PINA 3D / Foto: Divulgação

PINA 3D por João Saldanha

Wim Wenders é um grande diretor de cinema e sobre tudo, um homem sensível que sabe e gosta de contar estórias em lugares surpreendentes, com personagens reais ou fictícios.

Dentro da sua vasta filmografia estão alguns documentários que modificaram o curso da história. No final dos anos 70, produziu em 35 mm e vídeo, o relato/ficção/ testamento Um filme para Nick, em parceria com Nicholas Ray, um dos maiores diretores norte americanos, que viria protagonizar essa declaração de amor à vida e à realização de filmes, nas semanas que antecederam sua trágica morte. Alguns anos depois, durante as filmagens de Paris Texas, Wenders foi para o Japão e rodou Tokyo Ga, inspirado nas imagens dos filmes de Yasujiro Ozu, para expor sua procura por uma cidade que não existe mais. Em 1989, aproximou-se mais uma vez da cultura japonesa, no filme Identidade de nós Mesmos. Registrou suas conversas com o estilista Yohji Yamamoto, em que mostra seus processos criativos e traça uma analogia entre as cidades e a identidade com o cinema na era digital. No documentário bem humorado Um Truque de Luz de 1995, conta a história de Gertrud, a menina que foi testemunha do nascimento do cinema, já que era filha de um dos irmãos Skladanowsky, inventores da primeira versão de projetores de filmes. Ao final dos anos 90, Wim revelou ao mundo os grandes artistas do Buena Vista Social Club, um relato que acima de qualquer questão política, retrata o dia a dia da cultura musical cubana, seu universo alegre e singular. No início de 2009, teve a grande ideia de fazer um documentário sobre a coreógrafa alemã, Pina Bausch, com quem teve alguns encontros e certamente admirava. Sua proposta era registrar imagens dos dançarinos nas ruas e na natureza, colocando-os de volta aos espaços que foram levados por Pina e seu companheiro, o cenógrafo Rolf Borzik para dentro do teatro. Wim utilizaria nas filmagens a tecnologia em 3D, dando proximidade, profundidade e volume nas coreografias, estaria se distanciando de qualquer abordagem já feita ao universo Pinabauschiano, além de lançar o desafio de usar essa tecnologia com propósitos artísticos, certamente um risco, uma vez que essa técnica geralmente é empregada em um determinado gênero de filmes de ação e animação, ou também pelo fato de que Pina, em 1990, ao ter incursionado no mundo da direção das imagens, lentes e planos cinematográficos, em seu único filme, O Lamento da Imperatriz, percebera a transformação dramatúrgica de sua encenação na telona. A coreógrafa, que no início dos anos 80, também havia trabalhado como atriz para Frederico Fellini em E La Nave Va, conhecia muito bem a linguagem cinematográfica, onde a grandiosidade da tela, algumas vezes, pode engolir os significados de pequenos gestos e intenções sutis que sua dança/teatro vem nos ensinando nesses anos de produções intensas, de trabalhos marcados pela expressão e identidade de dançarinos que passamos a reconhecer pelos nomes, assim como conhecemos os artistas da sétima arte.

