Primal e vigoroso na abertura do Rumos Dança

Primeiro fim de semana de fôlego na Mostra Rumos Itaú Cultural – Dança 2012-2014. Das primeiras apresentações, às impressões inaugurais, portanto. E o que impacta o olhar é significativo para a escrita.

É sintomático que, num determinado de Sobre Expectativas e Promessas, o foco da luz saia do palco e aponta para a lateral, onde uma engenhoca é acionada, movimentando-se repetidamente. São movimentos quase primários, acionados provavelmente por ignição elétrica. Eles se contrapõem ao que, há instantes, Alejando Ahmed executara no palco. Ali, no cruzamento do mecânico com o orgânico, pistas para entender algumas das questões que movem o coreógrafo e pesquisador. E, ao que parece, a ignição que mais interessa é a do centro da cena, onde há um corpo e não uma máquina atuando.

Dos músculos e ossos que instauram o movimentos, podemos expandir a leitura dessa identidade que há muito vem pedindo, e conquistado, emergência na cena brasileira. Na relação de tempo e ambiente, Alejando Ahmed parece investigar ancestralidade para instaurar contemporaneidade. É significativo, portanto, a aproximação entre o primitivo e o absolutamente arrojado que coloca em cena. É vigoroso o seu grito primal, bicho-bailarino à boca de cena, investigando o futuro e desdobramentos dessas conexões.

Assim, persegue a cena do criador os recursos high techs, associados a engenharias corporais entre refinadas e grotescas, que se articulam num discurso estético vigoroso povoado, no decorrer a companhia que comanda, o Cena 11, por cavalos, cachorros, as máscaras de raposa e outros bichos – metafóricos ou não – sobre o linóleo. No seu solo, Ahmed evoca as expectativas que recaem sobre sua trajetória. Nesse sentido, segue fiel a um discurso que exige esforço de entendimento, pedido articulações neuronais para além do óbvio. Segue também pesquisando soluções para a dança. Aí, evidencia ainda a sua predileção por música produzida eletronicamente – outro pioneirismo seu, que, de novo, articula efeitos primitivos, algo tribais, às elaborações sampleadas, povoadas por loops e sobreposições, que contribuem para o enriquecimento que atravessa essa dança.

Ao optar por uma trilha composta ao vivo, a montagem evidencia o conceito de coreógrafo DJ, que sampleia e reorganiza as referências para sua ação, trabalhando com os recursos que enverga em seu corpo, mas colecionando e se apropriando de influências externas para criar camadas de sentidos em sua dança mixada e remixada on line, em ambiência.

Em Sobre Expectativas e Promessas é ainda mais potente o uso do microfone, que capta a presença do em torno para a composição da trilha. O som ao redor, de alguma forma, é a batida que se insere e movimenta a dança. O objeto movimentado, batido e repercutido, amplifica a cena. A movimentação do cabo do microfone sob foco da iluminação reforça a engenhosidade do bailarino, que capta e coreografa a luz, light painting que sinaliza a vitória do homem primitivo sobre o tempo. E foi quando ele pôde, enfim, dominar o fogo, que começou a organizar sua caminhada evolutiva. Assim, as expectativas que recaem sobre Alejandro Ahmed são sanadas uma vez que sua dança ainda é garantia de inventividade, vigor e potência na cena brasileira.

Ouriço, de Leonardo França, é antropofagia e ousadia, escatologia e irreverência, agressividade e delicadeza envergada por um verde-enigma que colore o palco de tons e nuances poéticas. Os espinhos estético-provocativos que o trabalho dispara são múltiplos. Os estilhaços são lançados à cena logo no início da performance. Então, a provocação da nudez se aprofunda quando o intérprete mostra o ânus à boca de cena, mandando vaidades ou pruridos estéticos para aquele lugar.

Talvez a parte mais vigorosa do trabalho seja quando França enverga a cabeça-ouriço, com seus fios esverdeados e luminosos, movimentando-se com particular eficiência. São momentos que provocam muitos sentidos, povoando a cena de reverberações poéticas. Estados de brutalidade e delicadeza fluem. Sugestões de dor, solidão e sobrevivência em tempos de selvageria pós-moderna acorrem a partir daquela criatura ali, regurgitando significados.

Desse transe, ele transita em seguir para a manipulação de objetos cênicos, buscando tirar deles mais referências e provocações. O uso do totem sonoro, que despeja visgo verde é engenhoso, mas também desloca um pouco a narrativa já fragmentada do trabalho. Mas, hábil, França consegue retomar a mão da performance surgindo de figurino que logo se revela dúbio.

Despindo a calça, eis um homem em trajes femininos, jogando com personas e papéis arquetípicos. Gueixa deslocada, mulher fragilizada, metáfora de desencontros, produto de estilhaços sociais, macho fragmentado, a figura dança algo frágil entre o que resta da cena misturada de tinta, cacos de vidro, sons que ainda reverberam. Assim, Ouriço renasce em visgo e viço. Não mais como criatura, mas como criação potente de significados, que pede reajustes, mas, por certo, já habita a galeria de criações de fôlego desta edição do Rumos Dança.