Ruth Rachou: vida em processo | Ruth Rachou: life in process

O início de abril em São Paulo foi marcado pela comemoração dos 80 anos da bailarina, coreógrafa e professora Ruth Rachou (17 de agosto de 1927), história viva da dança moderna no Brasil. Principal introdutora no país da técnica de Martha Graham (1894-1991), que influenciou toda uma geração na dança e no teatro, sua vida foi biografada por Bernadette Figueiredo e Izaías Almada no livro Ruth Rachou[1]. A obra une os fatos mais marcantes da vida pessoal e profissional de Ruth às suas memórias e aos de seus familiares e amigos. “Eu não diria que essa é uma biografia definitiva, mesmo porque, como a Ruth está viva, sempre vai ter algo mais para contar ou lembrar. Assim, fica sempre uma porta aberta para novos fatos, novas lembranças e, quem sabe, até um novo livro, que nos leve por outras trilhas, trazendo à tona outras vivências ainda não mencionadas”, afirma Bernadette.

A homenagem à bailarina contou ainda com a exposição Re-Tratos, idealizada por Leonardo Crescenti e Bernadette Figueiredo, e com o espetáculo Vir a Ser, apresentado na Galeria Olido e na Sala Crisantempo. Com direção de Mara Borba, Célia Gouvêa, Francisco Medeiros e José Possi Neto, amigos de longa data de Ruth Rachou, o espetáculo foi montado coletivamente por Andréia Yonashiro, Daniela Stasi, Juliana Rinaldi, Mariana Muniz, Armando Aurich e contou com a participação especial da atriz e cantora Amanda Acosta, grávida de quatro meses.

“O elenco foi sendo afinado de acordo com as necessidades das cenas a serem desenvolvidas”, afirma Mara Borba, responsável pela criação do roteiro do espetáculo. “Tudo foi feito com liberdade, partindo de imagens, memórias e inspiração. Em nenhum momento nos aprisionamos ao já feito, mas as referências nos enriqueceram”. Nesse sentido, os espetáculos coreografados por Célia Gouvêa – Caminhada (1974), Isadora, Ventos e Vagas (1978) e Nijinsky (1987) – nos quais Ruth participou como bailarina, tiveram papel importante na criação do espetáculo. “Para a atual montagem, contávamos com um trio de bailarinas, ‘as três graças’. Investiguei com elas o movimento fluido, queria que as três correspondessem a ‘lufadas de ar'”, comenta Célia.

Em entrevista exclusiva ao idança.net, Ruth Rachou comenta o espetáculo de maneira emocionada: “foi um sonho de reaparecer, mas ao mesmo tempo uma criação nova em cima dessas memórias que já trabalhamos. O espetáculo pode ser visto como um reflexo da trajetória feminina de Ruth no espelho. “Via uma mulher ainda ‘inteiraça’ aos 80, a grávida nua enquanto presença sagrada e a criança como ciclos de vida”, sintetiza Célia.

Daniel Augusto Jr.

Dialética moderna

Na história, todo novo período criador começa por uma transgressão e uma revolta, escreve Roger Garaudy[2]. A história da dança moderna ilustra essa dialética. Ao contrário de Isadora Duncan, Martha Graham não quis se identificar com os ritmos da natureza: “Eu não quero ser uma árvore, uma flor, uma onda ou uma nuvem. Não devemos procurar uma imitação das ações cotidianas, dos fenômenos da natureza ou de criaturas exóticas de outro planeta, mas sim alguma coisa deste milagre que é o ser humano motivado, disciplinado e concentrado”[3]. Da mesma forma, rejeitou Ruth Saint Denis, com quem estudou na escola Denishawn: “Estou saturada de dançar os deuses hindus e os ritos astecas. Quero falar sobre os problemas do nosso século, onde a máquina perturba os ritmos do gesto humano e onde a guerra fustigou as emoções e desencadeou os instintos”[4].

