transformam o espectador em sujeito e a obra em objeto de apreciação, são subvertidos, dando lugar a um sujeito tornado uma "categoria fabricável" (Hantelmann, 2002, p.136), que se reconstrói o tempo todo durante o espetáculo. Não é esta uma forma de reclamar para a dança uma outra qualidade de espectador, mais engajado e atuante? Não é uma forma de questionar sobre a inserção política do sujeito no mundo? E sobretudo não é um manifesto sobre a dança, enquanto arte, e sobre suas possibilidades de intervir na formação de uma consciência crítica?

Notas

(1) Dorothea von Hantelmann é historiadora da arte. Trabalha no projeto de pesquisa das Culturas performativas da Frei Universitat, em Berlim.
(2) Walter Benjamin mencionou em sua conferência "O autor como produtor", de 1934, que "uma arte política deveria efetivar sua posição no seio de suas relações de produção e não somente mostrar sua atitude em relação a eles", citado em von Hantelmann (2002, p.135).
(3) Jacques Rancière, Eleven theses on politics, http:/www.zrc-sazu.si/www/fi/aktual96/ranciere.htm., citado em von Hantelmann (2002, p.135).
(4) Von Hantelmann vai tomar como objeto de análise as obras fotográficas de Erika Sulzer-Kleinmeier, Paul Graham, Dan Holdsworth e Seamus Nicolson, Wolfgang Tillmans em contraposição à obra Moving Benches, de Jeppe Hein, na exposição Novo Mundo, no Frankfurter Kunstverein, em 2001.

Bibliografia

HANTELMANN, Dorothea von. Specificness, again, Art Press Special 23 – Medium: danse, Paris, 2002.
RANCIÈRE, Jacques. (2000) Le partage du sensible – esthétique et politique, Paris: La fabrique-éditions.
RANCIÈRE, Jacques (2005) The politics of Aesthetics, www. keitheatre.com Jacques Rancière, (fevereiro de 2005).

   The present study intends to analyze critically the spectacle Aquilo de que somos feitos by choreographer Lia Rodrigues. I believe this spectacle is a landmark for history of dance from Rio de Janeiro and Brazil, as well as for the workmanship of this choreographer, inaugurating new parameters for contemporary dance.

   My interest for the workmanship of Lia Rodrigues is not concentrated only in necessity, that I consider basic, to investigate and to write some pages of the history of Brazilian dance. As dancer and choreographer, I interested myself especially for understanding the transformations of body in contemporaries dance and scene. I undertake this research from the place of a researcher-creator, interested in creative processes producing corporal poetics of contemporary world. I will search to make questions to Aquilo de que somos feitos, to understand ways and influences and to analyze involved concepts and possible operations in her creation and to establish dialogues and interlocutions with ideas and representations of body in the world today.