Rede Terreiro de inclusão, negócios e afirmações

Por Carlinhos Santos

Depois de três edições realizadas em Belo Horizonte, a Rede Terreiro Contemporâneo de Dança inaugurou sua itinerância de 13 a 18 de outubro, em Uberlândia, reafirmando os propósitos de pensar ações artísticas de caráter social e reverberação política no âmbito da construção e visualização da multiplicidade de fazeres identificados com o conceito de dança negra no Brasil.

Concebido pela Associação SeráQue Cultural e realizado com recursos da Lei Estadual de Incentivo a Cultura de Minas Gerais e patrocínio da Petrobras, o encontro teve participação de artistas, produtores e curadores de festivais e mostras nacionais e internacionais. Também foram realizadas oficinas práticas de dança, oficina teórica de Inovação em Projetos Culturais, Mostra de Espetáculos, Mostra de Documentários e uma Rodada de Negócios, articulada em parceria com o Sebrae.

Realizada pela primeira vez na Rede Terreiro, a Rodada de Negócios teve participação de Arnaldo Siqueira, do Cena Cumplicidades; Diana Pinheiro Pontes, do Encontro de Dança, de Natal, Cristiane Marques de Oliveira, curadora e programadora do SESC Palladium, de Belo Horizonte, diretor da companhia que leva seu nome e programador da 1ª Mostra de Teatro e Dança de Origem Africana; do representante da Funceb – Fundação Cultural do Estado da Bahia, Matias Santiago; de Ana Alvarenga, coordenadora de Projetos Educativos e de Extensão / Cefart – Centro de Formação Artística e Tecnológica da Fundação Clóvis Salgado, também de Belo Horizonte.

Diretor geral do Cena Cumplicidades, festival que atualmente movimenta as cidades de Olinda, Recife, João Pessoa e Buenos Aires, Arnaldo Siqueira considerou produtiva a atividade em Uberlândia pois, embora tenha agregado grande quantidade, teve um recorte interessante ao se voltar para a estética negra.

– Um viés internacional nessa produção seria ainda muito mais interessante. A Rede teve recorte inovador e a produção foi muito significativa.

Diretor da Coletivo Breaking no Asfalto, de Belo Horizonte, Rodrigo Resende Peres concebeu a Rodada como um recurso de inserção da sua companhia no ambiente da dança brasileira.

– Viemos de um lugar híbrido, nevrálgico e tenso, para chegar a pessoas que nos assistem, nos veem e dizem algo interessante, nos tornam mais empreendedores, afirmando o lugar de onde viemos e nos apontando para onde ir. Estamos articulados com artistas e militantes que nos fazem perceber a importância de percorrer este caminho – afirmou.

Luiz Monteiro, da Cia. Rubens Barbot Teatro de Dança, do Rio de Janeiro, levou quatro propostas à Rodada, conversando com seis programadores. Como gestor, produtor e coreógrafo, diz que a arte tem que ser vista como produto, portanto tem que ser mostrada para as pessoas, o público.

– A Rodada é uma boa oportunidade para a arte fruto de pesquisas e estudos, que não pode ser vista pelos mesmos, mas é para o mundo. Todos conhecem Rubens Barbot, mas saindo do eixo Sudeste, poucos viram. É preciso deixar de ser mito e passar a ser visível, ser real.

Organizador do encontro em parceria com a produtora Bete Arenque, o bailarino Rui Moreira destacou a importância da realização de mais um Rede Terreiro na perspectiva da afirmação da negritude no Brasil, no cruzamento de um pensamento e uma estética específicos:

– Levar esta ideia é essencial para a sobrevivência da identidade da dança negra no Brasil e abre uma perspectiva, um norte de sentido, para o conhecimento e o desenvolvimento da sociedade. Estas ações e relações se manifestam no mundo, derivam em ações artísticas, de caráter social, com alcance político. São muitos processos, pares e ímpares, que contribuem, com objetividades e subjetividades – destacou Rui Moreira.

Imagens de dança, dança urbana em cena

Além de articular o encontro, Moreira mostrou dois trabalhos da companhia que leva seu nome na Mostra Artística, realizada no Teatro Municipal de Uberlândia – Co Ês e Definitivo é o Fim. Em Co Ês, dançou em torno dos laços da tradição, revisitando a mãe África para rever possibilidades e caminhos para seguir dançando tal qual vivendo. Com seu corpo híbrido, atento, ciente, sabedor e investigador de possibilidades, o intérprete faz do trabalho uma viagem que inclui sonoridades, falas e reverberações de um caminho que o “co ês/com eles” espelha, reflete e refrata questões em torno de pertencimento, memória, sentidos de cena, saídas e chegadas possíveis. O termo que dá nome ao trabalho propõe coletividade, diálogos que incluem jeitos próprios de falar e de (com)portar. São aportes de mundo: com eles de lá e de cá, com todos os dispostos a vestir outras pátrias para redesenhar novas geografias humanas.