Ao vivenciar a Primeira Guerra Mundial e a crise de 1929 que assolou o país onde nasceu, Martha Graham fez vir à tona não apenas o aspecto glorioso do homem, mas também o horror, a angústia e a revolta em gestos violentos e impulsos bruscos, como se o corpo quisesse chegar aos seus abismos, ultrapassando fronteiras. Nesse sentido, voltou-se para outras artes buscando inspiração na pintura de Picasso, em Kandinsky, na música de Bela Bartok, no surrealismo de T. S. Eliot e também na psicanálise de Freud e de Jung.

A dança, para Martha Graham, não estava separada da dramaturgia; dessa forma, resgatou o coro do teatro grego, o nô japonês que significa com a mesma palavra “ator” e “bailarino” e a dança evocadora do mito do teatro de Bali. Para ela, todo movimento expressivo da vida tem origem no ato de respirar, no movimento de concentrar as forças num centro motor – localizado na região pélvica e genital – e em seguida irradiá-las. Porém, Martha Graham não pretendeu mascarar o arcabouço emocional sobre o qual se constroem os movimentos. “Assim como os pintores e arquitetos modernos, afastamos os ouropéis decorativos. Da mesma forma que os floreios desapareceram de nossas casas, a dança deixou de ser rendilhada; menos bonita, ela é mais real”[5].

Desbravadora de caminhos

Não seria demais enunciar, ressaltam os autores da biografia de Ruth Rachou, que ela nasceu no ano de morte de Isadora Duncan e que estava sendo concebida no ano em que Martha Graham fundava sua companhia de dança nos Estados Unidos. Durante a entrevista, Ruth falou sobre seu início no balé clássico, as dificuldades enfrentadas durante o Ballet IV Centenário e o encontro com a técnica da Martha Graham. “Percebi que o clássico não era bem aquilo que eu queria fazer e comecei a pesquisar sobre essa nova dança. Me aprofundei muito na técnica de Martha Graham, mas também em outras, como Merce Cunningham e José Limón”, conta Ruth.

“A Ruth introduziu seus alunos em técnicas específicas de dança moderna nas quais se aprofundou, sendo ao mesmo tempo uma personalidade aberta, aglutinadora, que topava tudo – falo de novas experiências na vida e na arte, por isso é extenso o número de seus ex-alunos que lhe são gratos”, afirma Célia Gouvêa. Para Mara Borba, que trabalhou por muitos anos com a dança-teatro na Alemanha, a expressividade introduzida no Brasil por Ruth Rachou, ia além da técnica Graham. “As técnicas, em geral, nas aulas da Ruth, serviam de base para o preparo de corpos, mas a sua expressividade era exercitada nas aulas de improvisação e composição e em resultados criativos”, ressalta Mara.

Ruth comenta também a criação de um espaço de reflexão para a dança nos anos 80 na sua escola e a passagem do moderno para o contemporâneo nas suas aulas. “Eu fiz a minha técnica; juntei o que acho bom o bailarino trabalhar para ter o corpo legal para dançar”. Por fim, fala da experiência de estar no palco aos 80 anos. “Eu adoro estar no palco, sempre adorei”, diz Ruth. A entrevista que segue é mais uma oportunidade de compartilhar o pensamento dessa grande mestra da dança moderna no Brasil.

idança.net: Como foram seus primeiros passos de sapatilha de ponta? Maria Olenewa foi sua principal mestra no clássico?
Eu danço desde pequenininha. Naquela época sempre achavam que as meninas deviam dançar. Na verdade, para mim não era muito bom, eu não gostava muito, minha irmã gostava mais. Mas era como mamãe falava: “O que uma faz, a outra vai fazer”. Então comecei meus estudos de dança, mas de forma muito amadora. Quando cheguei na adolescência, me interessei em estudar melhor a dança, me informar sobre a dança clássica, porque na época a dança moderna estava muito esparsa. Estudei a dança clássica com a Olenewa até a época em que fiz o teste para o Ballet IV Centenário. Mesmo durante o IV Centenário a técnica básica era o clássico. Se bem que as coreografias eram bem modernas, mas sempre dentro da estética clássica.

