Prazer no balé, como assim?

Escrever sobre aulas de balé clássico é uma demanda que vem em bom tempo, após décadas de aulas lecionadas de um balé diferenciado, sobre o qual iremos também aqui falar. Tal experiência surtiu um efeito em gerações de alunos que se tornaram professores de dança. O interesse salutar de qualquer pai/mãe ou professor é ter contato com a linguagem do balé, suas especificidades, como aperfeiçoamento da postura, equilíbrio e organização corporal, e também, através do contato com o balé, expandir os conhecimentos culturais de seu filho(a). Também a própria dança pode vir a usufruir deste público em potencial sensível à dança. No entanto, como fazer isso de modo “adequado”? Como procurar aulas de balé? Como entender a linguagem, sem restringir-se ao mito do balé?

A proposta deste artigo é refletir sobre a prática de ensino-aprendizado do balé clássico nas academias, dito no âmbito do ensino informal, ampliando o conhecimento de pais, professores e alunos futuros educadores. Para tanto, contamos com a colaboração de professoras especializadas no ensino do balé para crianças, jovens e “gente de dança”, uma vez que tal amplitude do nossos leitores pode provocar um debate sobre quem, na atualidade, ensina o balé, como e onde. São elas: Ângela Nolf, Beth Bastos e Zélia Monteiro. Sabemos que há ainda muitos profissionais espalhados pelo país ensinando de forma consciente o balé. No entanto, tais “personagens” da história da educação do balé em São Paulo já trazem questões bastante promissoras para este debate.

A prática de ensino de um balé diferenciado – e aqui entendemos ensino como forma pedagógica de reflexão e não somente transmissão de uma informação –se relaciona diretamente com o entendimento do que é o balé, de como a técnica transforma e beneficia o corpo por sua extrema inteligência e eficiência corporal. Zélia Monteiro fala que é necessário entender a técnica do balé no seu “como”. “O importante não é levantar a perna ou girar três piruetas, isso é conseqüência da compreensão do como funciona”, reafirma Beth Bastos. Apesar da dificuldade de sua realização, várias outras técnicas, ao longo do tempo, foram “amaciando” as aulas de balé.

Dessas técnicas, devemos lembrar da metodologia de Klauss Viana, sobre a qual estas três professoras tiveram estreito contato. Ele foi, sobretudo, um mestre do corpo na década de 80 para vários dançarinos e artistas, também atores, que buscavam novas formas de lidar com seu corpo. Conscientizar. Klauss Viana chamou atenção para a compreensão e expansão das possibilidades físicas e expressivas do aluno e deixou um legado reconhecido por muitos profissionais das artes cênicas no Brasil. Ao lado dele, também temos um conjunto importante de práticas de educação somática, tais como Eutonia, Feldenkrais, Alexander, entre outras, que são possibilidades de compreensão fina de mecanismos posturais que puderam tornar ainda mais sutil a compreensão de um battment tendue ou de um plié. São, também, práticas corporais isoladas.

Zélia comenta sobre o conhecimento que se deve ter hoje para lecionar o balé. “Além da técnica propriamente dita, noções de anatomia, cinesiologia e percepção ou consciência corporal são hoje necessárias e reúnem uma principal questão: escutar o corpo. As técnicas que “amaciaram” o balé servem justamente de afinação de uma escuta do corpo, de um jeito de observar, perceber e reparar a informação que o corpo passa para o praticante”, explica. É essencial, diz ela, para o professor de dança, este tipo de aperfeiçoamento. “Saber escutar e ler o corpo, bem como ensinar ao outro a escutar seu próprio corpo. São instruções muito precisas e este jeito de ensinar se aplica também, e ainda mais urgente, no ensino para crianças”, diz.

Para Ângela Nolf, normalmente o balé é conduzido de maneira formal, ou seja, feito como cópia do movimento, do que é belo, inclusive por aqueles que ensinam o balé para fins não profissionais – por este motivo, guardam uma imensa responsabilidade. “Torna-se uma obsessão pela forma, pela linha, pelo traçado superficial do movimento”, ressalta. Diferentemente, Ângela aponta para os passos como organização de princípios comuns. “O balé formalizou uma técnica de trabalho eficiente, preservando fundamentos básicos desenvolvidos ao longo de quatro séculos que, por sua vez, exige atenção e dedicação para funcionar bem”, diz.

Já a função dos ensinamentos do balé é o que chama a atenção de Beth Bastos. “As aulas ajudam na concentração, na organização do corpo, na disciplina, na paciência com o tempo-espaço. Também colaboram na memória, com as seqüências lógicas da aula e ainda na musicalidade, na coordenação motora fina e no desenvolvimento de habilidades para os dois lados (todos os passos são feitos no sentido da direita e da esquerda). Repetir e colocar ritmos diferenciados em cada seqüência promove também um arranjo simétrico com as partes do corpo”, ensina a professora.

Princípios como postura, transferências e equilíbrio são reaplicáveis em outras técnicas, comenta Ângela, cada qual guardando uma coerência: “cada sistema de movimentos e códigos pergunta ao corpo como cada pessoa administra estes novos comandos e instruções. O balé tem especificidades, como qualquer outra sistematização de treinamento corporal, e devemos atentar para a melhor maneira de lidar com as regras destes passos”. Deve-se, portanto, olhar para cada proposta de movimento como forma de organizar seu corpo, entendendo como ele funciona. Ângela fala do battment tendue: “um estender, um destacar que está presente em outras técnicas quando se separa uma perna da outra. Como conduzir a musculatura, como imprimir determinado esforço e ritmo diferentes são detalhes importantes neste movimento”.

