Por uma nova poética do corpo | For a new poetry of the body

O corpo, sem aviso prévio, pode ser surpreendido por uma parada cardíaca. De súbito, a morte suga-lhe o sangue, encerra os suspiros e rouba seus sonhos. Em um antigo galpão de Fortaleza, 22 artistas de diferentes linguagens se reuniram no mês de outubro para participar da residência com o coreógrafo francês Rachid Ouramdane, promovida pelo Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura em parceria com a Bienal de Dança do Ceará, o SESC e o SENAC. Durante 17 dias, os participantes desenvolveram dispositivos cênicos a partir de suas singulares percepções e representações da morte utilizando a Internet e o software Isadora como possibilidades de pesquisa e criação.The body can suddenly be surprised by a heart attack. Out of nowhere, death creeps up from behind and sucks the blood out of you, steals your very sighs and dreams. In an event promoted by Dragão do Mar Center of Art and Culture in partnership with the Ceará Dance Biennial, SESC and SENAC, 22 artists of different languages got together in an old warehouse in the city of Fortaleza last October to take part in a dance residence with the French choreographer Rachid Ouramdanem. For 17 days, the participants developed scene devices based on their unique perception and representation of death by using the Internet and Isadora software as research and creation possibilities.

A residência reflete um investimento maduro sobre a formação em dança contemporânea no Estado. Desde a última edição da Bienal de Dança do Ceará, que trouxe companhias de referência do Brasil e da Europa, os realizadores, através de parcerias, têm buscado desenvolver ações que estimulem o diálogo entre criadores de diferentes culturas e etnias e possibilitem interfaces com outras linguagens artísticas. Os processos, interativos, não colocam o residente apenas como um mero aprendiz, mas estimulam seu imaginário afetando todos os envolvidos.

Durante duas semanas, intérpretes-criadores em dança, performers, videomakers e artistas plásticos desenvolveram cenicamente suas simbologias da morte. O coreógrafo Rachid Ouramdane, depois de pesquisar sobre o tema na Internet para construir seu último espetáculo, Les Morts Pudiques, apresentou na residência seus estudos e discussões, procurando estimular o imaginário de cada participante. As identidades, ou melhor, as intimidades diante da morte foram dramatizadas e expostas ao olhar desconhecido. O medo, o êxtase e o lúdico conduziram grande parte dos trabalhos.

Numa sociedade onde cada vez mais as relações estão sendo mediadas por aparatos tecnológicos, surgem novas possibilidades de interação entre corpos em espaços distintos. Durante o processo criativo o pesquisador Armando Menicacci, que trabalha junto a Rachid na Associação Fin Novembre, trouxe à residência o software Isadora, um programa de computador capaz de subverter corpos e objetos em tempo real. Procurando diferentes formas de capturar e recriar o imaginário, Armando apresentou a artistas e pesquisadores algumas ferramentas de construção e reflexão cênica que possibilitam ao criador estabelecer diferentes formas de mediar suas relações com o espaço. É o que o pesquisador chama de telepresença. Realizadores de vídeos de dança locais tiveram a oportunidade de entrar em contato com este software capaz de registrar movimentos e transformá-los em sons ou imagens e de tornar partes desconhecidas do corpo perceptíveis ao indivíduo. Menicacci mantém muitas informações disponiveis no site de seu projeto Anomos.

Durante o processo, uma performance foi criada para ser apresentada ao público. Entre o movimento frenético de bares e restaurantes da Praia de Iracema, um antigo galpão foi todo preparado para mostrar o resultado dos encontros entre Rachid e os residentes. Três telas-plasma foram espalhadas sobre o solo frio de cimento. Alguns feixes de luz ainda fugiam pelos buracos assimétricos na parede. Não havia cadeiras para os espectadores. Cada um escolheu um canto do chão para se acomodar. No fundo do espaço, um carro modelo Santana preto com uma coroa de flores sobre seu tampo. Uma bailarina, vestida de luto, entra numa dança introspectiva. Ela desejava partir – para onde? Dois seguranças esbeltos, de óculos escuros, cooptavam seu transe. Nas telas, eram projetadas imagens disformes que provocavam desconforto nos presentes.

De repente, não mais que de repente, um vídeo apresenta o enlatado Morte, produto à venda em prateleiras de supermercado, sendo consumido por uma família feliz. A televisão, escondida em uma das quinas do galpão, exibia a receita para um suicídio eficaz. Um menino ainda longe da puberdade entra em cena e corre, incessante, de frente para uma tela-plasma onde sua imagem estava sendo projetada. Enquanto isso, um homem faz cooper em uma esteira. As apresentações vararam a noite, revelando a relação dos participantes com a morte.

A residência surge como proposta de uma ação mais prolongada de agenciamento artístico-cultural que busca enriquecer o corpo cearense e continuar a fomentar discussões sobre o pensamento e a produção em dança no mundo contemporâneo. A política de intercâmbio com outros países estimula o diálogo entre diferentes processos de criação e recepção de conteúdos. Através da interatividade, as ações artísticas que estão sendo desenvolvidas no Estado saem de uma proposta de mero repasse de conhecimentos para dar forma a trabalhos que despertem as poéticas pessoais dos artistas e afetem todos os envolvidos no processo. Com a inserção cada vez mais consolidada da dança local no cenário nacional e internacional, a Bienal de Dança do Ceará, em parceria com o Dragão do Mar, busca realizar projetos artísticos formativos de médio prazo em dança. Propostas como essa, possibilitam traçar um pensamento e produção mais consistentes valorizando a interface com diferentes referências culturais.

