“Quem são seus mestres?”

Sob os princípios de uma metodologia mais servil do que criativa, estamos vivendo uma nova era no ensino e na produção das danças de rua no Brasil. Mas ainda não aprendemos a pensar como um centro produtor de novas idéias.

Bruno Beltrão

No inicio da década de 90, quando a dança de rua começou a aparecer no Rio de Janeiro, ela era uma massa, um bolo de coisas onde não era possível determinar com clareza quais eram as suas fontes e a única referência que as pessoas tinham era o que viam na televisão. E o que vinha da televisão era o Michael Jackson bombardeando o mundo com seu jeito peculiar de misturar jazz e alguns elementos de funk styles[1] . Não se sabia ao certo o quê era o quê.
No Brasil eram inúmeras as tentativas de sistematizar esta dança a partir das migalhas de informação que se dispunha. Criava-se esquemas, tentava-se dar coerência àquilo que se praticava. Para os jovens encantados por aquela dança mágica, uma das metas era encontrar e fundamentar melhor aquilo que faziam.

Eram caçadores da técnica. Sentiam-se como praticantes de algo novo e por isso sem consistência, que não havia reunido elementos suficientes para gerar um fechamento, uma identidade. A dança de rua americana não é diferente de tudo aquilo que é parte da cultura, e por isso aportou por estas terras de forma diferente da que se formou no leste e oeste dos Estados Unidos. Como precisamente citou o jornalista Leonardo Leão, “Em seus primeiros passos no Brasil, o hip hop não era compreendido como um movimento, e a maioria dos brasileiros não sabiam sequer o seu nome”.

Ao longo desta mesma década, enquanto a street dance compreendia melhor a sua prática, companhias brasileiras originalmente ligadas à dança de rua passaram a se distinguir por buscarem um caminho próprio. Foi assim que o Balé de Rua de Uberlândia e o Dança de Rua do Brasil ampliaram e transformaram o hip hop ao seu próprio gosto. Foram os primeiros grupos no país que aceitaram perder um pouco da dança  que aprenderam desde cedo para ganhar em assinatura. De 1995 até 1999 no Brasil, a dança de rua – já super transformada pela sua influência do cheerleading americano, do jazz, da aeróbica e do balé – teve como a sua principal referência aquilo que era produzido em Santos, sob a direção do coreógrafo Marcelo Cirino.

No final dos anos 90, com a fórmula das boys bands
atualizada, o Brasil também é tomado de assalto pelos vídeo-clipes e aquelas
vídeo-coreografias, que apenas rasamente influenciada pelos estilos clássicos
das danças de rua, tinham uma composição altamente compromissada com a forma e
as poucas idéias existentes no trabalho das bandas. Os jovens aderiram a este
estilo de dança e a receita do grupo Dança de Rua do Brasil foi esquecida.

Mas foi a partir do ano 2000 que as danças de rua começaram a ganhar a configuração que se tem até hoje. Parte importante dos professores e coreógrafos, que guiam e orientam os jovens dançarinos brasileiros, passaram a pregar de forma intensa uma volta radical as bases da dança de rua americana. Passaram a lembrar frequentemente aquilo que já se sabia: as danças de rua não fazem parte da cultura nacional. Passou-se a lidar com valores que quase sempre apareciam em forma de mandamento xiita: “Respeite os criadores. Você
só dança porque ELES foram geniais.” Ou, “Evoluir é preciso, mas manter a autenticidade é fundamental”.

Estes professores, apesar de terem na ponta da língua tudo aquilo que é dito pelos ainda vivos, vultos do hip hop, são pouco ou nada familiarizados com a história da educação. Em pleno século 21, fazem renascer uma estrutura metodológica só encontrada nas artes marciais chinesas e no sistema militar de transmissão do conhecimento. Enxergam a realidade de uma forma altamente hierarquizada, pedem a benção dos mestres para trabalharem dignamente e tentam a todo custo cristalizar o jeito “correto” de se relacionar com as danças de rua no Brasil.

