Pistas para ler O Corpo como sistema

Um sistema em colapso é um sistema movendo-se para frente.
Bill T. Jones

O Corpo: pistas para estudos indisciplinares, recente publicação da professora Chistine Greiner (PUC-SP), precisa ser lido em consonância com o ponto de vista que defende acerca de seu objeto de estudo: a idéia de que o corpo é um sistema e não um produto. O ensaio de Greiner, embora se enderece àqueles que iniciam seus estudos sobre o corpo, está longe de se estruturar de modo a oferecer ao leitor um compêndio super didático e bem resolvido da história das teorias sobre o corpo.

A priori, a autora concentra-se nas perspectivas teóricas das décadas de 80 e 90, responsáveis por originar algumas das mais importantes teorias do corpo na contemporaneidade. Mas, além de relacionar essas perspectivas com uma ampla história de pensamentos sobre o corpo oriundos de áreas as mais diversas, o seu modo de fazê-lo é privilegiando a interação, e não a justaposição, entre idéias e conceitos emergentes de diferentes contextos históricos. O que chega a nós como resultado é que o conjunto dessas conexões de conceitos forma um sistema em colapso (no sentido mais simpático do termo), que aponta para adiante. Isto porque provoca no leitor não a sensação confortável de ter-se apropriado minimamente do assunto, mas a curiosidade intelectual de se aprofundar nas conexões propostas e produzir outras. Para dar vazão à curiosidade, os leitores não começam do zero, porque Christine Greiner, numa gentileza que merece realce, oferece, ao final, uma extensa bibliografia, dividida por quatro sub-temas abordados na obra e, por vezes, até comentada.

Não são de ordem cronológica os critérios que Christine utiliza para orquestrar os vários domínios de conhecimento que, com diferentes prioridades, se dedicaram a estudar o corpo. Tampouco a autora finge ser possível manter-se neutra. O que faz não se trata de uma revisão, mas de uma leitura crítica da bibliografia sobre a matéria. E o faz a partir da perspectiva do presente e de pontos de vista com os quais tem afinidade. Um dos principais é aquele segundo o qual o corpo precisa começar a ser mapeado como um sistema, e não como um instrumento ou produto. Esse é o pressuposto para boa parte das idéias resultantes do diálogo, produzido por Christine, entre diferentes domínios teóricos que se debruçaram sobre o corpo.

Como sistema, o corpo interage com o ambiente. Ele não é um produto pronto e autônomo de modo que possamos distinguir o que lhe é próprio em oposição ao que lhe é exterior, uma vez que o que se costuma chamar de ‘si-mesmo’ não diz respeito apenas ao interior do corpo, mas às conexões do interior com o exterior (Gerald Edelman apud Greiner). É de noções como essa que surge a evidente necessidade, segundo a autora, de tomar cuidado com dicotomias falsas como, por exemplo, a que é feita entre corpo biológico e corpo cultural. Cada área da qual lança mão para pensar o corpo funciona apenas como uma porta diferente, através da qual chegamos à mesma impossibilidade de continuar a reafirmar essa lógica binária e ao reconhecimento de que os processos co-evolutivos entre corpo e ambiente precisam, necessariamente, ser levados em conta.

Muito instigantes são as evidências encontradas por Christine para conectar o processo co-evolutivo do corpo e do ambiente com os constantes fluxos entre nações, línguas, culturas, etc., abordados, sob a perspectiva dos estudos culturais, por autores como Homi Bhabha, Edward Said e Stuart Hall. Assim, a discussão do que está dentro ou fora não diz respeito apenas ao corpo, mas ao dentro e fora de uma nação, de uma língua, de uma religião, de uma cultura, de uma tradição. (…) A partir deste encaminhamento, muita coisa muda. O reconhecimento de uma identidade, por exemplo, já traz consigo o reconhecimento da impureza dos processos (…), afirma a autora.

É interessante observar que o arranjo operado por Greiner entre as linhas teóricas que estudam o corpo está totalmente impregnado do pressuposto de corpo como sistema. Através de pontes entre a ciência, a filosofia e a arte, o corpo composto das tantas teorias discutidas pela autora funciona como um sistema cujas partes são, necessariamente, intricadas, inter-relacionadas. E, ainda, a relação dessas perspectivas teóricas com o contexto (ou ambiente) sócio-histórico que as produziu é evidenciada, para entendermos que elas também precisam ser pensadas como sistemas. Nesse sentido, muito interessante é uma espécie de análise do discurso que a autora faz das metáforas do corpo (corpo-organismo, corpo-máquina, corpo sem órgãos etc.), mostrando como as imagens usadas para pensar o corpo têm relação com a concepção de mundo subjacente ao momento histórico, econômico, ideológico, em que essas metáforas foram produzidas. Segundo Greiner, se a metáfora muda, muda o entendimento ontológico do corpo, ou seja, muda o entendimento sobre a natureza e as propriedades do corpo.

Além dos quatro capítulos que discutem as referências teóricas sobre o corpo, a publicação oferece, ao final, um ensaio cuja autoria é dividida com a professora Helena Katz. O título é Para uma teoria do corpomídia. Em vários artigos, ensaios ou capítulos de livros, as autoras vêm, nos últimos anos, nos introduzindo nesse conceito. Ele abarca a idéia de que algumas informações do mundo são selecionadas para se organizar na forma de corpo – processo sempre condicionado pelo entendimento de que o corpo não é um recipiente, mas sim aquilo que se apronta nesse processo co-evolutivo de trocas com o ambiente. Nessa perspectiva, o corpo é um sistema aberto cujo futuro não podemos prever, porque as constantes trocas com o ambiente o constituem como um resultado imprevisto desses cruzamentos. O fechamento do livro com esse ensaio torna-se pertinente, sobretudo, por entendermos que as conexões feitas no decorrer dos capítulos apontam para escolhas que deságuam numa contraposição entre determinadas metáforas do corpo situadas historicamente e aquela que condensa as idéias defendidas pelas duas autoras: a metáfora do corpomídia.

Roberta Ramos* é pesquisadora/coordenadora do projeto Acervo RecorDança e doutoranda em Teoria da Literatura pela UFPE.