Outras ações estão sendo desenvolvidas para potencializar a formação em dança no Ceará. No galpão, onde foi realizada a residência, será sediado no próximo ano o Centro de Formação em Dança, um projeto idealizado pelo Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura em parceria com o SENAC. Neste espaço, além do curso profissionalizante em dança, com duração de dois anos, haverá um espaço reservado para apresentações onde também serão ministradas oficinas, residências, palestras, conferências, debates e cursos livres de dança. O intuito é que esta iniciativa se transforme em um pólo de reflexão e construção em artes cênicas.

A geografia cultural do Estado permite desenvolver relações, interativas e afetuosas, privilegiando a diversidade artística. Com a residência surge uma alternativa para compartilhar ferramentas, imaginários e processos de concepção cênica. E o corpo, sem aviso prévio, constrói diálogos possíveis com outras linguagens artísticas procurando ampliar seu repertório e despertar novas possibilidades de criação.

* Ystatille Gondim é repórter do caderno de cultura do jornal O Povo, de Fortaleza.

The residence reflects a mature investment in the background of contemporary dance in the state. Since the last edition of the Ceará Dance Biennial, which brought reference companies from Brazil and Europe, the creators of the event have been trying, through partnerships, to take actions that will stimulate the dialog between the creators of different cultures and ethnic groups. They have been trying to make the connection with other artistic languages. The interactive processes do not make the resident a mere apprentice. They stimulate his or her imaginary and affect all of the those involved.

For two weeks, interpreters (dance creators), performers, videomakers and artists developed their idea of death on stage. After searching the Internet for the topic of his last performance, Les Morts Pudiques, choreographer Rachid Ouramdane presented his studies and discussions during the residence, seeking to stimulate the imaginary of each participant. The identities, or better expressed, the intimacies of death were dramatized and exposed to the unknown eye. Fear, the ecstasy and the pleasure predominated in the majority of the projects.

In a society where relationships are increasingly controlled by technological devices, more possibilities of interaction emerge between bodies in distinct places. During the creative process, the researcher Armando Menicacci – who works with Rachid in the Fin Novembre Association – brought the Isadora software to the residence. Isadora is a computer software that is capable of moving bodies and objects in real time. Searching for a way to capture and recreate the imaginary, Armando presented artists and researchers with some of the tools for construction and scene reflection.. These tools make it possible for the creators to establish different ways of mediating their relationship with space. This is what the researcher calls telepresence. The people who made videos of regional dance had the opportunity to work with this software, which is capable of registering movements and changing them into sounds or images and of making unknown parts of the body noticeable to the individual. Menicacci keeps a lot of information at his project Anomos website.

During the process, users created a performance to present to the public. Surrounded by the frenetic movement of bars and restaurants at Iracema Beach, an old warehouse was prepared to show the results of the meetings between Rachid and the residents. Three plasma screens were spread out across the cold, cement floor. Streams of light shown through the uneven holes on the wall. There were no chairs for the spectators. Each one of them chose a spot on the floor. At the back of the space sat a black Santana with a crown of flowers on the hood. A dancer wearing black enters and starts a very introspective dance. She wanted to leave – but where to? Two handsome security men, sunglasses on, joined her in her trance. Crooked images were projected onto the screens, making the audience uncomfortable.

Suddenly, not more than suddenly, a video presents the canned product Death, for sale on supermarket shelves, being consumed by a happy family. The television that was hidden in one corner of the warehouse shows a recipe on how to perform an efficient suicide. A boy, still far from puberty, enters the scene and runs, non-stop, in front of a plasma screen where his image was being projected. Meanwhile, a man jogs on his treadmill. The presentations took place all night long, showing the relationship of the participants with death.

The residence is the proposal of a prolonged action of artistic-cultural management that seeks to enrich the Cearense body and encourage discussions on the thought and production in dance in the contemporary world. The exchange policy with other countries stimulates the dialog between different processes of creation and content retrieval. Through interactivity, the artistic actions that are being developed in the state are the result of a mere proposal of forwarding knowledge to shape the projects that awaken the personal poetry of the artists and affect all of those involved in the process. The Ceará Dance Biennial, together with Dragão do Mar, tries to create artistic formative dance projects for the medium term with the insertion of a more solid local dance in the national and international scene. Proposals such as these allow for a more consistent process of thought and production, recognizing the interface with different cultural references.

Other actions are also being developed to make the education in dance stronger in Ceará. The Centro de Formação de Dança (Dance Education Center) is a project developed by Dragão do Mar together with SENAC that will take place the same warehouse as the residence. In this space, in addition to a two-year long course to educate dance professionals, there will be a place reserved exclusively for presentations. This same space will host workshops, residences, lectures, meetings, debates and dance courses. The idea is to make this initiative a center for the reflection and construction of theatre arts.

The cultural geography of the state allows us to develop relationships, whether interactive or affectionate, that value artistic diversity. The residence presents an alternative space to share tools, imagination and processes of scene conception. And the body, without any warning, constructs possible dialogs with other artistic languages, seeking to increase its repertoire and awaken new creation possibilities.

* Ystatille Gondim works as a reporter for the culture section of O Povo, a newspaper in Fortaleza.