idança: A vida de muitos bailarinos do Ballet IV Centenário mudou depois que encontraram as portas do Teatro Municipal de São Paulo fechadas. Podemos dizer que foi nesse momento que a trilha da dança moderna se abriu para você?
Quando fecharam as portas a gente realmente teve que se virar. Eram 60 pessoas que de repente estavam na rua. Muitos estrangeiros voltaram para o seu país de origem, mas nós brasileiras, nós paulistanas, ficamos sem trabalho, sem profissão. Então começamos a tentar novos caminhos. Grande parte das meninas do Ballet IV Centenário, até mesmo os rapazes, começaram a trabalhar para a televisão, outros abriram escolas de dança clássica. Durante muitos anos fui coreógrafa e diretora do núcleo de dança na TV Record. Nessa época, eu conheci a Sonia Shaw, coreógrafa americana que veio para o Brasil montar os espetáculos Squindô e Tio Samba, dos quais participei como bailarina. Ela já trouxe uma maneira de aula e aquecimento diferente do que a gente conhecia. Foi aí que começou realmente a despertar dentro de mim uma curiosidade sobre essa nova maneira de dançar e de dar aulas, de preparar o físico para a dança. Percebi que o clássico não era bem aquilo que eu queria fazer e comecei a pesquisar sobre essa nova dança. Procurei pelas esparsas escolas que realmente tinham essa forma de dança no Brasil e de repente ouvi falar de Martha Graham. Nessa época não tinha literatura, não tinha nada, então a gente tinha realmente que batalhar. Conheci uma americana que me contou sobre Martha Graham e sobre a dança moderna e me falou que eu devia ir para os Estados Unidos. Fui fazer um pequeno estágio em Nova York e lá procurei direto pela escola da Martha Graham. Mas eu nunca tinha feito a aula dela e eu não sabia absolutamente nada, claro! Ela logo percebeu, me apontou e disse que eu não deveria estar lá. Então comecei onde devia começar. Fiz aula, estudei, fui subindo do básico para o médio, para o avançado e me aprofundei muito nessa técnica, mas também em outras, como na de Merce Cunningham e José Limón. Era uma variedade de coisas interessantes para aprender que eu fiquei realmente alucinada. Consegui entrar no Festival de Dança de Connecticut e quando voltei resolvi abrir minha escola em São Paulo.

idança: Que novas possibilidades a técnica de Martha Graham trazia para o corpo brasileiro nos anos 70?
É uma técnica bastante difícil para o corpo, porque ela usa muito as articulações, principalmente a da virilha. O bailarino precisa aos poucos fortalecer e dar maior flexibilidade ao corpo, à coluna e à articulação da virilha. Tanto que é raro os homens se identificarem com essa técnica porque a construção da bacia deles é diferente da nossa. Ela modifica bastante o corpo, alonga bem e trabalha muito o centro do tronco. A Martha Graham sempre dizia que o centro, o núcleo da gente fica bem aqui, onde as emoções batem. Ela se preocupou em trabalhar, em fortalecer e acordar esse centro para a dança ter uma expressão também. Isso foi muito importante, não só demonstrar movimentos mais difíceis ou menos difíceis.

