Referências: o que fazer com elas? | References: what to do with them?

Se estamos constantemente transformando nossas referências, o que realmente significa hoje um padrão de formação física e conceitual que, por sua vez, estabelece uma técnica de movimento e de criação em nossos trabalhos?

Um dos desafios para a criação é elaborar as referências que nos constituem como modo de reconhecimento das ideologias, dinâmicas, caminhos, atalhos, correntes. Elas formam a corporeidade e se refletem não apenas no que se dança, mas também nas escolhas, nos olhares, no relacionamento com o outro e na forma de encenar.

Nirvana Marinho – “passo: gesto provisório” (expressão cunhada pelo jornalista Marcelo Sena)

O estudo do gesto emergiu a necessidade de investigar outros modos de tratar o movimento em cena. Começou nos estudos da graduação em dança (Unicamp) e culminou com a dissertação de mestrado (Modos do corpo se comunicar: o Gesto na Dança, junho, 2002). Como o gesto vira passo, como o passo vira gesto?
Tendo como referência as formas sistematizadas de organizar o movimento e também tipos de movimentação diferenciadas, o mote propulsor de uma pesquisa teórico-prática foi a maneira pela qual a dança contemporânea utiliza os gestos. Depois da última experiência (Olho do Gesto, coreografia de 2002), afirma-se um propósito crítico acerca do gesto em dança: matar a ideologia do passo de dança.

Algumas estratégias recentes vem sendo testadas no meu corpo e que definem a atual pesquisa coreográfica em que me debruço. É um projeto chamado “Corpo Noutro Corpo” no qual venho colocando no meu corpo outros jeitos de coreógrafos conhecidos se moverem, com o propósito de subverter o passo através dos gestos. Na parte 1, proponho rever estratégias semelhantes entre coreógrafos de épocas distintas: a coreografia “Chair and Pillow” de Yvonne Rainer, refeita por Xavier le Roy e modificada por mim e o uso de imagens de dança como método no caso de uma coreógrafa desconhecida, de Lynda Gaudreau, de Lia Rodrigues em trechos distintos de suas coreografias e por mim, também dançado em cena. Na parte 3, faço uso de uma coreografia debate para dançar questões tais como: você assiste dança? Você reconhece regras na dança? O que de outras áreas você identifica quando vê dança? Você pensa em ideologia quando vê dança? E, finalmente, na parte 2, ainda em processo de criação, venho buscando “jeitos de dançar” de outros coreógrafos e embutindo no meu corpo.

Como dar outra forma, dimensão, modo de organização para o que é reconhecido como um passo de tal coreógrafo para um outro modo de ação cênica. A idéia de “imitar” outro jeito de se mover é um tipo de referência que não se limita somente à forma ou ao jeito do movimento. Diz respeito também ao pensamento que norteia e costura muitos coreógrafos. A preocupação de um discurso crítico na dança vem ocupando cada vez mais a cena contemporânea. É um deslocamento do lugar comum da dança, a saber, o uso de uma seqüência de passos. O propósito de repensar o lugar do passo na dança contemporânea nos leva diretamente a uma ideologia presente no discurso da dança.

Diante disso, tal problemática de uma ou mais referências no corpo de um dançarino traz consigo não somente uma história, o contexto que pertenceu e o modo pelo qual os tipos de movimentação se conectam, mas reporta também a função do passo na dança. É muleta ou artefato? É necessidade, enfeite ou hábito de tratar assim o corpo na dança? Depois da dança pós moderna americana, depois do vídeo dança e de tantas outras formas de dar visibilidade ao movimento, como estamos enquadrando os tipos de movimentação? Se apoiadas no passo, será que o gestual poderia dizer de outro modo sobre o corpo?

O projeto de matar a ideologia do passo vem questionar o status em que se sustenta o discurso da dança: sobre a importância e o virtuosismo do passo de dança. De outro modo, muitas danças vem colocando lado a lado, sem hierarquia de valor, os gestos e os passos, repensando uma dramaturgia atravessada por linguagens visuais. Outros modos de ver o movimento.

