RSD: entre o ‘eu’ e o ‘nós’

Comemorando os 10 anos da Red Sudamericana de Danza (RSD), foi lançada no fim de 2009 a publicação Territorios en Red, com textos de autores da região sobre questões comuns a artistas da América do Sul. O idança publica aqui um aperitivo do que está disponível em pdf no www.movimento.org. Neste artigo, a artista argentina Lucía Russo reflete sobre o trabalho em colaboração, um dos pilares da RSD. Para ler a publicação completa e o texto de Lucía original (em espanhol), clique aqui. Territorios en Red foi realizada com apoio do Centro Cultural de Espanha em Buenos Aires e do Centro Cultura de Espanha em San Pablo.

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Etimologicamente, a palavra colaborar é formada pela conjugação entre a ação de laborar, trabalhar, e o prefixo ‘co’, que denota convergência, união. Colaborar é trabalhar junto com outros.

Desde que me lembro, me interessa a questão do trabalho coletivo e em colaboração. Aprender a trabalhar com outros, confrontando e coincidindo.

Quando comecei a incursionar na dança em Buenos Aires (vinha de uma criação na Patagônia, do mundo do teatro e da Faculdade de Psicologia da UBA), me sentia um pouco “peixe fora d’água”. Em geral, ficava chocada tanto com o individualismo refletido na disputa dos espaços “à cotoveladas”, literalmente e, particularmente na área, com a ausência de perguntas ou diálogo entre professores e estudantes e entre coreógrafos e intérpretes. Estes vínculos estavam mais baseados em modos de organização hierárquicos e a palavra era propriedade de quem supostamente sabia mais.

As primeiras tentativas de criação que tive entre 1997 e 2000 foram com outros estudantes, com quem sigo criando até hoje: Lucas Condró, Diego Gil, Natalia Tencer. E, desde então, existe a ideia de criar um grupo de colaboração com funções rotativas: criamos FQ (Fisicoquántica) no ano de 2000. Logo depois, o “coletivo”[3] Casa Dorrego em 2004 e em 2009, o coletivo artístico c.a.s.a.

No período entre 2000 e 2002, com o país atravessando uma forte crise sócio-econômica, vinculei-me a diferentes projetos sócio-culturais e âmbitos que promoviam a participação e a autogestão: Parque Avellaneda e a fábrica restaurada IMPA, RSD, CoCoA.

Em 2001 participei do primeiro Encuentro Sudamericano de Danza, noChile, onde descobri um mundo desconhecido por mim no que era, então, o contexto portenho: pessoas comprometidas e ativas, tanto política como socialmente, trabalhando de modo coletivo e em rede (lembro-me de Natacha Melo, Wilson Pico, Klever Viera, Nelson Avilés e outros). Ali, conheci artistas interessados no trabalho em colaboração, com quem mantivemos um intercâmbio fluido desde então: o coletivo La Vitrina, La Ortopedia y Mundo Moebio (Escenalborde), do Chile; Trust me (Uruguai) e Lupita Pulpo (Berlim-Uruguai). Em outros Encuentros Sudamericanos de Danza (ESD), nos vincularíamos ao projeto Bará (México) e ao Gabinete Coreográfico (Neuquén), todos coletivos com os quais nos encontrarpiamos no Diálogos[] entre 2006 e 2008.

Reinventar realidades e imaginar por-fazeres

Logo depois do primeiro ESD e fortemente motivada a criar melhores condições em meu próprio contexto, organizamos uma série de reuniões em Buenos Aires para difundir o trabalho em rede com a colaboração de Soledad Giannetti, através das quais tínhamos a intenção de gerar respostas coletivas possíveis para as problemáticas locais emergentes e cujas propostas foram apresentadas no segundo ESD, em 2002. A partir destas reuniões, também criamos a Asociación de Trabajadores para la Danza, com a qual organizamos diversas atividades durante 2001 e 2002. Olhando em retrospectiva, isso dava conta da necessidade de juntar-se com outros para gerar novos movimentos.

