Política na Dança

Quando falamos em política, nos remetemos diretamente a responsabilidade de lidar com as regras vigentes. Tanto a maneira com a qual cada um responde a isso, como as atitudes que refletem o contexto em que se encontra são aspectos políticos do fazer. Isso não é diferente na prática artística. De fato, a política tem a convivência das diferenças como um exercício. E na dança, como isso se dá? Quais aspectos influem diretamente nas escolhas estéticas ou nas nossas opiniões a respeito do que é ou está em uma dança?

Alguns filósofos políticos, como Foucault, Rancière e Agamben ajudam a construir a hipótese (1) de que há uma política no corpo singular na qual a crítica do próprio fazer particulariza um lugar na dança contemporânea, daquela que podemos circunscrever dos anos 90 até a atualidade.

Entende-se por política no corpo um jogo de mecanismos, ou seja, ao mover, pensar e exercer uma atitude em relação ao contexto em que se insere, o corpo fala não somente da maneira com a qual ele responde ao meio, mas também nos diz sobre as tensões do contexto. Estas estão calcadas na repartição de bens, sejam eles materiais ou simbólicos, que alguém governa e dita: quem terá qual parte e de que forma. A resposta reflexiva ou crítica a tal governabilidade nos obriga a um posicionamento e ao refinamento do nosso olhar a fim de observar as diferenças.

Na ação político-estética da dança, temos a chance de ver o jogo de mecanismos entre corpo e contexto. Por um lado, o artista, impelido a questionar seu próprio fazer, a investigar seu corpo; por outro, o contexto que nos impulsiona a gerar respostas críticas. Estamos falando de um tipo de dança contemporânea que guarda sua especificidade justamente no modo a partir do qual questiona a si mesma, portanto, reage de maneira crítica ao contexto em que se insere. Um lugar onde não há uma fronteira definida de grupo ou conjunto homogêneo, mas sim um lugar híbrido, permeável e plástico porque adere a várias possibilidades – as diferenças. Não há um modelo único, nem um mentor ou precursor a seguir.

Sabe-se que hoje a dança contemporânea não tem um tutor, ou seja, uma tendência ou algumas pessoas que poderiam definir sua alfândega – onde começa e termina o mundo da dança contemporânea –, apesar da insistência de algumas tribos, prática comum e secular na área. A reflexão dos artistas que buscam investigar sua ação estética é um tipo de engajamento político, declarado por alguns e ainda em elaboração por outros. Não importa em qual nível ou escala você se encontra; se a reflexão recai sobre o questionamento de modelos ou mesmo de sua própria ação no mundo, existe uma característica comum. Esta une muitos artistas diferentes, mas que tem em comum uma atitude crítica do próprio fazer.

Nuances. Primeiro, devemos afirmar que a prática artística tem em seu veio tal exercício investigador, até mesmo questionar a realidade em que se insere. Na história da dança, é possível notar vários momentos em que isso não somente foi uma marca, como uma necessidade de expandir os limites da cena e do corpo. Segundo, situamo-nos hoje em um contexto da arte contemporânea onde os hibridismos e contaminações são a regra e, a favor dela, muitos artistas buscam novas estratégias de convivência e troca. Ou seja, não se busca com esta premissa alguma afirmação nova ou inovadora, mas sim uma reflexão crítica do que já vem ocorrendo de muitos modos diferentes na prática. Isso merece uma atenção distinta. Por quë?

Porque há muito tempo estamos falando de investigação, de pesquisa de linguagem, mas o que realmente isso significa nos contextos em que nos encontramos ou naqueles que trafegamos? Quantas possibilidades já não nos foram mostradas a fim de podermos chegar hoje a questionar não somente os modelos ou discursos dominantes, mas também nos sentirmos engajados a modificar nossa própria realidade profissional? Ou ainda, de quais realidades estamos falando e como vários artistas vêm lidando com mecanismos e táticas para driblar as repartições do mercado? Ou seja, estamos falando de estética política aplicada em várias instancias: desde a obra artística propriamente dita, do que escolhemos para estar lá que represente bem nossas idéias, até nosso posicionamento como profissionais no mercado. O que liga tais níveis é a atitude do artista.

Pesquisa e investigação na dança nos remete a novas formas de movimentação, de hibridismo com o teatro ou com as artes visuais ou até mesmo com a presença da tecnologia. A atitude esperada frente ao corpo propositor é a geração de questões, perguntas e a busca de outras formas de lidar com as regras, impostas ou recriadas. “E se eu mover assim? E se isso também for dança? E se você não contar assim, mas contar de trás para frente? E se a música for criada independemente? E se este trabalho tiver que ser dançado em outro lugar que não o palco? E se meu posicionamento for diferente do coreógrafo, como me coloco? E se a cena puder ser traduzida com movimentos mais simples ou cotidianos? E se eu usar uma técnica diferente daquelas usuais de dança, qual é o resultado no meu corpo?” Do mesmo modo, poderíamos perguntar: “e se eu escolher este edital para propor meu trabalho? E se eu freqüentar este ou aquele coletivo, o que isso modifica na minha prática? E se eu escolher estudar com estes ou aqueles núcleos, qual diferença isso faz no meu trabalho?”

