Saberes interligados | Knowledge interface

Ítalo Calvino sugere que para descrever o mundo a primeira coisa a fazer é estabelecer a posição em que cada um se encontra. Aqui, o lugar não é algo compreendido como uma coleção de coordenadas físicas e geográficas, mas como uma orientação: uma certa atitude com relação àquilo que se observa, uma mescla de disposições e investimentos que contribui para a própria constituição daquilo que é observado.

Nesse sentido, as observações praticadas através da história do FID exibem uma orientação bastante específica e consistente: uma concepção do que pode ser a dança hoje marcada pelos revezamentos entre teoria e prática. Em conseqüência, há um investimento maciço na borra de fronteiras rígidas entre produto e processo, reflexão e exercício, que já se tornou uma característica central do modo de operação do FID. A edição 2003 do FID – TMTC apresenta trabalhos que gravitam ao redor destas orientações, contribuindo mais uma vez para o desenho de uma constelação investigativa rica, fértil e produtiva. Quer se debrucem sobre a educação da atenção e a propriocepção, sobre a natureza midiática do corpo, sobre os paradoxos do movimento na megalópole ou sobre o poder dos limites, os processos participam de um esforço conjunto de produção e disseminação de conhecimento, angulado de maneira bastante precisa pela sugestão do biólogo chileno Humberto Maturana, de que todo saber é fazer e todo fazer é saber. Tal sugestão é muito mais que apenas um voto a favor de uma concepção do conhecimento como algo que participa, sempre e inevitavelmente, da dinâmica corporal de agentes sociais: trata-se de algo potente também do ponto de vista político. É um convite para pensar um mundo em que os saberes estão distribuídos de maneira diferente, e trafegam em regimes mais cooperativos e menos hierárquicos. A história do FID e sua participação na vida cultural podem ser vistas como o sedimento de gestos que intentam contribuir para a criação de um mundo marcado por uma orientação diferente: um mundo mais generoso, pluralista e equânime.

[Luciana + Margô] + [Alexsander + Aretha + Geozelli + Ilma + Ludmilla + Rogéria + Verônica]
Interface

A estudiosa do movimento Bonnie Bainbridge Cohen compilou ao longo dos anos uma série de recursos voltados para uma educação da atenção: ao invés de discutir estruturas anatômicas e sua importância na construção do movimento de maneira abstrata, seu trabalho propõe focalizar e reconhecer na nossa experiência a presença dessas estruturas. Tal mudança de perspectiva propicia a emergência de novos padrões de saliências nas concepções a respeito da origem, manutenção e expressividade do movimento, no vocabulário que utilizamos para descrever o processo de criação de coreografias e performances, e mesmo na maneira como articulamos as esferas da razão, da emoção e da corporalidade.

Dando continuidade a um trabalho de investigação que, no espaço das produções associadas ao FID, já resultou em Experimento 1 (TMTC-2001) e In Situ (TMTC-2002), Luciana Gontijo e Margô Assis investem agora na disseminação de sua estratégia de pesquisa e criação coreográfica. Interface consiste em alguns resultados de um processo de apresentação da metodologia de investigação e produção coreográfica inspirada pelo trabalho de Bonnie Cohen a um grupo de jovens coreógrafos. Dirigidos pelas idéias de raciocínio corporal e centramento, os trabalhos dedicam-se a expandir a própria concepção de consciência corporal de cada um, e exploram as conseqüências de um foco em corpo e espaço para a produção coreográfica. Investigação, desafio, autonomia criativa e atenção ao processo são palavras-chave para a concepção de raciocínio corporal expressa através deste trabalho, e a coordenação dos resultados no espetáculo exibe algumas facetas do que pode ser esta perspectiva para a criação em dança.

[Vanilton Lakka]
Você, um imóvel corpo acelerado

Rapidez e aceleração cada vez mais incrementadas; efetivos deslocamentos cada vez mais reduzidos. Características pregnantes do modo de vida contemporâneo, estes traços são incorporados, no trabalho de Vanilton Lakka, a uma concepção do corpo como um vetor midiático: um condutor de informação e, parafraseando McLuhan, uma “mensagem” em si mesmo.

Resultado de explorações em torno da dança realizada em espaços públicos urbanos em Uberlândia e Belo Horizonte, estudos de etnocenologia e questionamentos sobre a relação entre a idéia do corpo enquanto mídia e o desenvolvimento de uma “mídia corporal”, o trabalho de Lakka consiste em uma intervenção dirigida a provocar os transeuntes — fortuitos usuários de um “não-lugar” — a se interrogarem sobre questões de movimento, tempo, espaço e deslocamento. Um homem caminha em uma esteira de exercícios diante de uma tela de computador. Um corpo se mostra em sua condição de perplexidade motora, em uma caminhada que não produz deslocamento. Um olhar se dirige para uma tela na qual reside a promessa de deslocamento sem movimento. O que está sendo exibido aqui? Em torno de todas essas facetas do trabalho de Lakka, os movimentos mais intensos e visíveis são aqueles operados pelas questões que o trabalho coloca para todos os envolvidos, e que tangenciam a própria natureza da produção artística no horizonte da indústria cultural.