Agindo como inspetores da “correta” cultura americana, estes profissionais passaram a percorrer os espaços físicos e virtuais checando a autenticidade do que aqui é feito em relação ao legado americano. – “Quem são seus mestres?” começa um locker faixa preta a atirar. Ou arrogantemente lançam: – “Vamos testar seus conhecimentos”. Para estes discípulos é recorrente falar de “uma cultura certa”. Sempre se referem aos criadores americanos da dança de rua como deuses e para simbolizar isso fazem uso contínuo de CAPS LOCK: “Nos Estados Unidos, ELES criaram uma cultura…”.

O tráfego de informação em relação ao aprendizado das danças urbanas passaram a ter uma via de mão única, dos EUA para o Brasil. De cima para baixo. Professores e alunos parecem concordar que a única dança de rua
existente é aquela que surgiu lá, a qual devem dominar a vasta lista de nomes e termos que seus criadores disseminam. E pronto.

Através de um tipo muito especial de negócio, passou-se a lidar com a dança de rua como uma espécie de franchising. As danças urbanas,
como vêm sendo cultivadas atualmente, utilizam a “marca” e “estrutura” do modelo americano, e como qualquer franchising, possuem regras explícitas quanto à utilização de seu conteúdo.

Mas este é um negócio sem contrato, firmado muito mais pela submissão deliberada em relação aos criadores do que por uma imposição da matriz. É sabido que o Brasil sempre teve uma relação toda especial com os EUA e não temos o costume de olharmos o mapa mundi de cabeça para baixo. Lá de dentro da nossa raiz colonial o mundo ainda nos é apresentado e aceito deste jeito, apesar de um tal poeta já ter dito:

“Estrelas acima; estrelas por todo o horizonte; estrelas em baixo: pensem em si mesmos aí – mas não façam disso uma abstração, compreendam como realidade – sentados em cima de um céu de estrelas.”

Uma das soluções para este impasse é começar a fazer outros tipos de perguntas: E a danças urbanas locais? Como elas acontecem? O que são? Em que podem se transformar? Como potencializar e gerar um movimento mais criativo do que repetitivo? Enquanto a dança de rua brasileira insiste no modelo da subserviência, deveria ser igualmente interessante pensar sob um outro ponto de vista, mais central em relação ao que é produzido. Um dia o mundo descobriu a força e a beleza das danças de rua por que seus muitos criadores se permitiram trocar com o mundo e ousaram olhar aquilo que faziam como criação. E por amor próprio, por sobrevivência, precisa-se assegurar a vontade de

ir em busca daquilo que ainda não foi feito. Muitos jovens brasileiros de hoje querem se tornar coreógrafos e professores de dança amanhã, e para esta tarefa, precisarão de muito cruzamento de informação para conseguir alguma coisa com valor tanto artístico quanto de mercado.

O importante não é aceitar as fronteiras políticas e agir impulsivamente para vencer a disputa. Não é um jogo Brasil contra Estados Unidos. O que existe são pessoas se conectando, interagindo e interpretando o mundo. O importante é incentivar a necessidade de trazer ao mundo soluções que o enriqueçam, e em arte, muitas vezes estas soluções funcionam quando vistas sob a perspectiva de uma transformação criativa.

Porém esta corrida exacerbada as fontes de informação do hip hop também atualizou o conhecimento a respeito das danças urbanas no Brasil. Talvez seja possível pensar que este é um bom cenário, especialmente para os jovens que entram em contato com a dança de rua, pois é através da referência que suas bases serão construídas.

Nos mecanismos de busca da internet todos podem encontrar facilmente, em nome dos criadores americanos, a definição do que esta dança de rua é, mas não acharemos a bula daquilo que ainda está por vir. Cabem aos maiores de idade do hip hop – mas agora, acima de tudo artistas – arriscar, transformar muito e ensinar estudantes e dançarinos a fazer o mesmo. É fundamental ir em busca da história das danças de rua, sabendo que essa sempre se modifica e se atualiza com o passar do tempo. Mas é igualmente fundamental traduzir, para que os jovens de amanhã estejam bem perto dos criadores das danças que eles admiram e desejam aprender.

Agradecimentos especiais a Rodrigo Bernardi, Guto Vieira e Hugo de Oliveira.

[1]

O termo
se refere principalmente às danças Popping, Locking e Boogaloo, criadas na
costa oeste dos Estados Unidos durante a era Funk, e mais tarde foi incorporado como parte do movimento hip hop.