Naquele tempo, na RSD, ainda nos ocupávamos com as problemáticas gerais existentes nos contextos sul-americanos e nos dávamos conta de que o trabalho em rede não era algo fácil de estabelecer em contextos habituados a fortes hierarquias, burocracias e paternalismos.

No segundo ESD, ouvi a fala de Sonia Sobral, que afirmava que “a dança é produção de conhecimento” na mesma sala em que um produtor queria nos mandar calar a boca e dançar e Natacha Melo tentava tecer uma rede entre sul-americanos que, por sua vez, acreditavam que a RSD era um novo fundo de subsídios ou uma instituição ou uma ONG. E aprendíamos com a Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO) o que era a PPGA. [5]

Suponho que foi então que comecei a ter mais perguntas do que respostas sobre o trabalho em rede, a docência, a criação, a colaboração, o intercâmbio. E onde aparecem como questões fundamentais das metodologias, práticas e discursos.

Construir uma rede era possível porque encontramos pessoas que acreditarm que podiam fazê-lo em real horizontalidade e intercâmbio. E digo acreditar em uma rede possível em um sentido profundo, não falo de como seria bonito trabalhar juntos em rede como utopia ou por “correção política”, mas de encarnar e praticar um ser-em-rede concreto, e também enuncia-lo.

A partir de então e depois da descoberta de que algo que eu sabia na prática – que a dança é produção efetiva de conhecimento – estava teoricamente embasado, emerge em mim o interesse pela reunião entre metodologias, práticas e teoria que culminou na escrita de Diálogos, projeto realizado pela Casa Dorrego em 2006, com o apoio da RSD e, já em 2007-8, realizado pela RSD em outros países.

O antecessor do Diálogos foi um projeto de residências co-escrito com Nirvana Marinho a partir do ESD Araraquara 2004. Justamente neste ESD, participaram várias pessoas vinculadas aos âmbitos da criação, universitário, da política, da escrita, da teoria (Helena Katz, Nirvana Marinho, Gilsamara Moura, Wagner Schwartz, Vanilton Lakka, Dulce Aquino, Claudia Pisani, Graciela Rodríguez, Sigrid Nora – que apresentaou o livro HUMUS) e ocupadas em colocar a dança como produtora de conhecimento. O que me faz pensar que esse encontro efervescente permitiu preparar o campo para o que viria anos depois.

Praticar redes: pensar em movimento

O Diálogos começou como um interesse particular, mas em momento algum tocou uma necessidade coletiva. Foi um processo cuja coordenação artística esteve sob minha responsabilidade em 2008 e fez com que eu me perguntasse sobre novas coisas a respeito de trabalhar com outras pessoas: concretizar o Diálogos foi um trabalho sobre a tolerância à heterogeneidade na gestão coletiva. Fez com que eu compreendesse porque as diferenças podem ser potenciais: de subverter lógicas neocolonizadoras e se encontrar com outros, a par de e frente a frente ao fazer. Tarefa nada fácil quando realizadas através de vínculos virtuais ou semi-presenciais, em culturas recém saídas de processos ditatoriais e com pouca experiência de democracia, debate e participação nas decisões e em gestões participativas.

A experiência foi muito mobilizadora: concluiu com a colaboração entre criadores, a RSD, coletivos, grupos, organizações, associações, festivais, universidades, ministérios e outras instituições. E trouxe novas incertezas: como seria uma rede que não reproduz lógicas de funcionamento externas as que deseja fomentar, metodológicas, econômicas, políticas, de poder, de dominação ou imposição? A cada passo do processo do Diálogos estas perguntas se faziam presentes. Tanto em termos de convocatória, seleção, gestão, produção, distribuição de recursos, organização, difusão, etc. Já que nem todas as pessoas que organizaram o evento participavam ativamente da RSD e nem todas participavam ao mesmo tempo, muitos não nos conhecíamos pessoalmente (tivemos que aprender a usar “tons discursivos” nos e-mails, aprender que nossas culturas nos posicionavam de modos diferentes; que alguns falavam mais forte do que outros, que a noção de TEMPO varia para cada pessoa e cada país, que a disconfiança é um sentimento que aparece com facilidade em nossos processos socio-históricos, que o medo do “uso” ou da “apresentação” ou da “necessidade de obediência” que vem a responder a processos ditatoriais opera muitas vezes como fantasma em processos de trabalho coletivo).