idança: Aí entra a dança-teatro também?
Sim, essa então está difícil no Brasil; as pessoas não aceitam. A técnica clássica ainda está muito enraizada aqui. Acho que a técnica clássica tem que existir, ela é uma forma artística da dança muito importante, mas não se pode impedir que a dança também se modernize. Se bem que a técnica clássica se modernizou muito no decorrer dos anos. Mas a dança-teatro ainda tem muita dificuldade em se desenvolver porque o bailarino não estudou para ser atriz ou ator. Eu trouxe dos Estados Unidos os cursos de expressão corporal e na época eu dava muito mais aulas para atores do que para bailarinos. Eles simplesmente se recusavam a dedicar tanta emoção dentro do seu movimento. Tem muita coisa acontecendo hoje nesse sentido que todos falam que é uma grande novidade. Eu já fazia isso nos anos 70. É uma batalha, mas vale a pena. Não é fácil, mas toma conta da sua vida, faz parte da sua vida. É um processo que está enraizado dentro de você.

idança: Você falou em Merce Cunningham e José Limón. Você assimilou alguma dessas técnicas na suas aulas e na sua dança?
Nem tanto. Eu gosto das técnicas deles, fiz lá nos Estados Unidos, mas me identifiquei mais com a da Martha Graham. O que eu uso bastante agora é a técnica da Doris Humphrey. Vejo que todo coreógrafo exige muita queda e suspensão dos alunos e profissionais. Pensei então que eles têm que fazer essa técnica da Doris Humphrey porque ela ensina a fazer esses movimentos sem se machucar.

idança: A ligação de seus pais com a Alemanha, as turbulências das duas Grandes Guerras Mundiais e os traumas vividos durante a ditadura no Brasil influenciaram seu modo de expressão na dança?
Pode ser. Na verdade, eu era muito pequena quando tive contato pela primeira vez com a dança moderna, mas acho que foi uma influência também da Chinita Ullman, que fazia dança expressionista alemã. Tanto que ela era muito amiga da minha mãe, que fazia aula com ela. Então isso pode ter sido uma influência para mim também.

idança: Assistimos atualmente à criação da São Paulo Companhia de Dança pelo Governo do Estado de São Paulo, segundo seu catálogo, baseada numa linguagem que tem origem no balé clássico, dialogando com o hip-hop, com as danças de cultura popular e com a dança contemporânea. Existe uma desproporcionalidade sendo apontada na distribuição dos recursos entre o orçamento reservado para essa nova companhia e os grupos que já existem (R$ 13 milhões e R$ 1,4 milhão respectivamente)[6]. Como você vê essa questão?
Eu acho que isso não está certo. Acho certíssimo que tenha essa companhia, quanto mais companhias e mais atividade nesse sentido mais mercado de trabalho para os bailarinos. Mas acho que é muito injusto com grupos e companhias que já existem. Essas companhias têm uma batalha muito triste para poder sobreviver, para poder ter o seu teatro, para poder dançar. Por que uma companhia oficial tem todas essas regalias enquanto que as outras particulares que lutam tanto não recebem um pouco mais de ajuda do governo? Elas existem há muitos anos, são conhecidas e famosas por aí, mas a troco de muito suor, principalmente com relação à parte financeira. Os bailarinos trabalham e não recebem uma mensalidade boa para poder sobreviver, então precisam trabalhar fora, fazer horas extras, o que é muito cansativo. Isso vai cair em cima da técnica dele, na maneira dele se expressar. Então não devia ser um pouco mais justo tudo isso? Acho válida essa companhia, mas, vamos dialogar um pouco mais sobre o que já existe. Foram buscar bailarino de todo o mundo, mas aqui o bailarino tem que ir para fora para sobreviver. Se ele realmente quer seguir carreira e é um bom bailarino ou bailarina ele tem que ir embora, tem que ir para uma companhia fora daqui. É uma coisa muito estranha isso. Aí eu acho que está ruim esse negócio para quem fica de fora. Fica de fora porque sobreviveu até hoje uma batalha inglória.

