Quando o melhor da festa é (o) saber

Estuda-se para descobrir como fazer perguntas adequadas. A autonomia que todo processo de educação deve despertar depende da aquisição dessa habilidade preciosa: saber perguntar. (Helena Katz – Sobre fundamentalismos teóricos – Coluna do idança, posted on 15/10/2006)

A programação completa da décima primeira edição do Festival de Dança do Recife[1] durou muito mais do que o período de 5 a 15 de outubro, pois se distribuiu também por dias de julho, agosto e setembro, e evidenciou um problema importante a ser resolvido: é urgente um curso superior de dança na cidade.

Algumas mudanças estruturais foram feitas neste ano, como o convite de um único curador (Ernesto Gadelha, CE), a ampliação do período de realização e o deslocamento de algumas oficinas e apresentações para as Regiões Político-Administrativas (as RPAs), mas, de longe, a de maior efeito foi ainda outra: a ênfase nas atividades formativas e de reflexão. Com um ou outro desses objetivos (ou os dois), foram realizados: uma residência artística, um curso de vídeo-dança, uma mostra comentada de vídeo-dança, um seminário sobre Dança e novas tecnologias, duas palestras, uma comunicação de pesquisa artística, um lançamento de livro, três oficinas práticas e seis encontros com os criadores dos espetáculos apresentados (o Dança em Palavras). Além disso, o seminário A dança e o ensino: propostas e reflexões, incluído no Projeto Reciclarte 2 (Grupo Experimental), foi incorporado à programação do evento.

A gradual inserção de atividades com fins pedagógicos na programação do Festival é perceptível, mas chegou à sua experiência máxima em 2006. Isso, por um lado, conota uma tentativa de o evento anual de dança com maior orçamento do município suprir em parte ou se aproximar do papel que deve ter uma política mais ampla e contínua para a dança na cidade. Por outro, parece responder ao desejo de uma formação mais sólida e com maior duração, que já vem se fazendo notar há algum tempo entre as pessoas que atuam em dança no Recife.

A participação do público nas palestras, na mostra de vídeo, nos debates do Dança em Palavra mostrou um amadurecimento quanto ao uso do espaço dessas atividades para promover reflexões instigadoras, propiciar a vontade de estudar mais e se colocar positivamente em estado de dúvida, de pergunta. A vontade de extrapolar o caráter sazonal das discussões incluídas no evento se manifestou através das queixas quanto ao limite do tempo no desdobramento de todas as ocasiões que promoveram debate dentro da programação do Festival. Além disso, arrisco dizer que o “clima de festival” se localizou muito mais nessas atividades do que na mostra de espetáculos.

Uma ressalva pertinente que foi feita na avaliação é a de que os proveitos das ações do festival, dos debates à oportunidade de ver espetáculos, deveriam ter chegado a um público mais significativo em termos numéricos. Além disso, os cursos, oficinas e residências, cujo acesso foi através de processo seletivo, deveriam ter contado com divulgação e seleção mais abertas (transparentes) e não com um confuso procedimento de convites diretos e de critérios desconhecidos. Um evento com esse porte e com verba pública precisa chegar à radicalidade quanto à democratização de seus efeitos, tendo como subentendido a oportunidade que ele representa e como suas ações repercutem, tanto na categoria de dança quanto na população no seu todo.

Entretanto, o significado de o festival ter incluído todos esses itens e o modo como o público que pôde estar presente usufruiu deles nos leva a reconhecer um sintoma. Mais do que um “programa de eventos ou espetáculos culturais renovado periodicamente em apresentações que podem ou não ter caráter competitivo” (uma das acepções de festival no dicionário Houaiss), a dança no Recife necessita, no momento, de iniciativas de efeito mais duradouro e extremamente focadas nas ações atreladas à ação de saber: conhecer, ser ou estar informado; ter conhecimento de; ter conhecimentos específicos (teóricos ou práticos); poder explicar; compreender; indagar, perguntar. O adubo para essas práticas vimos presente no prazer que as pessoas mostraram em perguntar, cruzar informações articuladas nas palestras com resultados estéticos recém absorvidos ou produzidos. E é isto um pressuposto importante para a existência de um curso superior de dança, um espaço contínuo para pesquisa, discussão e estudo. Coincidentemente ou não, na avaliação, as palavras finais do homenageado do Festival neste ano, Zdenek Hampl[2], foram acerca de não entender por que o Recife ainda não possui uma faculdade de dança e da máxima urgência com que isso precisa ser tratado.

Com a compreensão desta urgência, o seminário de Arnaldo Alvarenga, A dança e o ensino: propostas e reflexões, oferecido de 13 a 15 de outubro, representou, antes de tudo, um alerta para todas as frentes de ações que é preciso empreender para abrir uma faculdade de dança e para a conexão inevitável entre a educação em dança e sua importância para a escolha de um pensamento sobre o corpo. Não é coincidência que essa discussão, que acabou encerrando o Festival de Dança deste ano, faça parte, na verdade, da programação do Projeto Reciclarte 2, dirigido pela diretora do Grupo Experimental, Mônica Lira, que é também membro do Movimento Dança Recife[3]. A preocupação com o ensino da dança, em especial com a urgência de uma faculdade de dança para o Estado de Pernambuco, é uma das principais pautas deste coletivo no momento. Desde 2005, o Movimento vem promovendo discussões acerca da viabilidade da concretização desse desejo, e está em processo de diálogo com professores, com a coordenação do curso de Educação Artística – Artes Cênicas, da UFPE e com o reitor desta instituição, além de já ter iniciado um processo de pesquisa dos projetos pedagógicos dos cursos de dança de nível superior existentes pelo país. Após essa etapa, começará uma discussão sobre como esses projetos se confrontam com as demandas específicas do Estado de Pernambuco em termos de mercado, de anseios da categoria de dança e das vertentes de atuação em fase mais avançada de organização.

Iniciativas como essas precisam de apoio irrestrito dos profissionais de dança, de gestores públicos da Cultura tanto do Município, do Estado, quanto do âmbito federal, de parlamentares e, de resto, de todos os que têm interesse nos efeitos que um curso superior de dança poderá proporcionar à cidade, a Pernambuco, e mesmo a estados vizinhos.

É verdade que o espaço aberto pelo atual formato do Festival de Dança do Recife para o conhecimento e a reflexão é valoroso e deve continuar a existir. Mas é também verdade que a ansiedade demonstrada de que esse espaço seja ainda maior é sintoma mais que evidente de que isso não pode estar restrito e condicionado a eventos de caráter originalmente festivo (pelo rigor da palavra), por maiores que sejam as proporções que essa festa chegue a atingir.

[1] Ver link http://www.recife.pe.gov.br/modelo.php?id=171&Tipo=D

[2] Conforme informações do Acervo RecorDança: nascido em Brno, Tchecoslováquia (atual República Tcheca), em 1946. No começo de sua carreira, na antiga Tchecoslováquia, torna-se o principal intérprete da Companhia Lanterna Mágica, uma das criadoras do teatro de improviso europeu. Na década de 70, muda-se para o Brasil e se destaca no cenário artístico como coreógrafo, com trabalhos no Rio de Janeiro, São Paulo e Recife.

[3] Site do Movimento Dança Recife: http://www.dancarecife.net/index.htm