Os contextos a coordenar eram extremamente diferentes (Neuquén, Montevideo, Mérida, Lima, México DF) e as pessoas que organizavam, também. Então, às vezes nossos critérios eram diferentes e como a RSD continua em construção, nem sempre estes critérios estavam pré-definidos e tinha que ser feito ao longo do caminho, tentando, cada vez, fazê-lo a partir do que a própria RSD vinha propondo: horizontalidade, democratização, distribuição justa, critérios claros e abertos, respeito aos acordos, consenso, trabalho coletivo, associação e colaboração com atores diversos, planejamento participativo, etc. E compreendendo nós mesmos, na prática, qual era a rede que desejávamos afirmar. É que o trabalho na RSD não se aprende através de ideias, mas em seu exercício e reconstrução constante.

Modos de ser no fazer

A partir de minha participação na atual configuração da RSD, e de pensar junto com outros qual poderia ser uma metodologia apropriada de tabalho em rede para esta rede que estamos criando e da rede que desejávamos criar[6], fui entendendo a importância do modo de fazer: comprovar que a metodologia é o que se faz, não é algo externo, mas parte de de sua própria configuração futura. É o “modo de ser no fazer”, por assim dizer.

As estratégias e metodologias implicam decisões políticas, convertem-se em um meio entre prática e discurso. Entre ideia e realização. Produzem realidade, efetivamente.

O sociólogo inglês John Law argumenta que as metodologias e métodos (em pesquisa) não descrevem realidades sociais apenas, mas ajudam a criá-las. Neste sentido, as metodologias são sempre políticas e fazem surgir a questão sobre que tipo de realidades sociais desejamos criar [7]. Especialmente quando as realidades são vagas, efêmeras, complexas, desordenadas ou implicam um movimento de transformação contínuo, há de se reinventar ou criar novos modos de pensar e práticas que podem ajudar a produzir modos de compreensão-produção destas realidades emergentes como desordem relativa, confusão, caos. Situações com as quais muitas vezes nos deparamos, tanto no compo criativo da dança, quanto no plano da configuração de uma rede sul-americada de dança: o surgimento de desordens que resultam praticamente imanentes a seus modos de construção implicará aceitar a emergência de acontecimentos inesperados ou não planejados que logo encontrarão sua própria modalidade de organização e/ou sistematização.

Em contextos de grande precariedade, muitas vezes só o fato de estarmos juntos nos permite sobreviver, sustentar ou construir coisas que não poderíamos fazer sozinhos. Além disso, as artes cênicas são artes da intersubjetividade, já é muito difícil que uma obra seja feita sem algum tipo de colaboração ou associação. Sempre há outros.

Então, torna-se fundamental refletir sobre como vamos trabalhar juntos, que acordos existem, como as decisão são tomadas, que níveis de participação são alcançados e como, com que lógicas desejamos atuar, etc. O que me une a outros, o que compartilhamos, o que podemos fazer – juntos? Quando, como, o que, com quem, para que? [8]

Esta importância que o modo de fazer ganha nos processos de contrução coletiva como produção de realidade, que foram resgastados no que diz respeito ao criativo e pedagógico, assim como para a gestão e a produção.

Modos de pensar no fazer ou de pensar como fazer.

Ensinar e aprender a partir do coletivo

Na disciplina de composição coreográfica que lecionamos no IUNA, junto com Natalia Tencer, Lucas Condrá e Ana Giura (membros do c.a.s.a. coletivo artístico) nos perguntamos como é possível afirmar as apostas ético-estéticas tanto a partir do discurso quando da prática docente, em um âmbito universitário de educação pública para artistas. Como é possível alcançar maior participação dos alunos em sua própria educação? Como fomentar a inquietação dos estudantes em relação a seu lugar dentro da universidade e seu futuro lugar no campo artístico? Como priorizar a criação-educação sobre problemas ou “burrocracias” com as quais se depara? Como converter os problemas em potências?

