Revisando idéias, debatendo questões

Este site tem sido um espaço de debate sobre dança contemporânea. Num país com dimensões continentais como o nosso, a internet é uma possível alternativa relativamente eficiente para tal fim. A participação freqüente dos leitores, com comentários sobre o conteúdo publicado, pode ser considerada um índice da pertinência oportuna de tal iniciativa. A meu ver essa é mais uma importante ferramenta dentre outras: cursos de graduação e pós-graduação, publicações, eventos, seminários, espetáculos e etc., que auxilia na elaboração do pensamento crítico sobre o fazer da arte da dança.

Por não pretender ser um canal de propagação de crença, fé ou lenda, tipos de procedimento que dizem respeito à natureza do mítico e do religioso, devendo zelar pela possibilidade da dúvida, pelo confronto de argumentos e de dados das diferentes experiências, com bem lembra meu colega Airton Tomazzoni em seu recente texto Perdidos no Espaço1. Por não se tratar da veiculação de dogmas e sim da abertura de uma questão específica para a exploração das suas múltiplas e prováveis perspectivas, eu me permito a dialogar com o texto referido, com comentários deixados por leitores nesse e em outros textos e dialogar também com outros de meus próprios textos, para seguir redimensionando questões já abordadas.

Vamos começar do ponto onde Airton ressalta a ausência de música, cenário, iluminação, teatralidade, e algo que me parece impossível, a ausência de movimento como fato indicativo da instauração de um possível modelo “em certa parcela (não muito pequena) da produção de dança contemporânea”. Ao examinar o fenômeno em grupo (não muito determinado) Airton põe sua atenção no como as obras foram realizadas e não se refere a que tipo de discussão cada uma delas, em particular, suscita. Tendo em vista o enorme debate no campo da estética sobre a inseparável relação da forma e o conteúdo, me parece que aqui faltam elementos que sustentem esse argumento de modo mais contundente. Por outro lado, está claro que muito do que se autodenomina dança contemporânea é perfeitamente passível de questionamento, porém não me parece ser possível analisá-los em grupos tão genéricos como proposto, abstraindo de um coletivo heterogêneo algumas características comuns, sem o prejuízo de reduzir a complexidade que faz de cada elemento, de tal grupo, singular e em constante transformação.

No texto onde tratei sobre a polêmica da colonização [1] no campo criativo da dança contemporânea no Brasil ressaltei a importância de ter em conta o desenvolvimento histórico das formas de encenação da dança e as respectivas relações existentes entre seus surgimentos e o contexto específico no qual elas se desenvolveram. Também chamei atenção para o modo descontextualizado como tais formas são apresentadas nos festivais e residências – dois dos mais importantes canais através dos quais entramos em contato com estas diferentes práticas. Frisei que essa maneira pouco cuidadosa de consumir práticas européias pode sim resultar, em alguns casos, em mimeses inócuas. Porém, penso eu que há que se examinar com cuidado cada caso, relacionando o modo de encenação com o universo das questões que motiva cada obra em particular, se ele existir, é claro! A generalização em muitos casos padroniza o que é singular.

De todo modo eu não creio que seja a ausência ou a presença de música, cenário, iluminação, teatralidade, ou passos de dança (que creio ser o que meu colega queira dizer com ausência de movimento), que faz uma obra de dança mais ou menos contemporânea, ou portadora de mais ou menos qualidades estéticas. Parece-me que para debater a falta de substância na criação artística é importante trabalhar com exemplos objetivos e específicos. Dessa maneira, os equívocos de leitura podem diminuir consideravelmente, pois como não dá pra citar todos que estão trabalhando de modo criativo, aqueles bons artistas, não citados na lista dos oito que Airton relaciona, podem por exclusão formar parte de outro grupo, daqueles que reproduzem um modelo. E sabemos que não é assim tão medíocre a produção de qualidade em nosso país continente.

O comentário deixado por nossa colega Lelena Lucas em Perdidos no Espaço 1 nos ajuda a entender de forma elucidativa os estereótipos recorrentes, nos textos, onde artistas tratam de apresentar as idéias que seus trabalhos articulam. Penso eu que por conta dos exemplos específicos e exaustivos apresentados, ela logrou a precisão objetiva que toda critica carece. A minha única ressalva a tal comentário é que, do meu ponto de vista, não é graças a deus que existem exceções à regra em questão. É sim graças ao desenvolvimento da capacidade criativa de re-elaborar constantemente as matérias do sensível, tendo em conta a intervenção que toda arte agencia nos contextos por onde atua. Não se trata de uma manifestação da graça divina e sim de sinas da compreensão e do engajamento de alguns sujeitos no trabalho diário que concerne ao artista.