idança: Como foi dirigir nos anos 80 o Balé da Cidade de São Paulo ao lado de Klaus Vianna e em seguida trabalhar como sua assistente no Grupo Experimental do Balé da Cidade, buscando uma linguagem mais contemporânea e experimental de movimento?
Foi muito bom. O Klauss me convidou para ser sua assistente quando ele foi convidado para ser diretor. Eu aceitei e nós queríamos formar esse segundo grupo que seria mais moderno. Isso funcionou bem durante pouco tempo, tanto que o Klauss ficou pouco. A pressão era sempre muito grande, então ele não quis mais continuar dentro de um trabalho que exigia tanta pressão da Prefeitura e onde era muito difícil fazer o que ele queria. E quando o Klauss não consegue aquilo que quer, ele desiste. E aí saímos os dois e eu entrei na Escola Municipal de Bailado, onde fiquei praticamente 15 anos dando a técnica específica da Martha Graham para os dois últimos anos, 7o e 8o. Acho que esse tempo foi bastante produtivo para os jovens que faziam clássico e tiveram a chance de conhecer uma técnica moderna também. Isso é muito importante. Eu saí, mas hoje continua com outra professora.

idança: Helena Katz, na orelha da sua biografia, diz que o que distinguiu tudo o que você fez foi a crença de que um bailarino se forma ensaiando em sala de aula e também fora dela, aprendendo a pensar e a pesquisar. Como foi encontrar esse espaço de profissionalismo e reflexão para a dança nos anos 80? Como você vê a evolução desse espaço nos dias de hoje?
Acho que está evoluindo bem e eu acho muito importante porque o bailarino não pode ser só físico. Ele tem que trabalhar a cabeça e saber das coisas e ver onde a dança começou, por que existe o moderno, quem fez o moderno etc. Tem que saber a história da sua arte. Ainda faltam boas traduções da literatura que existe, pois existe uma grande literatura sobre técnica, biografias, muitas coisas importantes para o bailarino conhecer. Eu tenho estantes de livros em casa sobre dança, mas tudo estrangeiro. Livros que falam sobre diversas coisas sobre a dança, sobre o que os críticos acham, como eles fazem a crítica, sobre escrever a dança. Mas já existem faculdades com esse leque grande de conhecimento sobre dança. Isso eu acho formidável. Eu e Raul já tentamos fazer essa união na outra escola que nós tínhamos. Convidamos a Helena Katz, um músico, um médico para dar aula sobre o assunto, mas é difícil segurar esses profissionais, eles precisam receber e as escolas particulares dificilmente conseguem manter isso. Na Bahia, tem a UFBA, em Campinas, a Unicamp, outras aqui em São Paulo. Mesmo na Escola Municipal de Bailado já está surgindo essa parte de aulas sobre a história da dança. Antigamente, as meninas que saíam de lá sabiam apenas o que era plié, grand plié, petit plié. Isso não forma um artista da dança. A cabeça tem que funcionar. Você tem que saber a origem das coisas para mergulhar nelas e ser um bom profissional da dança.

idança: Desde os anos 90 as aulas de Pilates ocupam um espaço privilegiado na grade de aulas da sua escola. Como ele se alia à técnica de Graham e às outras técnicas da escola (clássico, moderno, contemporâneo, tango e dança de salão)?
Primeiro porque a Graham fazia Pilates com o próprio Joseph Pilates; ela achava muito importante. A técnica Pilates na verdade foi criada para profissionais da dança, mas também para ginastas, tenistas, músicos, toda uma gama de profissões que usam o corpo. E foi para isso que o Joseph Pilates aperfeiçoou sua técnica. Ela é importante paralelamente à técnica da dança para melhorar o desempenho do corpo e reequilibrar a musculatura que muitas vezes é utilizada de forma desigual. Se eu tenho um lado que minha perna levanta mais que a outra eu vou sempre fazer mais força desse lado que do outro. Quando eu fui para os Estados Unidos aprender a técnica Pilates, junto comigo nas aulas estavam todos os bailarinos das grandes companhias de Nova York. A Daniela Stasi – que foi quem realmente me introduziu no Pilates – disse que eu devia ir lá aprender. Então eu fui. Hoje, além das aulas de dança moderna que ela está dando nessa companhia nova [São Paulo Companhia de Dança], ela dá Pilates também. Inclusive, estão dando aulas de história da dança. Mais do que apenas técnica e isso é muito bom.