Em 2009, tomamos como eixo o conceito de deslocação, justamente por considerarmos necessário subverter certas lógicas institucionais estabelecidas. Mudar de lugar, deslocar, subverter. E nós, como professores, fugimos dos lugares comuns, “esperados”.

No IUNA, é comum que as pessoas entrem nas salas durantes as aulas e que usem certas salas como passagem para o outro lado do edifício. Em vez de isso ser um problema, decidimos que aquele que entrava na sala, participava. Ou seja, passar do uso para a participação. Também pensar maneiras para conseguir espaços dentro da própria universidade: tanto através de notas formais com pedidos de salas para ensaios como através de intervenções performáticas nos corredores ou espaços comuns do prédio, dando conta, com este mesmo ato, da falta de espaço na instituição (onde 17 pessoas tentam criar ao mesmo tempo em um espaço de 4m x 8m), assim como a possibilidade de transformar o âmbito compartilhado ou público em um espaço performático potencial para a dança. Ou seja, passar da lógica dos espaços dados para a da gestão ou criação de novos espaços.

(Vale esclarecer que era a primeira vez que se realizava no interior da área de dança do IUNA uma ação performática para expor os problemas coletivos dos estudantes de artes do movimento, que comem, lêem e ensaiam nos corredores por que não há espaço!)

Desta cadeira nasceu o projeto Laboratório, Esferas de experimentação em dança, escrito por Tamia Guayasamín em colaboração com outras ex-alunas e realizado em 2008 em colaboração com a RSD, em vários países. O Laboratório foi, desde sua origem, um projeto associado ao nosso coletivo e ainda hoje em Buenos Aires, nossa colaboração continua [10]. A partir do Laboratório, foi lançada a “dança em construção”, um novo espaço auto-gerido que atualmente reúne artistas em formação, de âmbitos formais e informais.

Des-obrar a obra: criar contextos

Neste processo singular-plural surge o projeto que levei adiante entre 2008 e 2009: a partir de uma convocatória do Centro Cultural de la Cooperación, escrevi um programa de dança e políticas, dentro do qual desenvolvemos um itinerário artístico-político investigativo que resultou em uma performance e na escrita de um caderno de ensaios. [11]

A pesquisa que escolhemos fazer tem como eixo a questão em torno da comunidade, baseada na pergunta sobre os processos coletivos e a co-existência, desenvolve-se em colaboração com um filósofo e outros artistas e ocorre em um contexto de associação com o CCC, centro cultural que promove a cooperação e é apoiado por muitas cooperativas existentes em todo o país.

A pesquisa propõe formas de apresentação diferentes. Como processo cênico, temos apresentado El borde silencioso de las cosas (cujo nome foi primeiro La comunidad de los que no tienen comunidad) cujo eixo é justamente a questão da convivência, da comunidade pensada a partir desse estar junto com outros, na diferença tanto quanto na coincidência. Como podemos pensar junto com todos os outros membros de uma convivência: coisas, animais, pessoas, vivos, mortos, resíduos, natureza, etc. Ousar conviver: aceitar o estar junto – no mundo, uns com os outros – é um desafio. Não podemos pensar como pura singularidade desde o momento em que nos encontramos arremesados no mundo, existindo sempre com outros. Ser é sempre ser singular-plural. [12]

É uma tentativa através da dança, entendida como uma atividade produtora de conhecimento (artístico, existencial, político, etc.) de revelar, evidenciar, expressar, por em cena, aquilo que acontece com os corpos hoje em relação a seu estar-junto com outros no mundo.