Valéria Vicente – Reconhecendo o corpo que dança

O desafio foi lançado pelo projeto “O Solo do Outro”, do Centro Apolo-Hermilo. Na edição deste ano, para a qual fui selecionada, três dançarinos criadores foram escolhidos para coreografar cada um, um solo para o outro. Dessa forma, nos três solos resultantes todos teriam em um momento a função de coreógrafo e num outro, a função de bailarino. Para todos, o tema lançado foi Identidade: Corpo Provisório.

Saulo Uchôa, que dirigiu a coreografia que atuei, discutia questões ligadas a uma relação corpo e tecnologia. Para mim, diante de Ana Emília Freire que iria atuar a coreografia assinada por mim, as questões que me pareceram urgentes fazem parte de um processo de questionamentos que venho tecendo sobre O que dançar, como dançar. Em outras palavras, como movimentar em cena, diante de tantas informações de dança que estão no meu corpo, de bailarina e coreógrafa, e no corpo do outro, que eu coreografo e com quem eu trabalho. Informações adquiridas em aulas diversas, ao participar de grupos, ao acompanhar a carreira de outros grupos, formatando o dançar com técnicas diversas e das quais tive informações não teorizadas ou historicizadas durante esse percurso. Essa questão não está exatamente ligada ao desejo de construir “algo novo”, mas principalmente ao de não ser uma repetidora de fórmulas que não sei para que servem.

Esta foi uma das razões que me impeliram a criar o Projeto Recordança que deu origem ao Acervo que reúne fotos, vídeos e histórias de 30 anos de dança de Recife. Através dessa pesquisa pude ir construindo uma noção mais complexa das correntes e escolhas que formaram a história dos meus professores e coreógrafos que me ajudaram a construir um corpo de artista e as noções de coreografia, de dança. Mesmo motivo que me levou, no ano de 2004, a me lançar em improvisações para anotar que tipo de movimentos são recorrentes, num esforço de tomar uma outra consciência do que seriam minhas “movimentações espontâneas”. Ou seja, reconhecendo que o possível movimento natural já estaria repleto de códigos de dança e mecanismos reincidentes.

O projeto O Solo do Outro conformou-se como um espaço para colocar essas questões e, então, lancei à Ana Emília as perguntas que me faço sobre minha identidade como dançarina, para contrapor, sobrepor e perceber melhor. Que espetáculos você identifica como momentos que mudaram sua forma de dançar e ver a dança? Que espetáculos você assistiu e surtiram efeitos semelhantes por identificação ou rejeição? Que questões da sua vida cotidiana você percebe que estão tão vivas que são lidas no seu corpo mesmo que você se mexa muito pouco?

As informações estão no corpo e advêm de técnicas aprendidas, processos coreográficos vivenciados, espetáculos presenciados, que modificam a forma de pensar; e o conjunto de vivências pessoais: perdas, aquisições, dúvidas, conquistas, identificações.

Obtive respostas sinceras e encarnadas de Ana Emília e diante da necessidade de selecionar e organizar essas respostas ao contexto do projeto, a necessidade de fazer escolhas dramatúrgicas mostrou um outro campo de identificações tão vasto e importante quanto as questões do movimento.

As escolhas sobre usar ou não o silêncio, como se relacionar com a música, como usar a palavra, como apresentar as células de movimento, que relação estabelecer com o público e com o espaço, e outras questões que ainda não sei nomear e que ligariam a coreografia a essa ou aquela corrente, me fizeram perceber que essas escolhas necessitavam de tanta investigação quanto a que estávamos dedicando a construção dos movimentos.

Pina Bausch, Jerome Bell, Vera Mantero, Xavier Le Roy, Grupo Corpo, Cena 11, Lia Rodrigues, Grupo Experimental (PE), Balé Popular do Recife, Peter Dietz, Cláudio Lacerda, grupos e criadores, de longe e de perto, cujos trabalhos influenciavam de tal forma que fazia parecer que suas escolhas são quase fórmulas e não fruto de investigações específicas e ligadas a pensamentos também específicos. A quem seguir? Como não seguir?