Em muitos casos, novos formatos respondem a estas novas necessidades investigativas. Projetos tais como o Rumos Dança Itaú Cultural ou projetos locais de muitas cidades brasileiras, como Olhares do Corpo em Uberlândia, Tubo de Ensaio em Florianópolis ou Sala Pequena em Votorantim, nos certificam que os artistas buscam novas formas de apresentar, de refletir sobre sua prática, ou ainda, de fazer da sua voz cênica, uma voz política. Ou seja, a forma com a qual apresentamos nossos trabalhos também nos diz sobre nossos contextos, com suas faltas ou possibilidades. Repare que citei projetos de cunho nacional de grande porte, inclusive conceitual, e também projetos locais, o que indica que tal relação entre pesquisa de criação e formato de apresentação não é exclusiva de grandes cidades ou de grandes festivais.

É uma atitude política fazer do contexto parte do momento de gerar uma idéia cênica. Fazer dos processos criativos, dos resultados, dos festivais ou eventos formas reflexivas que proporcionem um questionamento. Isso vem se tornando uma necessidade cada vez mais eminente. O mesmo se dá quando os contextos chamam algumas obras, outras não. Por este motivo é que se examina detidamente as curadorias em dança que induzem à combinação de qual dança cabe em qual contexto.

Também o posicionamento do artista é, de fato, uma solicitação. Falamos em intérprete criador, em concepção, idealização ou criação de fulano, em coreógrafo-intérprete, em artista simplesmente ou, na fronteira com as artes da performance, em performers. São nomeações que buscam retratar uma realidade de dançarinos engajados com o processo e não somente repetidores ou executores de passos ou marcações. E o que mais isso significa? O poder instituído continua na mão do criador ou idealizador? Para algumas coisas, como luz ou figurino, se destitui a figura participante do dançarino ou ele interage e questiona? O que significa para o criador, inclusive quando é a mesma pessoa, decidir, questionar, refinar seu próprio discurso e também precisar de um olhar externo? Qual é a função da direção ou dramaturgia? O artista da dança hoje é exigido a interagir, a se questionar, é responsável e atuante da sua própria forma de fazer. Os projetos que participa são indicadores estéticos e políticos de seu engajamento com tais e tais idéias, e não com outras.

Isso não é partidário, apesar de parecer corporativista. Não é uma prisão de conceitos nem uma forma dominante de instituir carteiras de clube que nos identificam. Há sim uma constatação a se fazer: nossos trabalhos artísticos, quando posicionados sobre nossas escolhas, exercem uma função política. Se é no espaço comum, partilhado, ou seja, político, que atua nosso pensamento em forma de dança, a estética não tem como se distinguir da política. Como citado na tese de doutorado: “Do que fala a arte, exerce-se a política”, frase conclusiva a partir de uma reflexão cara do filósofo Rancière (2).

Saber que fazemos dança contemporânea, pertencer a esta grande denominação ou investigar e pesquisar formas diferentes de fazer e entender dança não resolve nossas questões. Ao contrário, abre para outros paradoxos, sejam eles estéticos, políticos, culturais, cada um tem a responsabilidade em conjeturar. Paradoxos estes imersos em contextos que são os mesmos que nos oferecem, ou não, uma formação ou uma produção como artistas. A preocupação se volta para conhecer a realidade a fim de encená-la como uma grande real ficção.

Não é mais tão importante sabermos quem faz o quê, mas como o faz. Não são as denominações que respondem nossas inquietações, mesmo que a sensação de pertencimento cause muito conforto. Este lugar híbrido e permeável da dança contemporânea é habitado por criadores que vêm exercendo papel fundamental no questionamento da realidade. Isso é uma referência marcante hoje e o desconforto acaba sendo inerente à atitude crítica.

Este artigo se propôs a indagar a política na dança hoje e seus traços mais relevantes e abrir um debate. Do seu ponto de vista, leitor, uma ação política se exerce sobre seu corpo e seu fazer? Como?

Notas:

(1) Tese de doutorado defendida em 18 de agosto de 2006 chamada “Política do corpo contemporâneo: Lia Rodrigues e Xavier le Roy”, no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP.

(2) Para uma leitura mais aprofundada, conferir a conferência “Política e Arte”, de Jacques Rancière realizada no SESC São Paulo, em 1995. No link: www.sescsp.org.br/sesc/conferencias/.