Produzindo outra realidade

Entre tantos empreendimentos culturais autônomos, frutos de uma gestão que foi entregue à iniciativa privada pelo Estado, existe um projeto político em andamento no Brasil do qual conhecemos suas ações isoladas, mas não sua dimensão nem suas diferentes estratégias e ações. Interesso-me por discuti-lo não para simplesmente destacá-lo dos demais, colocando-lhe na “ordem do discurso”, para conferir-lhe mais poder do que ele já tem. A idéia aqui é apresentar seu desenho material, do meu ponto de vista, para abrir um debate sobre sua relevância e pertinência, seu alcance, seus efeitos e as contradições inerentes a ele.

Tal projeto começa no Rio de Janeiro, dentro do Festival Panorama de Dança, e a partir de 2006, na parceria com dois outros eventos do Circuito de Festivais (Fórum Internacional de Dança – FID, Belo Horizonte, e Bienal de Dança do Ceará, Fortaleza) [1] e mais a Red Sudamericana de Danza, ele vem ganhando outras dimensões. O principal foco de seu interesse é a inserção de artistas brasileiros e mais recentemente de sul-americanos no mercado europeu da dança. Tal intuito almeja promover uma relativa estabilidade de condições para que esses artistas possam desenvolver seus projetos com certa autonomia. As linhas de ações efetivadas para alcançar tais fins consistem em: receber curadores europeus durante as programações para que os artistas locais, que delas participam, passem a ser conhecidos; promover residências dirigidas por artistas que já trabalham neste mercado para estabelecer uma aproximação desse ator social com um grupo de artistas locais; produzir obras criadas em colaboração entre artistas brasileiros, sul-americanos e europeus para aumentar os vínculos entre essas realidades diferentes.

Alguns reajustes em aspectos do projeto, detectados como negativos, têm sido feitos. A redução do número de criações de artistas europeus, apresentadas na programação do Panorama, é um exemplo. O apoio do Estado para artistas que recebem convites para se apresentar no exterior ainda é significativo em países europeus e isso facilita muito a produção de uma obra num evento. O que pode ser uma armadilha, pois uma programação pode ser montada apenas com o que é mais fácil de produzir e não com o que responde aos princípios de um pensamento da curadoria. Por esse motivo, espaços para obras provenientes da África, Ásia e América Latina vêm sendo abertos. A padronização dos valores dos cachês relativos ao tamanho da produção é outro exemplo de reajuste concretizado. Tais estratégias caracterizam a intenção de promover uma relação de tratamento menos desigual entre as produções de dança dos eixos norte e sul numa cultura que se rende à experiência da vida “globalitária”, como diria Milton Santos [2].

Quem assiste uma edição do Festival Panorama de Dança vê as coisas acontecendo, mas não tem clareza da dimensão do projeto político que está norteando suas ações. A iniciativa de pessoas da comunidade da dança diante do seu contexto produz realidade. São poucas pessoas concebendo e gerenciando a realização das idéias, mas a quantidades de relações de parcerias e pessoas envolvidas para a efetivação do projeto é bem grande. Uma idéia organizada como prioridade por uma só pessoa quando encontra eco no contexto pode se transformar em dinâmica cultural, elemento de ligação entre diferentes pessoas e mercado de trabalho para artistas. Hoje, tal projeto já tem alguns resultados positivos em relação a seus objetivos principais. Artistas como Claudia Müller, Dani Lima, Bruno Beltrão, Frederico Paredes, Gustavo Ciríaco, Marcela Levi, que em algum nível estiveram envolvidos em ações deste projeto, já têm diferentes experiências de vender seu trabalho no mercado europeu da dança.

Vamos tomar como exemplo a última ação desenvolvida por esse projeto político, o coLABoratorio (Encontro Sul-Americano Europeu de Coreógrafos), para entendermos como elas funcionam na prática. Idealizado por Eduardo Bonito, um dos atuais diretores do Festival Panorama de Dança, o coLABoratorio foi criado com a intenção de dar um passo na direção da integração de artistas em nosso continente, visando maior desenvolvimento da cena da dança contemporânea. Para tanto, ele fez uso de sua experiência como produtor na Europa, das relações que lá construiu, dos modos de subvenção que lá existem e de criatividade para justificar o financiamento de um projeto por aquele continente, que é dedicado, em primeira instância, ao nosso continente.