Num debate que antecipou a apresentação Duo, doa Manos do Hip Hop, de Uberlândia, e de Definitivo é o Fim, uma conversa mediada pela professora e artista da dança Edileuza Santos, de Salvador, pontuou questões em torno das danças feitas em família, da tradição e da transmissão dessas informações através de gerações, bem como sobre os espaços para a dança negra.

Segundo Edileuza, a dança negra se afirma pelo corpo presente, atento às questões religiosas, imbricado em questões políticas. Nesse sentido, é preciso demarcar espaços nos festivais e editais, que parecem insistir na invisibilidade dessa matriz cultural. No atravessamento entre corpo, lugar e contexto, destaca-se ainda que a cultura negra é permeada por tradição e coletividade contemporânea.

É o contexto da companhia Manos do Hip Hop, de Uberlândia, que se situa entre o trânsito/transe de reverências às danças religiosas para os recursos das dança urbanas. No Duo apresentando na Mostra, ficou evidente a dança resultado do ambiente de dança específico de Uberlândia, sua tradição do congado e do moçambique, misturada à emergência do hip hop e suas derivações praticadas com muita potência nos 1980 e 1990.

O espetáculo Feito Som e Fúria, do Coletivo Breaking no Asfalto, de Belo Horizonte, afirmou a qualidade e vigor das danças urbanas como linguagem e caminho para a contemporaneidade coreográfica. O coletivo de b-boys executa dança em 3D, é vigoroso e preciso, suave e malemolente. Inventa entradas e saídas de cena em sua sempre reinvenção da roda, em sua batalha de recursos e relações coreográficas.

A questão que emerge em Feito Som é Fúria é a sua relação com o palco italiano, suas opções cenográficas e sua amarração dramatúrgica. Há, claro, uma entrega verdadeira dos intérpretes na ocupação desse lugar que empodera seus intérpretes na transição do “vem da rua” e agora “está no palco”. Mas não seria, neste caso, a rua o melhor palco para estas cenas? Com essa questão comtemplada, ainda assim o coletivo afirma o hip hop como vetor potente para a dança contemporânea.

Outra conversa que precedeu as apresentações da mostra reuniu Gatto Larsen, da Cia. Rubens Barbot Teatro de Dança, que mediou falas de integrantes da Wultos Cia de Dança, de Uberlândia; e da Nave Gris Cia. Cênica, de São Paulo, que dançaram Do Ouro ao Ferro e Dikanga Calunga respectivamente. O viés do papo foi as especificidades da dança negra.

O corpo híbrido, a dramaturgia específica, o ritual como alavanca da cena são questões que demarcam a trajetória de Nave Gris. Na fala de seu dramaturgo, Murilo de Paula, ficou claro que essas referências religiosas são aportes para a criação artística que precisa, sim, ter liberdade para transitar em cena. Na opinião do coreógrafo da Nave Gris, “não levar o ritual para a cena é uma questão ética”. Na mesma perspectiva, um dos representantes da Wultos também destacou que “o que é dança afro não vira candomblé, mas tudo o que é candomblé, pode virar dança afro”.

Nos dois casos, os grupos afirmaram percalços das poucas possibilidades de manutenção devido à pouca oferta de editais para estas formas específicas de criação, reafirmando a questão recorrente da invisibilidade da dança negra no contexto da produção coreográfica brasileira. O tema emerge, de novo, como uma questão que precisa estar no centro das discussões.

No palco, os caminhos estéticos dos dois grupos são distintos, espelhando. Então, isso vai para o palco, que teve dois momentos pontuais, espelhando justamente as apropriações das danças e das figuras dos orixás. A Wultos opta por mostrar trechos de suas montagens em Do Ouro ao Ferro, nos quais há uma preocupação clara da mimese ritualística e da reverência.

Mas o tambor retumba invenção quando a Nave Gris transita pela cena. Dikanga Calunga é terreiro em transe, oferenda coreográfica que reverbera e irradia profunda beleza, intensa devoção e arrebatadora competência artística que deriva da ritualidade corporal. Foi, sem dúvida, a mais vigorosa atração da mostra artística de Rede Terreiro.

O universo da religião dos calos, o mar de trânsito entre céu e terra, a reverência e a invenção, são uma festa do corpo, organização e reorganização de informações, qualidade que brota justamente de uma atenção às trocas possíveis entre o ambiente da religião e as possibilidades da criação artística.