Beth comenta que o aluno pode compreender de maneira ativa, sabendo que tudo tem uma razão para ser feito na aula. A estrutura, as direções, tudo pode ser uma experiência que reúne o pensar e fazer. O importante não é se exigir uma forma ou um resultado, mas o entendimento do aluno com o mecanismo do en dehors, por exemplo (rotação das pernas). Beth chama atenção para a verdade da organização do corpo.

Dito isso da técnica, é possível imaginar que para ser professor de dança deve-se não somente conhecer bem a técnica, mas também criar uma metodologia de ensino que proporcione uma aproximação saudável, não castrante, não rígida, do aluno com o balé. Ângela comenta que a técnica é sim difícil e exige cuidados e consciência de quem ensina. Na roda viva de estudantes que se tornam professores, devemos observar o aumento considerável das licenciaturas em dança espalhadas pelo país. Tal formação se tornou imprescindível. Fundamental hoje é ter informação, buscar novas maneiras de se dar aula de balé, entender, de fato, a estrutura mais intrínseca do balé aos olhos de outras técnicas de conscientização e, por fim, promover também no aluno esta percepção.

Beth sugere aos pais conhecer bem e conversar com o(a) professor(a), assistir uma aula, observar o desempenho da filha(o), estar junto, acompanhar as dificuldades e atentar para a sociabilidade das crianças. Ouvir os comentários dos alunos é responsabilidade de ambos os professores e pais.

Não se podem deixar de lado os objetivos de maior abrangência que as aulas de balé podem trazer à criança ou jovem: expandir seus conhecimentos culturais. Este público em potencial aprende sobre convívio com o outro, pode ser estimulado a ir ao teatro, ver dança, ouvir música, assistir ao cinema e ver exposições.

Zélia fala que os pais devem evitar aulas com o foco exclusivo na apresentação de final de ano. O perigo de tal armadilha é que, normalmente, este foco ignora itens mais caros de uma aula de balé, como, por exemplo, esquecer da expressão individual, uma vez que tais apresentações são feitas por turma, em massa. E ainda, cada criança reage corporalmente de uma maneira. “O fortalecimento muscular e alinhamento ósseo têm maior prioridade diante do resultado final. Ou seja, o foco em tais apresentações pode mascarar um processo pedagógico muito mais importante e intenso”, diz a mestra. Assistir às aulas periodicamente pode prevenir esse foco cego.

Ângela aconselha os pais a conhecerem a linha que a escola trabalha, qual é a conduta do professor, observar se há diálogo ou não e, sobretudo, atentar que existem outras opções para colocar seu filho numa expressão artística. Qualidades como se desenvolver em grupo, disciplina, ritmo, consciência corporal através de jogos e brincadeiras são salutares no desenvolvimento de qualquer ser humano. O professor, por sua vez, pode inserir aspectos artísticos dentro da aula com a criança, tais como pinturas, diferentes estilos de música, objetos, instrumentos etc., e transpor isso com a dança, como, por exemplo, trabalhar espacialmente com cores, músicas e cenas.

Ainda poucos são os professores voltados a um ensino assim coerente do balé, o que muitas vezes corrobora para a imagem equivocada do balé. “Há uma imagem idealizada da bailarina que pode estar nas fotos ou cartazes da academia, ou mesmo no modelo imposto ao aluno da bailarina clássica, repetido ainda pela mídia. No entanto, o aluno pode copiar a musculatura e não a forma do movimento”, diz Zélia Monteiro. Ela fez uma experiência filmada com alunas que fizeram o mesmo passo – port de bras – com dois professores de linhas diferentes do balé. As alunas copiavam a musculatura e compreendiam que havia uma diferença. Não se atrelavam à forma e sim ao jeito de executar. Deve-se atentar que, muitas vezes, é o adulto que busca a imagem da bailarina, o que impede que o contato com a técnica possa casar com a necessidade de enriquecer a expressão individual de seu (sua) filho(a) na aula de balé. No caso observado pela Zélia, a criança copia a musculatura, o jeito específico do corpo fazer o movimento, daí uma responsabilidade imensa do professor em conhecer profundamente e corrigir o modo e não a forma do movimento. O foco, novamente, deve estar na maneira de realizar e não no desempenho.

Disciplina sim, mas não rigidez. Para muitos profissionais da dança, é fundamental o conhecimento do balé para se ter versatilidade, para afinar o instrumento, contribuindo para o domínio de outras linguagens corporais, mas, como comenta Ângela, o balé não é a única das técnicas. “Assim como é possível se formar um profissional com outros treinamentos, é também possível proporcionar ao estudante não comprometido com uma carreira uma compreensão do que fazer com seu corpo, entender o caminho da técnica que se utiliza em aula. Ainda que o balé seja árido, a técnica funciona e dá liberdade corporal, proporcionando maior versatilidade e diálogo com o corpo”, garante.

Tomando por ponto de partida que somos responsáveis por fazer da experiência com a dança uma forma inteligente e, sobretudo, prazerosa de entender o corpo, as aulas de balé podem sim proporcionar prazer físico e mental. Mas quando o professor é capaz de proporcionar a compreensão das possibilidades que o aluno tem com o contato com a técnica do balé clássico.