Grande parte do dinheiro vem do Programa Culture 2000, da União Européia, que contemplam projetos de intercâmbio cultural. Portanto, o proponente do projeto não poderia ser o Panorama, um evento Brasileiro. Dessa forma, quem apresentou o projeto foi Nicky Childs – diretora do Artsadmin (Londres) -, que também indicou para participarem do projeto Lucy Cash e Simon Vicenzi [3]. Mark DePutter, diretor do Alkantara (Lisboa) e antigo parceiro do Panorama, junto com Tatjana Langaskova – diretora do Theatre Institute (Praga) – também assinam o projeto, indicando respectivamente Luiz Guerra, Rafael Alvarez, Ioana Popovici e Magdaléna Šloncová. Juan Dominguez, do Festival In-presentable (Madrid), embora não co-organize o evento, também indicou Estela Lloves, completando a lista de artistas europeus envolvidos e que representa um terço do número total de participantes, justificando o investimento desta instituição.

Pessoas ligadas à Red Sudamericana de Danza indicaram: Josie Cáceres, do Equador; Federica Folco, do Uruguai; Fabián Gandini, da Argentina; Zoitsa Noriega, da Colômbia; Rommel Nieves, da Venezuela; Francisca Sazie, do Chile. No Brasil, pelo Panorama, no Rio de Janeiro, Nayse López e Eduardo Bonito indicaram Andréa Maciel e Michelle Moura. Pelo FID, Adriana Banana indicou Margô Assis e Renata Ferreira, e pela Bienal de Dança do Ceará, David Linhares indicou Valéria Pinheiro e Fauller. Ainda participou do projeto a artista Sara Gebran, que nasceu na Venezuela, é de família libanesa, mas vive na Dinamarca, país que apoiou sua participação.

Dividido em duas fases, o coLABoratorio aconteceu primeiro durante todo o mês de novembro de 2006 no Rio, aproveitando o acontecimento do Panorama, e depois em cinco semanas entre março e abril de 2007 em Fortaleza, Belo Horizonte e Rio. A primeira fase serviu para que os artistas se conhecessem e decidissem com quem gostariam de colaborar. Durante as duas primeiras semanas, as atividades foram coordenadas por Karin Elmore (Peru), Marcelo Evelin (Teresina), Vera Sala (São Paulo) e Xavier Le Roy (Alemanha – França). Na segunda etapa, foi um mês de ensaios e uma semana de apresentações nas três capitais brasileiras. Os sete resultados mostrados ao público no Rio [4], que tive a oportunidade de ver, eu não chamaria de obras e sim de exercícios cênicos, até pelo tempo de elaboração que eles tiveram para prepará-los nesse contexto em específico.

Andréa, que apresentou o videodança Os sentidos do prazer: movimento Nº2, não teve que colaborar com ninguém. Não sei se por esse motivo parece ser o produto mais bem acabado e consistente na relação entre forma e conteúdo, muito embora o nome escolhido não se relacione com o que de fato ele é. O roteiro é dividido com Marina Abasolo e Paulo Mendel. Sobe a trilha sonora de Daniel Brito. O corpo de Andréa elabora, num fundo infinito branco, junto com uma fita colante, todo um universo de imagens que simulam paisagens urbanas e/ou corporais abertas, e que instiga questões concernentes à relação do corpo com a cidade. Um pouco limpo e delicado talvez, preso em demasia à sensibilidade da linguagem publicitária com certeza.

To be SE(r)QUENCES, que foi apresentado por Zoitsa e Magdalena, é um exercício que dá conta do que se propõe: trabalhar com materiais extra-corporais (papel e vento). Mas não se arrisca em nada e pouco avança no desdobramento do que propõe em cena. Imersas numa estrutura de papel, como uma cortina que caía do teto e deitava cobrindo o chão até quase a platéia, as duas artistas propunham ações com outros papéis e dois ventiladores: uma embrulhava o corpo da outra, elas manipulavam com o ventilador o papel moldado pelo corpo, grafitavam perfis de pessoas em moldes de papel vazados sobre o próprio papel, picotavam todo o papel utilizado e manipulado com o ventilador e finalmente manipulavam, por traz, o próprio cenário, que grafitado e cheio de papel picotado, avançava na direção do público. Faltou elaboração na conexão entre as ações e a presença performática.

O desafio mais contundente, embora demasiado prolixo, foi apresentado por Estela, Margô e Sara: Exercício para não se esconder e sair correndo com a bunda de fora ouvindo canções-intestino. Três intérpretes fortes, mas com qualidades muito diferentes, dividiam a cena cada uma no universo que domina. Margô, discreta e obsessiva, enfileirava 27 garrafas em linhas precisamente retas; Sara, se relacionando de modo esquizofrênico com um varal, pendurava sacos plásticos e papelões, cocos e cerveja em lata; e Estela, com seu caderno de anotação, quando não transcrevia frases nas paredes da sala, narrava, a partir de seus escritos, uma história sem pé nem cabeça – como se fora um jogo de futebol. Em meio ao caos dos encadeamentos, tratou de modo singular problemas sociais sérios.