Em 30 de junho de 2009, Pina Bausch morre vítima de um câncer devastador, cinco dias após ser diagnosticada. Subitamente o projeto de Wim Wenders tem que ser modificado, tornando-se uma declaração póstuma, um poema de amor, do amor de todos com quem a coreógrafa trabalhou e suas impressões dançantes sobre o mundo que criou. O filme começa com imagens de duas obras que consagraram Pina Bausch, A Sagração da Primavera de 1975 e Café Muller, de 1978. No primeiro instante percebemos que algo está mudado, assim como nós mesmos, nesses anos que se passaram, os corpos mudaram , são mais eficientes, no caso de Sagração torna-se claro que o significado expressivo e as potências são outras, o diretor evidencia o vestido vermelho. Pensei nas interpretações que vi no passado, nas atuações de Malou Airaudo e Jan Minarik que com sua capacidade objetiva de olhar emitia tensão no ambiente ao decidir quem seria à “escolhida” que dança até a morte. No filme, essa dançarina é interpretada pela brasileira Ruth Amarante com uma carga dramática muito distinta da personagem, integrante da companhia há quase duas décadas. Ruth dá sentido a sua participação no filme em outras aparições, pelo fato de ter vivido o processo de criação de outros trabalhos. Havia no passado uma valorização pela interiorização da expressão, um olhar para dentro, uma busca profunda dos sentidos, que podemos perceber na interpretação impecável de Helena Pikon, substituta de Pina em Café Muller, que pelos anos de convivência e desenvolvimento artístico, ao experimentar e observar as intenções de sua mestra não transforma em releitura a essência de seu trabalho. Foi justamente nesse momento do filme que percebi estar mergulhado, recriando imagens que estão no tempo, em filmagens antigas, livros, fotos e performances que vi e trazia para aquele momento Beatrice Libonati, Arthur Rosenfeld, Anne Martin, Jacob Andersen e um grupo de outros dançarinos que provavelmente se ausentaram das filmagens por estarem muito abalados com a morte da coreógrafa. Entretanto, estavam todos lá, presentes na minha memória. Tudo isso aconteceu num espaço de tempo muito breve. Nas imagens percebemos a falta que Pina faz, na expressão dos dançarinos, ou em declarações do tipo “… Estou esperando ela me visitar em sonhos”. O filme passa também pela modificação física e expressiva de distintas gerações, pelo percurso de jovens tímidos e entusiasmados que se tornam mulheres e homens de corpos maduros, com sensualidade no modo de olhar. Transitamos no tempo entre o velho e o novo, também pela minuciosa edição do diretor para a peça Kontakthof, explorada pela diferença de significados de seus intérpretes. Pina coreografou esse trabalho em 1978 para a maior companhia de todos os tempos, a Thanztheater Wuppertal. Essa obra foi recriada no ano 2000 para atores e dançarinos de mais de 65 anos e em 2008 para um elenco de adolescentes de 14 anos. Desta vez, a montagem contou com a coordenação da australiana Jo Ann Endicott, uma das dançarinas mais expressivas da história da dança alemã, que aparece numa imagem dentro de um rio com um hipopótamo, fazendo-nos recordar o espetáculo Arien de 1976, tão especial como outra dançarina, Regina Advento, que parece estar voando sobre as cadeiras noutra deliciosa sequência do filme, tão delicada quanto à aparição de Malou Airaudo debruçada numa mesa dentro d’água. As três emitem no filme a perspectiva da dança que Pina inventou: prazerosa, divertida e trágica, como na cena em que a espanhola Nazareth Panadero é molestada por pequenos gestos invasivos, próprios do universo infantil e que quando feitos por adultos do sexo masculino ganham outra conotação. Todas colaboradoras, assim como o atual diretor artístico da companhia, o dançarino francês Dominique Mercy, que sempre nos espetáculos esteve num lugar de provocação e no filme aparece observando uma maquete de Café Muller lembrando com Malou o contexto da criação, ou na cena em que aparece dentro de uma mina de carvão vestido de bailarina, deslocando nossa imaginação para associação de imagens. Eu poderia ficar horas tecendo as qualidades desses artistas de nacionalidades distintas, dançarinos incríveis, que modificaram a forma de vermos danças, dedicando suas vidas ao experimento artístico e dando seguimento a um trabalho que deve ser perpetuado. Porém, assim como a morte de Pina é um fato, Wim Wenders nos faz pensar que tudo tem seu tempo, e nada melhor que a sensibilidade de um cineasta para registrar e contextualizar a arte que a maior encenadora de todos os tempos desenvolveu. A importância desse documentário supera as possíveis críticas e imperfeições que possam existir pela comparação entre a assinatura de Pina Bausch e o recorte que Wenders deu a sua obra. Não é ao acaso que o diretor optou por explorar os famosos exercícios de improvisação em tomadas que mostram o espaço urbano e o lado divertido e humorado de seus intérpretes, nas mais distintas locações, como numa escada rolante ou na estação do Trem suspenso por trilhos da cidade de Wuppertal. Há ainda a vigorosa dança/solo em que percebemos a linguagem em 3D no seu melhor, trazendo o abismo e o risco por estarmos simplesmente vivos. O filme atualiza a relação entre movimento, espaço e ação através da amorosa relação que Pina teve com a dança, sob o olhar inovador de Wim Wenders. Ah, um detalhe muito importante, o cineasta traz sutilmente a referência do personagem do anjo, presente de forma poética em todos os seus filmes e mostra ainda alguns registros preciosos, que foram feitos por sua colega cineasta, a belga Chantal Akerman, durante os anos que acompanhou os processos de criação da coreógrafa com a trupe de Wuppertal em viagens, turnês e festivais no mundo.

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