Criar em coletivo

Desde princípio do processo criativo se trabalhou com a possibilidade de cada intérprete tomar posição em cena, retomando as ideias de localização e vozes parciais (não dar uma perspectiva ‘de cima’, como ‘os olhos de Deus’, e sim perspectivas singulares de dentro desta convivência) que prega Donna Haraway em seu livro Simios, cyborgs e mulheres. A reinvenção da natureza. A proposta foi que as intérpretes colocassem em jogo suas ideias e que o filósofo, o cenógrafo, os assistentes e a diretora colocássemos os corpos (durante o processo cada um dos integrantes do projeto passamos pela experiência de ‘dançar’, falar, escrever e expor ideias, recomendar livros, filmes, de dirigir um ensaio etc). E isso se traduziu na estrutura da obra de diferentes maneiras: as coisas que estão na cena, que são muitas, todas foram doadas ou encontradas na rua, ou seja, agrega um coletivo de pessoas ainda maior e implicou usar uma rede social para consegui-las.

Os movimentos de cada intérprete são singulares, mas surgem do intercâmbio concreto de ‘materiais’ gerados pelos diferentes integrantes do projeto (ou seja, nem sempre quem gerou esse material é quem o interpreta), trabalhando a ideia de doação-intercâmbio também na criação de movimento; há pequenas coisas que se unem às pessoas durante a obra por um tempo (nesse sentido a ideia de transversalidade citada anteriormente toma forma: “a transversalidade implica um projeto concreto, talvez temporário e precário, porém com objetivo político, integrando as habilidades dos agentes em uma linha coletiva de ação”) etc.

Em termos de gestão e produção, também surgiram perguntas e propostas durante a realização deste projeto. Como princípio, implicou criar um contexto de apresentação que é o programa de dança e políticas (que propõe a escrita de uma pesquisa ao lado da criação de uma obra e que aposta em uma modalidade de trabalho associativo e em colaboração entre diversos atores). Propõe-se um itinerário artístico-político que propicie a reflexão a respeito das políticas que se afirmam durante o processo de criação, apresentação e difusão de uma obra artística. E como uma tentativa de subverter lógicas operantes que não são geralmente questionadas na prática do artista e que implicam uma aposta política não assumida cabalmente.

Coloca-se também como uma possibilidade de contribuir para arraigar em nosso campo social particular a dança, por meio do encontro com outros e criar hábitos de democracia compartilhados.

Gostaria de resgatar algumas palavras de uma colega uruguaia, Lucía Naser, em seu trabalho sobre Corocolectivo citado anteriormente neste texto:

“É interessante como as práticas colaborativas encontram um campo de antecedentes históricos composto por organizações e ações alternativas às hegemônicas no campo cultural, que ao mesmo tempo prevê um pensamento crítico em relação à ação política institucional, propondo caminhos de ação diretos sem recorrer a mecanismos representativos que, às vezes, se encontram contaminados por vícios, inércias e obstáculos institucionais. Assim como estes antecedentes, são relevantes as possibilidade e as limitaçãoes existentes no campo cultural, com as quais as redes colaborativas deverão lidar, ajustando suas iniciativas e imaginando táticas para a ampliação de seus limites. Estas observações, que aparecem excessivamente sintéticas e um pouco dispersas, tem como objetivo chamar atenção para o complexo tecido de relações e forças em que toda rede se situa, já que não se pode pensar em organismos que se proponham estruturas abertas e flexíveis internamente um hermetismo em relação a outros agentes e insituições culturais. O equilíbrio entre princípios de organização interna e externa das redes e coletivos, assim como a relação entre princípios organizativos e objetivos organizacionais.”

O que têm a ver a dança e as políticas?

O que faz com que a arte tenha uma função política é a forma de suas obras, seu reconhecimento cabal como aposta ética e o significado que essas formas podem ter na sociedade. A função política se coloca como uma forma de levar adiante a da proposta de uma obra, de sua afirmação de valores, de sua aposta ética. A isso que Roland Barthes denomina “a moral da forma” e que outro colega resgatado de um dos encontros da RSD, Javier Contreras (membro do projeto Bará, residente no México e amante do Sul), repetiu várias vezes durante os seminários que deu no Diálogos Lima e Neuquén.

Faz-se política, por exemplo, desde o momento em que se põe em cena um modelo corporal, seja ele jovem, fraco, feio, forte, veloz, espirituoso, delicado, velho, calado; ou um modelo temporal, relacional, espacial, de vestuário, ou de questões como o ‘prolixo, sujo, desordenado, desenhado, limpo, útil, eficiente’ etc.

