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Por uma sustentabilidade ética

Numa parceria com o projeto ‘Em busca de novos caminhos para a dança contemporânea’, organizado pelos artistas Ana Catarina Vieira e Ângelo Madureira, de São Paulo, o idança publica o texto ‘Por uma sustentabilidade ética’, escrito por Christine Greiner. O projeto foi contemplado pelo 9º Programa Municipal de Fomento à Dança de São Paulo e foi composto por encontros durante oito meses entre pesquisadores e artistas interessados em pensar sobre temas relativos à produção em dança. Esses encontros resultaram em textos – entre eles o de Christine – sobre sustentabilidade, público, gestão cultural, economia e política cultural. Toda a série está disponível aqui para download.

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Quando se fala na relação entre dança e política, a maioria dos debates está pautada por necessidades práticas vinculadas diretamente ao tema da sustentabilidade ?nanceira. No entanto, considero importante incentivar um debate no âmbito da crítica e da discussão politico-?losó?ca, favorecendo os diálogos com outras áreas de conhecimento para além da discussão sobre empregabilidade.

O meu foco principal são as pontes possíveis. Algumas teorias podem (e devem) ajudar a pensar a sustentabilidade, não apenas para viabilizar a sobrevivência dos artistas, grupos e  projetos, mas no sentido ético, ou seja, de manter a coerência conceitual das experiências e estimular uma discussão mais ampla da arte no mundo contemporâneo. É tão difícil sobreviver de arte, por que faz sentido seguir criando?

Em setembro de 2010, como parte do debate suscitado pela 29º Bienal de São Paulo, cujo tema era a impossibilidade de separar a Arte da Política, o  professor da Universidade de São Paulo, Teixeira Coelho, pontuou que a política seria um conjunto ordenado de iniciativas que visam buscar algum  tipo de consenso para mudar um estado de coisas, de preferência para melhor. Já a arte funcionaria como um  instrumento de provocação do dissenso: a “iminência de uma revelação que não se produz” ou a “iminência de um começo de mundo”.

Estas frases, respectivamente formuladas por Néstor Garcia Canclini e Merleau-Ponty, foram lembradas por Coelho para argumentar sobre a incompatibilidade entre a “poética da iminência artística” e a “aspereza da política” que constroi um abismo que não interessa à arte transpor.

Sob esta perspectiva, a arte nunca poderia ser política. Mas ao semear o dissenso, teria sido sempre uma espécie de “tecnologia de transformação” e, portanto, indissociável da política. Quais seriam então os perigos e benefícios desta aproximação? Qual a extensão das zonas de indistinção entre arte e política quando o tema é a empregabilidade e a distribuição de recursos ?nanceiros para a arte? É possível separar com clareza os territórios de atuação de uma e de outra?

Foi também o próprio Teixeira Coelho que evocou a famosa frase do cineasta Jean-Luc Godard: “cultura  é regra, arte  é exceção”.  Uma frase bastante provocadora que pode suscitar entendimentos distintos conforme a abordagem escolhida para compreender o que signi?ca uma exceção.

Algumas de?nições

Começo pela de?nição  de arte como “tecnologia cognitiva de transformação”.  Ao contrário do que se imagina à primeira vista, ela não saiu de um ensaio de arte contemporânea, mas do livro da pesquisadora Eiko Ikegami que estudou as redes de resistência do Japão medieval, demonstrando que o caráter transformador da arte não é dado, mas construído a cada dia e coletivamente. Sem isso, descaracteriza-se. Estas redes nascem do absolutamente comum (no sentido de comunitário, público, compartilhado).

Para comprender melhor tudo isso, também é importante de?nir o que é uma exceção e descobrir porque toda exceção tende a se transformar em regra. Segundo o ?lósofo Giorgio Agamben, é a exceção que de?ne a soberania desa?ando as dicotomias habituais de dentro e fora, privado e público, o que é próprio e é do outro. Ao contrário do que costumamos pensar, a exceção não é o que se subtrai a regra. É a regra que ao ser suspensa dá lugar à exceção. Neste sentido, reconhecer a arte como exceção pode ser mais do que um elogio à natureza excepcional dos processos de criação que desa?am as regras estabelecidas. A arte reconhecida como um estado de exceção representa a exposição da lacuna que resta no lugar das regras suspensas.

Surgem muitas perguntas. O que pode transformar o dissenso em consenso? O que suspende a regra vigente e aprofunda a lacuna?