idança: Sua escola possui aulas de moderno e contemporâneo. Como se dá essa transição do moderno para o contemporâneo?
Isso é muito complexo porque cada um tem a sua opinião sobre isso. Eu acho que a técnica contemporânea é uma junção de diversas técnicas, enquanto que o moderno é a técnica específica da Martha Graham, do José Limón e assim por diante. O contemporâneo usa todas essas técnicas juntas e faz uma dança contemporânea. Essa é a minha opinião sobre esse assunto, porque existem diversas definições. Na verdade, contemporâneo e moderno, moderno e contemporâneo, são a mesma coisa. O contemporâneo talvez seja o moderno agora. A Daniela [Stasi], por exemplo, dá técnica específica de Martha Graham na minha escola. Eu fiz a minha técnica; juntei o que acho bom o bailarino trabalhar para ter o corpo legal para dançar.

idança: Você sente que a técnica moderna evoluiu de forma consistente em alguns trabalhos? Quais você destacaria atualmente?
Vejo um trabalho muito atualizado no Grupo Corpo e no Cisne Negro. Principalmente os coreógrafos que vêm de Minas Gerias e Goiás trazem coisas muito novas e boas; vejo que existe uma pesquisa muito interessante em cima disso. Aqui existem pequenos grupos ainda semi-amadores que possuem trabalhos interessantes também. Às vezes são até alunos meus que formaram pequenos grupos e vão trabalhar, pesquisar. Esses todos assimilaram essa parte que eu faço de juntar um pouco todas as técnicas. Às vezes não é muito bom, às vezes é muito bom e muito interessante. Mas eu acho que o não muito bom vai evoluindo, vai crescendo, vai vendo, se corrigindo e melhorando. Existe um trabalho muito bom por aí que está começando e eu acho que vale.

idança: Como se deu o processo de criação do espetáculo Vir a Ser? Você orientou de alguma forma?
Não. Foi todo trabalho deles. Quem começou com tudo na verdade foi a Bernadette Figueiredo, minha amiga há muito tempo e com quem já trabalhei. Um dia fomos almoçar e ela fez a proposta de escrevermos uma biografia minha já que todo mundo estava escrevendo biografia. Eu disse que não teria nada contra, mas que eu não poderia escrever porque não sou escritora. Ela disse que conhecia alguém que poderia fazer isso e eu aceitei. Então, ela propôs fazermos também um grande espetáculo ao lançar o livro. Como ela ganhou o apoio da Funarte e eu o Prêmio Klauss Vianna resolvemos fazer o livro e um espetáculo com gente profissional. Falamos então em Mara Borba. Mara Borba me chama até de “mãe”. Trabalhou comigo durante muito tempo e é uma criadora impressionante, tem idéias maravilhosas. Ela começou a fazer um roteiro básico e a partir desse roteiro cada um foi pondo o que queria e o que não queria, criando a sua parte. O Possi [José Possi Neto] é uma pessoa com quem adoro trabalhar porque ele consegue tirar da gente a alma e colocar no palco. Ele tem essa capacidade de direção impressionante. Chiquinho [Francisco Medeiros] também é uma pessoa maravilhosa para trabalhar e dirigir; também é grande amigo meu. Com a Celinha [Célia Gouvêa] trabalhei muito. O grupo foi se formando assim. Da junção desse núcleo de quatro pessoas surgiu o espetáculo. Convidamos essas meninas que são minhas alunas, a Daniela Stasi e a Mariana [Muniz], que é uma ótima intérprete e bailarina. A Mariana disse que gostaria de trabalhar com o Armando [Aurich], então procuramos o Armando, que concordou. No processo de criação desse grupo – Mara, Possi, Chiquinho, Celinha – de repente surgiu a idéia de ter uma bailarina que cantasse e que estivesse grávida. O produtor disse que conhecia uma que fez My Fair Lady e que agora estava grávida. Veio então a Amanda que é uma maravilha. Assim surgiu a união desse grupo que trabalhou tanto comigo em épocas passadas; épocas talvez em que apresentamos criações muito novas para a dança e para o próprio público. Nós enfrentamos isso e às vezes foi difícil. E eu adorava trabalhar com eles, sempre. Adorei dessa vez também, foi um prazer tão grande, realmente me emocionou muito. Ter uma homenagem dessas para mim foi muito bom, muito maravilhoso. Eu agradeço a essa gente toda que trabalhou e fez esse espetáculo.