Ao mesmo tempo se propõe encarregar-se desta aposta em outros âmbitos da obra: relação entre criadores, economia, difusão, valor da entrada e localização do teatro (que determina quem entra e quem não entra, ou quem tem acesso mais facilmente), arquitetura do espaço onde se apresentará a obra (espaços abertos, fechados, grandes, pequenos, posição do público e de onde ele assiste – de cima, de baixo, por entre – modos de ocupação e circulação no espaço cênico, referências artísticas e conceituais a resgatar).

A aposta política de uma obra pode ser também pensada e definida em termos de gestão e produção (não como campos externos ou não-vinculados ao que se deseja afirmar numa obra). A partir de várias conversas com minha colega e integrante do c.a.s.a., Carolina Herman, com quem trabalhei em 2008 co-gerindo vários projetos desenvolvidos na rede (Festival CoCoA 10 anos, Diálogos Neuquén-Gabinete Coreográfico, Ciclo Retratos de una Constelación), repensar esses campos no âmbito desta investigação se mostrou fundamental: tanto o modelo de gestão (neste caso, associativo) como o valor de entrada, a gestão e distribuição de recursos, a difusão etc.

Co-laborar entre teatros e artistas?

Foi fundamental para esta investigação que trata da convivência atentar para a importância de subverter certas lógicas que predominam nas relações entre artistas e teatros, e que proporcionam vínculos ‘paternalistas’ ou de ‘uso’, pressupõem lógicas de submissão, desentendimentos, maus-tratos, desinteresse. Como instaurar um vínculo de compromisso de ambas as partes e gerar acordos para trabalhar juntos?

É fundamental que um teatro tenha ciência da responsabilidade de receber determinados artistas, e que os artistas também tenham responsabilidade ao ocupar esse determinado teatro. Ambos se escolhem para dar lugar a uma obra e necessitam um do outro. Para construir um ‘bem-estar-cultural-comum’ é preciso gerar estratégias de sustentabilidade conjunta e critérios comuns de convivência no campo cultural, assim como fomentar o diálogo entre artistas e teatros. Vale deixar claro que, na Argentina, não é comum na dança salários mínimos estipulados ou cachês, porque não é uma atividade considerada profissional. E na maior parte das vezes, os acordos são feitos de forma informal e ‘de boca’ – muitas vezes nem cumpridos.

Pré-supostos?

A criação de um pressuposto reflete o modo de trabalho – no que diz respeito ao seu valor – que se afirma ao realizar uma obra. Observemos o nível de associação com o Centro Cultural de la Cooperación, que se converteu em co-produtor fundamental para a realização, já que suas colaborações quase duplicam os aportes provenientes de fundos de subsídios. Ao mesmo tempo mostra que é possível gerar um projeto sustentado com fundos provenientes de diversas fontes e de uma co-gestão entre: fundos públicos, CCC, empresas ou pessoas que fazem doações, artistas e profissionais que investiram o valor de seu trabalho como recurso humano etc.

Lógicas justas de re-distribuição?

Uma decisão prévia antes de começar a criar uma obra foi de que todos aqueles que participamos do processo íamos trabalhar em cooperativa. Todas as áreas. Não íamos sustentar a noção de ‘cachet’ ou de ‘prestação de serviços’, a não ser que todos os que participaram da obra recebessem ‘honorários’ proporcionais aos fundos obtidos. Ao mesmo tempo se priorizou o pagamento do trabalho de intérpretes, assistentes, diretor de arte e diretora.

Criamos um pressuposto participativo, aceito pela maioria, e cada pessoa criou um documento onde detalhou seu trabalho para poder avaliar a “pontuação” de cada área.

Tentando distribuir os recursos obtidos da forma mais equilibrada possível em relação à quantidade de trabalho de cada um (a equidade não significava ‘equivalência ou igualdade’, e sim aquilo que a maioria entrava em consenso do que era ‘justo’ em relação ao trabalho de cada um e em relação aos trabalhos dos demais). Ficou definido que o gasto em materiais seria mínimo e que se trabalharia com os conceitos de ‘doações’, ‘reciclagem’, resignificação do desperdício.