Pelos calcanhares da terra, a intérprete Kanzelumuka Franciane de Paula é deusa, deusas. É cavalo de fluxos entre o ancestral e o contemporâneo. Feminino que se reparte em divindades, é ousado, intenso, fractal de morte e vida, de nascer e renascer, de dançar frêmitos. Iansã na pista disco sensualizando! Frescor e liberdade para ocupar a cena com intensidade que se esparrama do palco ao público. Diáspora de bons eflúvios, evoés, orixás. Saudades do mar, saudação às passagens. A qualidade e a competência do trabalho da Nave Gris atravessam os demais recursos em cena, da música ao vivo à luz e aos figurinos que dão ainda mais eloquência ao que se está dançando. São águas lustrais que irrigam os caminhos possíveis da dança contemporânea brasileira.

Essas reverberações chegaram à noite de encerramento, com a apresentação de Signos, da Cia. Barbot Teatro de Dança. Na abertura, Rubens Barbot é Iansã, poder e imanência. Se fosse só, um homem só em cena, Barbot é atravessado por muitas danças. Negro encarnado em vermelho e púrpura, rodando silenciosa e suavemente, rememorando a trajetória de 25 anos da Cia. que leva o seu nome e que se dedica ao teatro de dança, enverga vigor cênico, vitalidade artística. O trabalho segue no fluido em texturas, tecidos, tessituras suaves carregadas de personagens e histórias dançadas com humor, multi cores e nuances.

São mil e uma possibilidades de olhar para estes signos coreográficos, recortes de histórias, multiplicação de peixes e possibilidades de narrativas visuais. A plasticidade refinada, os tipos mundanos e o mundo de tipificações populares, as alegorias e os seres imagéticos que perpassam a cena afirmam uma assinatura preciosa de Barbot, Gatto Larsen, Luiz Monteiro e demais bailarinos, articulados para oferecer ao público muitas belezas.

Como na abertura da Mostra Artística quando o Terno de Congado Sainha, o mais antigo em atividade em Uberlândia, subiu pela primeira vez no palco projetado por Oscar Niemeyer – gesto significativo da incorporação da tradição, acolhida pelo ambiente da cultura contemporânea -, no encerramento, foi a vez do Terno de Congado Estrela Guia ocupar este espaço.

Então a mesma reverência à dança de Barbot ganha contundência à genuflexão que a Rede Terreiro faz à afro-brasilidade em suas diferentes possibilidades. O tambor ancestral, a tradição e a religião, santos e santidades se encontram evocando caminhos para a dança negra em muitos palcos, nas encruzilhadas, nos altares, nas ruas, nas periferias que são novos centros de afirmação cultural. Na profunda necessidade de ancorar o futuro ao passado, reinventando a permanência e a imanência do terreiro hoje.

Debates e políticas para a dança negra

O debate em torno da Rede Ibero-Americana de Dança e da criação de uma rede de festivais de dança trouxe o coordenador de Dança da Funarte, Fabiano Carneiro, à Rede Terreiro Contemporâneo de Dança Contemporânea. Ele reafirmou a meta da descentralização de atividades, destacando o encontro da Rede Funarte Ibero-Americana realizado no ano passado, no Rio de Janeiro, na perspectiva de focar e fortalecer elos da cadeia produtiva em caráter internacional. Esta articulação se vale, inclusive, do Fundo Ibero-Americano, do Ministério da Cultura, e de rodadas de negócios como a realizada na ocasião.

Questionado sobre a inclusão da rede de cursos de formação em dança das universidades brasileiras nessa rede, Carneiro sinalizou positivamente para a ideia com o exemplo da experiência da Cátedra Itinerante, da Venezuela.

Na conversa sobre o Plano Nacional das Artes e de uma política de Fomento Nacional de Dança, as questões foram muitas:

  • Sobre a representatividade, ou perda dela, da Funarte na conjuntura;
  • A definição, e foco, no fortalecimento do Sistema Nacional de Cultura, por um plano artístico agregador e potente;
  • Pelo desafio de manter e estabelecer metas a curto, médio e longo prazo das políticas públicas para o setor;
  • Da perspectiva da implantação de uma rede de difusão da dança, com circuitos, rede de espaços cênicos e políticas específicas para os festivais;
  • Sobre como atualizar, dinamizar e potencializar os mecanismos de divulgação de ações do setor por instituições como a Funarte;
  • Da imperiosa necessidade de aprofundar o diálogo do Ministério da Cultura e da Funarte com os cursos de ensino superior em dança no Brasil;
  • Que o diálogo efetivo será estabelecido com os setores produtivos;
  • E (boa notícia!) da perspectiva de criação de uma Diretoria de Dança no Minc.

Carlinhos Santos é historiador, jornalista, crítico de dança, especialista em Corpo e Cultura e Mestre em Educação.

Foto: © Victoria Arenque