É provável que os modos como  a arte vem sendo tratada traduza novos sintomas do que Peter Sloterdijk chama de razão cínica. Trata-se de uma situação recorrente em que não se acredita mais em nada, no entanto segue-se fazendo o que sempre se fez. Quando a arte replica na mesmice, submissa às armadilhas da empregabilidade, perde o vigor, e assim como todas as outras atividades sucumbe ao cinismo e aos abrigos abstratos para justi?car a máxima de que cada um sabe de si. A?nal, tudo se justi?ca quando o argumento se fecha nas necessidades da vida de cada um (as contas de água e luz, o aluguel, o supermercado). Quando o patrocinador potencial “apoia” arte tendo em vista pagar menos imposto, segue a mesma lógica que vale para todas as outras operações do seu cotidiano. Quando a imprensa escolhe dar destaque apenas às atividades artísticas que já são reconhecidas internacionalmente ao invés de discutir experiências locais, segue docilmente a trilha do mundo-mercado.

Neste contexto, o tempo parece ser sempre um divisor de águas fundamental. Quanto tempo se pode resistir? Aquilo que é efêmero pode ser político? A ação política tem a ver com o grau de exposição e visibilidade?

A importância do coletivo

Há ainda outros estudiosos que ajudam a re?etir sobre tudo isso. A crítica feminista Judith Butler, por exemplo, costuma dizer que aquilo que move politicamente alguém é o momento em que o sujeito ou o coletivo asseguram o direito à vida, quando não há nenhuma autorização prévia existente e nenhuma convenção parece viável. É apenas ao se tornar coletiva que a política ?ca palpável. O que é produzido é o potencial de divergência dos movimentos. Esta seria um tipo de política do “ainda não” que abre espaços para que tudo que ainda não aconteceu possa vir a acontecer.

Transitando por esta política do “ainda não”, em 1955, o ?lósofo Gilles Deleuze discutiu a relação entre os termos instinto e instituição, concluindo que estas são duas formas organizadas de uma satisfação possível mas constituem também alguns problemas políticos que se referem ao grupo.

Isso porque, toda instituição impõe algo a nosso corpo, mesmo em suas estruturas involuntárias, e delega à nossa inteligência um saber. Em algumas situações, diz Deleuze, parece mesmo que o homem não tem mais instintos. O que ele faz são instituições. Parece um animal em vias de despojar-se da espécie.

O instinto traduz as urgências do animal con?guradas na espécie humana e as exigências da complexidade incidem sobre o animal, domesticando-o. Tudo acontece ao mesmo tempo. Não é um ou outro. Assim, o problema comum ao instinto e à instituição é como fazer uma síntese entre uma necessidade e aquilo que a satisfaz. A água que eu bebo pode não representar os hidratos dos quais meu organismo carece, mas ela pode me satisfazer. O tempo que passa implica muitas vezes em um tempo não vivido, mas assim mesmo ele passa.

A diferença entre a instituição e o instinto está,  portanto, no fato de que não há interdições ou coerções instintivas. Existem repugnâncias instintivas, mas a coerção é sempre institucional.

Neste contexto, o que se chama de ação política não parece diferente, con?gurando-se sempre como uma tendência entre a instituição e o instinto, que testemunha a co-evolução entre corpo-mente-ambiente. Isso porque nenhum fator exclusivamente interno desencadeia comportamentos diferentes em diferentes espécies. É a lacuna que não pode ser preenchida, nem ter as bordas coladas. Ela pode ser a origem do pensamento/ação.

Talvez o território do pensar politicamente esteja ainda antes dos sujeitos individuais, naquilo que Deleuze chamava de individuações impessoais ou singularidades pré-individuais, uma vez que a ?ssura da ação política está sempre no entre: entre um sujeito e outro, a vida de um e a vida de muitos. Ela é, de certa forma, a compulsão para olhar o outro. O que temos ainda a aprender é como lidar com esta alteridade.

Alguns dilemas da dança e dos artistas

No caso especí?co da dança, enfrentamos um dilema que expressa as tensões entre a produção artística e as redes de consumo e re?ete também discussões que tem encontrado eco nas mudanças da natureza do trabalho, transitando entre o instinto e instituição, a regra e a exceção, a arte e a vida.

As artes vivas, como é o caso da dança, sempre foram marcadas por uma produção reconhecida por muitos autores como “imaterial”. Ou seja, cujo produto seria marcado pela efemeridade do processo que o constitui, sempre fadado ao desaparecimento a partir do  momento em que a ação se interrompe. Isso e outros aspectos estabilizados nos modos de pensar tradicionalmente a arte criam um dilema entre os próprios artistas, quando o tema é dinheiro ou o valor da obra de arte.

A maioria admite uma di?culdade para lidar com isso e busca tangenciar o problema com novas formulações na tentativa de concluir que a sua obra tem valor mas não tem preço. Uma série de contingências colaboram com as armadilhas presentes nesta di?culdade. Se a arte não tem preço, o artista não pode depender dela para viver. Por outro lado, se o artista paga as suas contas com as suas atividades artísticas corre o risco de deixar de ser o “gênio criador”, adentrando a esfera dos trabalhadores comuns. Se adere às regras de mercado e de empregabilidade, perde o distanciamento crítico que caracteriza a arte e a pesquisa. Não é   nada fácil discernir onde e como agir.