Se falamos de horizontalidade e participação em um projeto, mas os trabalhos das pessoas podem pressupor valores diferentes de acordo com o tipo de trabalho – concorde ou não com a regulação do atual sistema capitalista (trabalho corporal, pior pago. Trabalho intelectual, melhor pago etc) – é certo que assumimos que só há horizontalidade onde há dinheiro? É possível que as lógicas econômicas não fiquem de fora de nossas próprias metodologias e lógicas de funcionamento?

Uma pergunta que fiz uma vez ao adido cultural da França na Argentina e me parece pertinente aqui, mesmo que soe incoerente: é possível denominar intercâmbio algo que só vai em uma direção?

Um desafio que, para mim, atualmente, enfrenta a criação em dança contemporânea no pouco de América Latina que conheço (falo em nível de América Latina porque felizmente a RSD se expandiu além das fronteiras de seu próprio ‘sul-americanismo’) é não reproduzir os padrões provenientes de processos sócio-políticos ou sócio-históricos como nas colonizações e neocolonizações, nas ditaduras – que deixaram rastros e ainda os encontramos operando silenciosamente[13]. É possível resistir no campo da criação sendo fiel à função e à potência da arte, ganhando mundo, criando-desejando dias melhores, mais justos.

Finais in-concluídos

Os processos de constituição e reconstituição do ser em campos existenciais, criativos, éticos, políticos e sociais são processos singulares plurais, de retroalimentação. Não concebo dizer isso que digo, que penso, que acredito, sem ser atravessada pelos contextos, pessoas, acontecimentos anteriormente mencionados ou sem a existência de uma RSD.

Acredito que a interação entre singularidades e coletividades irradia transformações até zonas impensadas, e opera muitas vezes partindo do silencioso e invisível. O interessante de viver esses processos é observá-los à distância e reconhecer o quão profundamente calam em nós, quase sem darmos conta.

Nos encontramos com Paula Giuria, que veio para visitar – colega e amiga uruguaia organizadora e participante de vários diálogos – e me parece ‘natural’ que uma artista do Uruguai venha a Buenos Aires. Também me parece ‘natural’ me reencontrar com colegas do Chile, Brasil ou México a cada ano. Passaram mais de 8 anos desde o primeiro Encuentro Sudamericano de Danza, em Santiago, quando isso era bem raro.

Felizmente, hoje, nosso continente sem circulação e intercâmbio entre seus artistas é inconcebível para muitas pessoas. E este processo de se habituar foi mais uma construção do que devir ‘natural’ das coisas, do qual considero que a rede foi um mobilizador-ator importante.

A RSD continuar existindo hoje (supondo que digo isso situada em um contexto-país onde as coisas não tendem a se sustentar ou durar) expõe a urgência de encontro e re-conhecimento que inquietou Natacha Melo originalmente, e que logo foi comprometendo muitos outros para pensá-la como construção coletiva (o site hoje reúne mais de 3 mil membros em www.movimento.org).

Para encerrar, continuo me perguntando: O que ou como é a rede? Creio que não tenho resposta, porque sua reformulação contínua gera em mim a sensação de que cada vez que acho que sei o que ou como é isso que denominamos ‘a rede’, já não sei mais, porque volta a se transformar. O texto que escrevo até aqui tentou dar conta disso.

Comemoro a sorte de uma iniciativa particular ter encontrado eco em um coletivo – sempre em processo de ‘reconformação’ – que sustenta e entrelaça aquela e outras novas redes, nem sempre tangíveis, porém estendidas além do esperado no ‘sul-americano’ do seu nome original.

Lucía Russo é bailarina, coreógrafa, gestora, professora e pesquisadora argentina. Atualmente participa do c.a.s.a colectivo artístico.