Por todas essas questões, assumindo a impossibilidade de em dois meses dar conta de tantas respostas que precisariam ser processadas não apenas intelectualmente, mas estendidas a todo o conjunto do corpo e da cena, construí o Solo para Ana (eu e ela), “apresentando os acúmulos e as influências na movimentação, na encenação e na concepção coreográfica que surgiram a partir do re-encontro entre duas mulheres que dançam.”,como explicitei no programa.

Utilizei como base de criação a visão de Stuart Hall sobre identidade na pós-modernidade. Segundo ele, a identidade que parecia única e completa se fragmentou permitindo que diversas dimensões do indivíduo fossem ressaltadas. O conceito de fragmentação e múltiplas identidades permitiu que eu transitasse de forma mais consciente pelas respostas do corpo e pelo acúmulo de formas de encenar para que pudesse lidar com a questão incômoda e necessária:Descobrir como se constitui a comunicação na cena de dança;perceber como questões pessoais se transformam em vivências conjuntas, criando um momento singular de experiência estética. Assim pude perceber como as questões de identidade e identificação são ativas no processo criativo e não se esgotam em uma coreografia nem em uma única resposta.

* Nirvana Marinho é bailarina, coreógrafa e pesquisadora de Dança. Valéria Vicente, do Acervo Recordança, é jornalista e bailarina. If we are constantly transforming our references, what really means today something as a standard of physical and conceptual education that establishes a technique and creation pattern in our works?

One of the challenges in creation is to elaborate references as a way recognize ideologies, dynamics, ways, shortcuts, chains. They form a bodyness and also reflect themselves not only at what to dance, but in choices, looks, relationships with the other and staging choices.

Nirvana Marinho – “step: provisory gesture” (expression by journalist Marcelo Sena)

The study of gesture emerged as the necessity to investigate other ways to treat the movement in the scene. It started in my graduation in dance (Unicamp) and culminated at my master’s dissertation (Ways of body’s communication: the Gesture in Dance, June, 2002). How gesture turns into step, as step turns into gesture? Having as reference the systemized forms of organizing movement and also differentiated types of movement, the propulsion of a theoretician-practical research was the way contemporary dance uses gestures. After the last experience (Eye of Gesture, 2002 choreography), a critical intention concerning gesture in dance is affirmed: to kill the ideology of dance step.

Some recent strategies come being tested in my body and define the current choreographic research I lean over myself. It’s a project called “Corpo Noutro Corpo” in which I’ve been putting into my body moving skills from known choreographers, with the intention of subverting the step through gestures. In part 1, I consider to review similar strategies between choreographers of distinct ages: the choreography “Chair and Pillow” by Yvonne Rainer, restaged by Xavier le Roy and modified by me, and to use dance images as method in the case of an unknown choreographer, from Lynda Gaudreau, distinct stretches of Lia Rodrigues’ choreographies, and for me, also danced in scene. In part 3, I use a debate choreography to dance questions such as: do you attend dance? Do you recognize rules in dance? Which other areas do you identify when sees dance? Do you think about ideology when you see dance? E, finally, in part 2, still in process of creation, I come searching “skills to dance” of other choreographers and inlaying in my body.

How to give other form, dimension, way of organization for what is recognized as a step from a choreographer to another performing art. The idea of “imitate” another moving skill is a type of reference that doesn’t limited itself to form or skill of movement. It also says respect to the thought that guides and sews many choreographers. The concern of a dance critical speech comes occupying more and more the contemporary scene. It is a displacement of common sense of dance, to know, the use of a steps sequence. The intention to rethink the place of step in contemporary dance directly takes us to a present ideology in dance speech.

Facing that, such problematic of one or more references in dancer’s body bring not only a history, the context belonged and way for which types of movement they connect, but it also reports to the function of step in dance. It is crutch or manmade? Is it a necessity, ornament or habit to treat like that the body in dance? After post-modern american dance, after videodance and many other forms to give visibility to movement, how are we fitting the types of movement? If supported in the step, what gesture could talk about body in another way?

The project to kill the ideology of step comes to question the status that supports the speech of dance: the importance and virtuosity of dance step. In another way, many dances come placing side by side, without hierarchy value, the gestures and the steps, rethinking a dramaturgy crossed by visual languages. Different ways to see movement.