Talvez o exercício mais elementar tenha sido Maravilhosa, de Josie e Federica. Não pela escolha do tema, mas pelo modo ingênuo como enfrentaram a questão que não parecia ser importante para elas: o que se vende quando se vende uma obra de dança na qual as intérpretes estão implicadas. A performance foi dividida em duas partes. Na primeira, Federica dançava enquanto Josie explicava para o público alguns de seus problemas corporais. Na segunda parte, Federica explicava do que se trata o trabalho, distribuía cartões de visita para o público dizendo que aquela obra poderia ter o tempo que o cliente desejasse e ocuparia qualquer espaço, que seu preço variava de acordo com a duração desejada e que havia descontos para curadores internacionais. Então, ela cogita a possibilidade de apresentá-la na praça de alimentação de um shopping, reduzindo o espaço ao mínimo e o tempo para 5 minutos, controlado por um voluntário da platéia. Tratada de modo tão simplista, com pouca propriedade, essa questão séria parece banal no exercício.

A instalação com vídeo de Fauller e Renata tão pouco avançou muito no que se propunha. Deitados em um módulo preto, vestidos com roupas da mesma cor, eles ficavam imóveis perto de vários carimbos diferentes. Já no vídeo projetado numa tela no canto da sala, uma bunda era carimbada. Na seqüência, eles apareciam em ruas de diferentes capitais do mundo, falando numa banana como se fora um celular. Expressões como “… relações Brasil – países desenvolvidos, brasileiros”, utilizadas no release do trabalho, é índice da fragilidade conceitual na qual eles desenvolveram seu trabalho. O modo como eles o formataram só reforça essa percepção.

Interessados em investigar conceitos de “realidade/ficção”, Michelle Moura e Fabian Gandini, em Liquado, alcançaram um nível bem complexo em seu evento. Através de fones de ouvido, alguns espectadores recebiam instruções para realizar tarefas diferentes num dos grandes espaços da Fundição Progresso. Nesse lugar havia alguns elementos visuais falsos dos quais só se dava conta quem se aproximava deles – por causa de uma instrução recebida via fone. Em muitos casos, a instrução era passar o fone para outra pessoa. Assim, a posição sempre estava mudando, de acordo com a indicação do fone. Os dois performers também realizavam algumas ações não muito espetaculares, o que gerava uma grande dúvida em relação a quem fazia a obra. Havia uma tensão no espaço, uma curiosidade e uma suspensão que provocava um tipo de relação do sensível pouco usual num espetáculo de dança. Trata-se de um dispositivo que necessita ser muito testado para encontrar seus tempos, um desenrolar mais eficaz e menos frouxo.

Carmen Miranda is dead, de Francisca, Loana, Rafael e Luis, pareceu o mais pretensioso dos resultados, não fora pela presença cênica desestabilizante de Loana. Eu diria que o trabalho foi um exercício para o ego dos jovens performers, que jogaram com questões de gênero de modo irresponsável. Se alguém desavisado vê a obra e não lê o seu release, até pode, através de um grande exercício de imaginação, criar pretextos que justifiquem aqueles corpos vestidos de trajes de banho e casacos de pele desfilando pelo espaço vazio. Se eles pretendiam representar as suas experiências como estrangeiros através da trágica história da cantora Carmem Miranda, eles só conseguiram construir uma auto-identidade frívola.

Penso que há que se cuidar melhor do que se vai a público e como esse produto é anunciado, pois para ser recebido da maneira que lhe corresponde, tem que saber explicar muito bem para a audiência do que se trata aquilo que será apresentado. O resultado público de tal ação não faz jus a sua dimensão política. Os verdadeiros resultados são de longo prazo, menos imediatos. Eles se efetivaram como conseqüência das relações interpessoais estabelecidas, da vivência intercultural experimentada e dos futuros reencontros já agendados fora do controle do projeto em si. Trata-se do gatilho de uma idéia disparada na direção da efetivação de realidades vivas, que, como tal, são incontroláveis, tanto no sentido positivo quanto nos frágeis. Ficam aqui minhas idéias para reflexão e debate.

Notas:

[1] Parceria que visa estabelecer um plano de estratégias conjuntas para as mostras, criada em 2005 durante a Conferência Internacional de Dança (evento que reuniu acadêmicos, críticos, programadores e artistas da dança dos quatros continentes, no Rio e em São Paulo e foi promovido pelo British Council e Itaú Cultural com curadoria de Eduardo Bonito e Nayse López). Além dos eventos citados, o Circuito envolve também o Festival de Dança do Recife.

[2] Por uma outra globalização: Do pensamento único à consciência universal, Record 2006.

[3] Ambos não concluíram o projeto.

[4] Ruaca, de Rommel Nieves e Valéria Pinheiro, não foi mostrado no Rio, portanto não será aqui comentado.