[1] Coletivo não é somente um grupo. Digamos que ‘grupo’ está incluído no conceito de coletivo, uma nova forma de organização de processos coletivos que possuem uma maneira consciente de relação não hierárquica e participativa na ação. A diversidade existente entre seus integrantes não é um obstáculo, e sim, um elemento que enriquece os intercâmbios, colocando em contato diferentes ‘soluções’ pensadas diante de contextos e ambientes heterogêneos (extrato do trabalho final do curso virtual ‘Ideas y Herramientas para el trabajo Colectivo y en RED / Cultura Senda+RSD: C O R O. Coletivos em Rede e Ocupações – Corocoletivo:www.corocoletivo.org – Lucía Naser, 2009)

[2] Diálogos consiste em encontros entre criadores para trocar e debater em torno da criação, suas ferramentas e processos. Sua intenção é gerar um ambiente de diálogo entre pares e proporcionar a articulação entre os campos da praxis e da teoria. Baseada na análise coletiva de metodologias de criação em dança contemporânea através de mostras de obras, seminários e espaços de reflexão. Para ler o projeto completo, textos produzidos, ver fotos de obras ou criadores que participaram: http://movimientolaredsd.ning.com/profiles/blogs/publicacion-dialogo ou http://www.movimiento.org/group/dilogos

[3] Nota de rodapé: Planejamento Participativo e Gestão Associada, metodologia desenvolvida pela área que leva o mesmo nome na FLACSO – sede acadêmica Argentina

[4] A area de Metodologia da RSD está a cargo da Senda, formada por Adriana Benzaquen y Soledad Giannetti. Elas atualmente sistematizam o trabalho da RSD no projeto Territórios em red, onde se encontra este artigo, e através do seu trabalho colaboraram radicalmente para despertar meu interesse pelas metodologias em geral.

[5] John Law, After Method, Mess in social science research. 2004.

[6] “Assim como na rede em sua totalidade, os participantes dos coletivos se integram por afinidades, colaborando conscientemente com seus diferentes conhecimentos para uma ideia comum, aceitando a multidisciplinaridade no seu âmago e sempre aperfeiçoando e explorando novos métodos de colaboração conjunta, reconhecendo e aplicando suas potencialidades. Esta maneira consciente também remete ao caráter auto-reflexivo e de constante auto-observação que estas organizações praticam, desenvolvendo um meta-discurso sobre seus mecanismos de integração, objetivos e princípios. Assim, vemos que além das ações concretas acerca das que se articularam nestes espaços, ao analisar a arte pelo processo coletivo, a possibilidade de ampliar os limites transformadores da linguagem e da experiência se apresenta, buscando interseções com outros territórios de conhecimento em uma espécie de filosofia prática e de política estética. Em primeiro lugar, as práticas colaborativas colocam o coletivo e o individual em uma convergência que não é dicotômica, mas que apresenta um entendimento particular da relação entre o coletivo e o individual. O conceito de “transversalização” (proposto por Derrida) parece dar conta dos novos modos de colaboração e convivência. Como assinala o crítico Ricardo Rosas: “a transversalidade implica um projeto concreto, talvez temporário e precário, mas com um objetivo político, integrando as habilidades dos agentes em uma linha coletiva de ação”. A transversalidade dissolve a oposição entre o individual e o coletivo, pois está “ligada a uma crítica da representação, a uma recusa de falar pelos outros, em nome de outros…”

[7] http://movimientolaredsd.ning.com/profile/Laboratorio, http://laboratorioesferas.blogspot.com

[8] Os escritos da pesquisa estão disponíveis em www.elbordesilenciosodelascosas.wordpress.com

[9] “O ‘ser-com’ é um problema mais próprio do ser. Singular plural: de forma que a singularidade de cada um resulte indisociável de seu ‘ser-com-vários’, e porque, na verdade, e em geral, uma singularidade é indissociável de uma pluralidade. O conceito do singular implica em sua singularização e, portanto, sua distinção de outras singularidades. O singular é, de repente, cada um e por tanto cada ‘com’ e entre todos os outros” Nancy,Jean Luc; Ser Singular Plural; Ed. Arena Libros; Madrid 2006.

[10] Sobre este tema, é interessante um texto de Nirvana Marinho sobre as ditaduras, publicado no livro op.Cit http://movimientolaredsd.ning.com/profiles/blogs/publicacion-dialogos