Valéria Vicente : recognizing the body that dances

The challenge was launched by Apolo-Hermilo Center project “O Solo do Outro”. In the edition of this year, for which I was selected, three creative dancers had been chosen to choreograph each one, one solo for the other. This way, in three resultant solos all of us would have a moment of choreographer and another one as dancer. For all, the launched subject was Identity: Provisory body.

Saulo Uchôa, who directed the choreography I acted, argued on questions about body and technology relation. Ahead of Ana Emília Freire, who would go to act the choreography signed by me, the questions had seemed urgent are part of a process of questionings that I come weaveeing on What to dance, how to dance. In other words, how to put moves in scene, with many dance information that are in my body, as dancer and choreographer, and in the body of Ana, to whom I choreograph and work with. Information acquired in diverse lessons, when participating of groups, following the career of other groups, formatting the dancing with diverse techniques and from which I had not theorethical and historical information during this passage. This question is not accurately on the desire to construct “something new”, but mainly on not to be a repeated formula I do not know for what they serve.

This was one of the reasons that had impelled me to create the Recordança Project, that originated a collection that congregates photos, videos and histories of 30 years of dance of Recife. Through this research I could go constructing a more complex notion of chains and choices that had formed the history of my professors and choreographers who helped me to construct an artist body and a choreography slight, knowledge of dance. The same reason that took me, in 2004, to launch myself in improvisations to write down the type of movements is recurrent, in an effort to take another conscience of what would be my “spontaneous movements”. In other words, to recognize that possible natural movement already would be full of dance codes and relapsing mechanisms.

The project “O Solo do Outro” was satisfied as a space to place these questions and, then, I launched to Ana Emília the questions I do to myself about my identity as a dancer, to oppose, to overlap and to perceive better. Which pieces do you identify as moments that had changed your form to dance and to see dance? Which pieces do you watch and occasioned similar effect by identification or rejection? Which questions of your daily life you perceive so alive that they are read in your body even when you move just a little?

The informations are in body and come from learned techniques, choreographic processes lived deeply, witnessed performances, modifying the form of thinking; and the set of personal experiences: losses, acquisitions, doubts, conquests, identifications.

I received sincere and incarnate answers of Ana Emília and in front of the necessity to select and to organize these answers to the context of the project, the necessity to make dramaturgic choices showed another field of identifications so vast and important as much the questions of movement.

The choices on using or not silence, how relating with music, how to use the word, how to present the movement cells, what relation to establish with the audience and space, and other questions still I do not know to nominate and that they would bind to the choreography to this or that chain, had made me to perceive that these choices needed as much inquiry as the one that we were dedicating the construction of movements.

Pina Bausch, Jerome Bell, Vera Mantero, Xavier Le Roy, Grupo Corpo, Cena 11, Lia Rodrigues, Grupo Experimental (PE), Balé Popular do Recife, Peter Dietz, Cláudio Lacerda, groups and creators, of far and close, whose works influenced of such a form that it made to seem that their choices are almost formulas and not fruit of specific investigations and connected to specific thoughts too. To who to follow? How not to follow?

For all these questions, assuming the impossibility of giving account of many answers in two months that they would not only need to be processed intellectually, but extended all the set of the body and the scene, I constructed the Solo for Ana (me and her), “presenting the accumulations and influences in movement, stage and choreographic conception that had appeared from the re-meeting between two women who dance,” as I made explicit in the program.

I used the vision of Stuart Hall on identity in after-modernity as creation base. According to him, the identity that seemed unique and complete has fragmented itself allowing that diverse dimensions of individual were salient. The concept of fragmentation and multiple identities allowed that I transited more conscientious for the answers of the body and the accumulation of forms to stage so that I could deal with the bothering and necessary question: To find out as communication constitutes itself in the scene of dance; perceive how personal questions transform themselves into joint experiences, creating a singular moment of aesthetic experience. That way, I could perceive how identity and identification questions are active in the creative process and they are not depleted in choreography or even in a unique reply.

* Nirvana Marinho is dancer, choreographer and Dance researcher. Valéria Vicente, from Acervo Recordança, is journalist and dancer.