A fratura provavelmente vem de longe. O ?lósofo Immanuel Kant (1724-1804) dizia que o gênio era o dom do criador artista e era no artista que a imaginacão se liberava e o entendimento se alargava. Estas não seriam características universais, mas sim excepcionais.

Como Deleuze explicou no artigo escrito em 1963 sobre “A ideia de gênese da estética de Kant”, nem no artista nem no gênio encontramos uma subjetividade universal, mas sim uma intersubjetividade excepcional. E este sim seria um ponto importante a ser estudado.

Para Kant, o artista de gênio tinha duas atividades: de um lado ele criava, produzia o material de sua obra; e de outro lado formava e ajustava a sua imaginação liberada a um entendimento indeterminado, conferindo à sua obra um objeto de gosto. O gosto passou a ser, desde então, su?ciente para a obra do gênio se tornar um exemplo para todos.

O que me parece importante re?etir é se ainda tem sentido nutrir os ecos desse sistema kantiano, três séculos depois, diante das recon?guracões do mundo conexionista em que vivemos. Se o capitalismo tem  mercantilizado  os desejos,  por outro  lado, tem  também  apontado reenquadramentos signi?cativos. Não  seria o  momento  de repensarmos antigos impasses reconhecendo o desgaste das antigas dicotomias, dentre as quais destaca-se a do artista gênio versus os trabalhadores comuns?

Profanar as categorias tradicionais, pode nos ajudar a ativar novas redes. Para tanto é preciso deslocar os esforços. Ao invés de oscilar entre a intangibilidade de obras geniais e a total mercantilização da arte, seguindo as classi?cações dadas a priori, pode ser interessante re?etir acerca da sustentabilidade ética de cada experiência, tendo em vista os acordos possíveis.

Se é importante trabalhar de acordo com a singularidade de cada experiência, também é fundamental mudar o  modo  de  pensar,  evitando as perversidades da razão  cínica. Quando reconhecemos a arte  como  um estado de exceção, no  sentido proposto  por Agamben, de certa forma identi?camos que há uma suspensão das antigas regras, mas ainda não  sabemos quais são as novas. Por isso algumas soluções de sustentabilidade que pareciam efetivas em outros momentos históricos tem se mostrado cada vez mais ine?cientes. Talvez seja o momento, como diz Roberto Espósito de ao  invés de pensar na politização da vida (e da arte), buscar a vitalização da política.

Para tanto, é interessante lembrar a hipótese do neurocientista Vilayanur S. Ramachandran, para quem a função da arte é o acionamento do sistema límbico (o centro da vida). Precisamos reativar este papel. Ao invés de entretenimento ou produto de consumo, a arte precisa garantir sua função na cadeia evolutiva do ser humano, para contar com a devida respeitabilidade. Não pode ser tratada como um produto qualquer, mas sim como uma tecnologia de transformação vital.

Foi esta qualidade de existência que lhe garantiu a sobrevivência até hoje. E é assim que pode viabilizar a nossa permanência, pelo menos por mais algum tempo, neste planeta.

Christine Greiner é professora da PUC-SP.

Bibliogra?a

Agamben, Giorgio Homo sacer, o poder soberano e a vida nua I, trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

Agamben, Giorgio Profanações, trad. Selvino J.Assmann São Paulo:Boitempo, 2007.

Agamben, Giorgio A comunidade que vem. trad. Lisboa: Presença, 1993.

Butler, Judith Precarious Life, the Powers of Mourning and Violence. London: Verso, 2006.

Deleuze, Gilles A Ilha Deserta, textos e entrevistas (1953- 1974), trad. Luiz B.L. Orlandi. São Paulo: ed Iluminuras, 2006.

Esposito, Roberto Bios, Biopolítica e Filoso?a. Lisboa: Edições 70, 2010.

Greiner, Christine O corpo, pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: ed. Annablume, 2005.

Greiner, Christine O corpo em crise, novas pistas e o curto-circuito das representações. São Paulo: ed.Annablume, 2010.

Ikegami, Eiko Bonds of Civility, Aesthetic Networks and the Political Origins of Japanese Culture. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.

Ramachandran, V. S. A Brief  Tour of Human Consciousness: From Impostor Poodles to Purple Numbers. Nova York: Pi Press, 2005.

Sloterdijk, Peter Critique of Cynical Reason, trad. Michael Eldred. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1987.

www.seminariosmv.org.br/2008/textos/teixeira_coelho.pdf