O problema da ética das relações entre criadores, produtores, programadores, críticos e etc., que em certo sentido tangenciam o rumo da produção artística, é provavelmente um ponto que precisa ser mais bem trabalhado. Se for realmente o trabalho do artista re-elaborar as matérias do sensível, talvez seja necessário refletir com objetividade sobre que tipo de sensibilidade nós estamos sendo sujeitos em nossos contextos específicos, sobre quais os interesses que a reprodução dessa predisposição sensível atende e de que maneira é possível interferir provocando lapsos de descontinuidade na ordem estabelecida. Num texto que apresentei na mesa redonda A Espetacularidade na Dança, em outubro do ano passado, no Ateliê de Coreógrafos Brasileiros em Salvador – BA, eu mesmo argumentei sobre a maneira como estamos tão habituados a certas determinações sociais que já nem as questionamos, tomando-as como naturais e necessárias. Porém eu não estou certo se o fato de haver artista que não trabalham com elementos como música, cenário, iluminação, teatralidade ou passos de dança pode ser considerado como uma instauração de paradigmas de criação para dança.

Muitas vezes me parece que a defesa ou apego a modos habituais de fazer dança tem a ver com uma luta por reserva de mercado estável. Em trono da produção de um modo específico de encenação se estabelece um mercado profissional lucrativo onde participam iluminadores, compositores, figurinistas, cenógrafos, e para que os intérpretes tenham um desempenho satisfatório, professores de técnicas – que muitas vezes são também coreógrafos – ou poderíamos dizer verdadeiros cientistas da sofisticada artes da formatação de corpos para a reprodutibilidade de padrões complexos de determinados movimentos. Porém se o modo de representação varia, estando ele associado à questão que cada obra trata, então esse mercado se fragiliza tornando-se mais instável. E se a escolha de encenação do artista é elementar, dispensando o trabalho de uma série de agentes que fazem parte dessa cadeia interdependente de profissionais, então complica e incomoda a vida de muita gente. Mesmo críticos, muitas vezes, se especializam em certo tipo de encenação e seu trabalho depende diretamente da produtibilidade dessa parcela expressiva do mercado – o que não me parece ser o caso de meu colega Airton.

Parece-me que o artista que faz da matéria de sua criação passos de dança, e em seu fazer provoca deslocamentos nas matérias do sensível em sua audiência, não pratica uma mera repetição de formulas coreográficas desgastadas. E se em sua arte ele continua estabelecendo vínculos necessários com seus contextos, então é possível que esse artista não esteja ameaçado por outros que não usam passos de dança em suas criações, pois o seu trabalho persegue o efeito estético de um corpo em ação performática, contextual e temporária. Se tal artista realmente logra seus objetivos, isso deveria garantir para seu trabalho um espaço no mercado da dança. A atual edição da Documenta de Kassel – Alemanha (Bienal de Arte Contemporânea) pode ser um bom exemplo da sobrevivência do gesto artístico independente do material, da temática, ou do tempo que circunscreve sua elaboração. Sem o propósito óbvio de fazer uma revisão da histórica da arte, a curadoria do evento reuniu obras datadas de antes da era cristã até o presente. A mostra procura evidenciar as diferentes operações aplicadas na feitura de cada obra apresentada e ressalta as conexões que as tornam arte. Mais que uma aula de história da arte, me parece que a curadoria de Frank Petri conseguiu dar uma aula de arte através da história.

Quando meu colega Joca Vergo, em comentários em dois outros textos diferentes, clama por não deixar que a técnica de dança morra, eu me pergunto se esse clamor não é uma preocupação legítima de um profissional especializado que luta por sua sobrevivência num mercado dinâmico e impiedoso? Não tenho respostas. Só sei que temos a responsabilidade de debater cada questão com muito cuidado, pois se a teoria não está, como tudo indica, separada da prática, e se o discurso é como Michael Focault assinala ( constituinte de ordens hierárquicas, exclusivistas e interditárias), precisamos confrontar muitos argumentos, examinar cuidadosamente as muitas possibilidades em cada situação e redimensioná-las à medida que o tempo passa, num trabalho que nunca acaba. Considerando a hipótese de que a realidade na qual estamos imersos é tecida pela interação dos sujeitos com o mundo ao seu redor, eu faço parte do grupo que pensa que se deve tentar encontrar sentidos éticos para essa dinâmica, e a troca de idéias me parece ser uma possível estratégia para testar a qualidade dessas diferentes dinâmicas. E por esse motivo é que decidi escrever este texto.


[1] Alguém Esteve no Palco Antes de Você.