Beto de Faria

idança: De que forma as memórias e o onírico aparecem no espetáculo?
É bastante onírico, exatamente. Foram memórias de coisas já feitas. É um sonho de reaparecer, mas ao mesmo tempo uma criação nova em cima dessas memórias que já trabalhamos. Não é nem uma releitura, não se pode falar assim. Foi emocionante.

idança: Percebe-se uma referência às transformações do universo feminino no espetáculo, como infância, maternidade e erotismo. Existe isso no espetáculo?
Sim, existe e existe mesmo. A Celinha sempre gostou de trabalhar em cima desse tema que ela tirou um pouco da maneira de viver da Isadora Duncan. Ela tirou um pouco do universo feminino dessa mulher que na época dela se libertou tanto, que ousou tanto. Eu também gosto de trabalhar em cima desse assunto, essa liberdade feminina, essa autenticidade de coisas femininas. Então acho que as coisas se juntaram. Naquela época, trabalhamos muito em cima desses assuntos e isso agora voltou à tona com esse trabalho.

idança: É bonito ver homem e mulher dançando juntos na parte final. Como se dá a presença masculina no espetáculo?
É difícil falar porque não criei isso. Acho que a presença masculina é muito importante dentro da vida da mulher, então ela tem que existir também. Não é só a mulher que existe. Para mim seria nesse sentido que surgiu essa figura masculina no espetáculo. Que era uma figura muito importante também para a Isadora Duncan; essa força, esse outro aspecto mais forte.

Leonardo Crescenti

idança: Como é estar no palco aos 80 anos com teatro lotado?
É uma emoção só. É do começo ao fim uma emoção só. Eu adoro estar no palco, sempre adorei. É claro que de um tempo para cá não tenho mais a capacidade de dançar, afinal tenho 80 anos, mas esse tipo de trabalho eu adoro fazer também. Eu pensei: “Meu Deus, isso tudo é para mim?”. É muito, você fica muito emocionada, é muito forte, te pega lá no fundo. E isso eu transmiti no meu trabalho dentro do espetáculo.

idança: Para Martha Graham, a dança era a celebração da vida, um chamado religioso que requeria devoção absoluta. Para você o que é a dança?
A dança para mim é a vida. É um processo de amadurecimento, de crescer dentro de você e em relação às pessoas. É um aprendizado eterno. Para mim, a dança é a vida também. Talvez não tão religiosa como a Martha Graham menciona, mas é um ato de vida, um processo de vida muito bom e muito importante.

Beto de Faria

Entrevista concedida no Espaço de Dança Ruth Rachou, na Vila Olímpia, em São Paulo.

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Deborah Rocha é jornalista formada pela PUC-SP e dançarina de Dança Indiana Odissi.

[1] Ruth Rachou, Bernadette Figueiredo e Izaías Almada. São Paulo, Caros Amigos Editora, 2008.

[2] GARAUDY, Roger. Dançar a Vida. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980.

[3] Op. Cit., p. 89.

[4] Op. Cit., p. 89.

[5] Op. Cit., p. 102.

[6] http://www.helenakatz.pro.br/midia/helenakatz41201609010.jpgPortuguese only