[Márcia Neves]
Em Trânsito

Uma rede bastante extensa do vocabulário contemporâneo vincula-se à noção de trânsito. Tráfego, tráfico, transição, transitoriedade: todos são termos de uso corrente em inúmeros espaços discursivos, indicando noções que se alojam muito bem na disposição ordinária das expectativas na vida citadina.

Em seu trabalho, Márcia Neves opera como uma tradutora deste campo de significados, realizando uma coreografia que, ao narrar alguns dos paradoxos e tensões associados a nossa relação com o trânsito em um sentido bastante específico – itinerários urbanos cotidianos, automóveis, cintos de segurança, sons do tráfego, engarrafamentos, semáforos, polícia, celular, apressados e ultrapassagens – pode ser ampliada para alcançar toda a imensa variedade de sentidos de trânsito que podemos circunscrever. Através do uso de um aparato cenográfico que explicita a referência imediata do trabalho, Márcia Neves joga com a audiência em um registro que oscila sempre entre o literal e o irônico, provocando e tornando mais aguda a nossa percepção de que, em uma época tão marcada por uma retórica de elogio ao movimento, talvez um dos aspectos mais gritantes da vida dos cidadãos urbanos seja sua imobilidade, sua efetiva incapacidade de mudar de lugar.

[Joana Carmo]
Deserto

Uma alusão ao deserto entre nós pode provocar visões de privação e dificuldade, e ecos de um ambiente marcado por sua hostilidade à presença humana. Mas pode também trazer imagens de oásis e tamareiras, e o exotismo eventualmente convidativo de culturas distantes. Vista por um prisma romântico, a imagem do deserto agrega certa imprevisibilidade e perigo à idéia de mistérios ocultos entre as areias.

Em seu Deserto Joana Carmo não satisfaz a nenhuma destas expectativas cristalizadas. Realizado com uma atenção para o nexo entre as noções de limite e possibilidade, o trabalho desvia constantemente a audiência das expectativas canônicas, e investe na eloqüência do detalhe e na expressividade do mínimo. Habitar o deserto é, via de regra, negociar com a precariedade, com a perene lembrança de que os recursos disponíveis são limitados, e que a parcimônia é uma questão de sobrevivência. Nas explorações e reiterações do vocabulário gestual e nas várias manobras de confluência, diálogo e interferência — propiciadas, por um lado, pelo contato entre seus raciocínios corporais e a música precisa do Grivo e, por outro, pela transparência do filó que abriga os desenhos animados criados por ela – Deserto desafia a cada momento as expectativas da audiência. Negociações com a precariedade, limitação de recursos, a opção pela parcimônia, as várias tramas semióticas e discursivas que participam da composição da vida: é dessa amplitude que fala o Deserto de Joana Carmo. Evocando John Cage, trata-se aqui de “observar o que há para ver e ouvir no teatro no qual acontece de estarmos vivendo”.

Antônio Marcos Pereira é doutorando em Estudos Linguísticos na UFMG, e foi Coordenador Artístico do FID – TMTC 2003.Translation by Sarah Hyde, Ccaps Translation and Localization.

According to ÿtalo Calvino, in order to describe the world, the first thing that one must do is determine the position that each individual occupies. Here, place is not understood as a collection of physical and geographic coordinates, but rather as an orientation: a certain attitude in relation to what one observes, a blend of arrangements and investments that contribute to the very constitution of that which is observed.

In this sense, the observations practiced throughout the history of the FID exhibit an orientation that is quite specific and consistent: a concept of what dance can be today marked by the alternations between theory and practice. In consequence, there is a massive investment along the edge of the rigid borders between the product and the process and reflection and exercise, seeing as this has already become a central characteristic in FID operations. The 2003 edition of FID – Território Minas Telemig Celular (TMTC) presents works that gravitate around these orientations, contributing once again to the design of an investigative constellation that is rich, fertile and productive. Whether one learns about the education of attention and knowledge of movement or about the diffusing nature of the body, about the paradoxes of movement in the megalopolis or about the power of limits, the many processes participate in a collective effort of production and dissemination of knowledge, angled rather precisely by the suggestion of the Chilean biologist Humberto Maturana; that to know is to do and to do is to know. Such a suggestion is much more than a simple vote in favor of a concept of knowledge as something that participates, always and inevitably, in the corporal dynamic of social agents: it deals with something that is also potent from a political point of view. It is an invitation to think of a world in which knowledge is distributed in a different way, passing through more cooperative and less hierarchical regimes. The history of FID and its participation in cultural life can be seen as the sediment of gestures that attempt to contribute to the creation of a world marked by a different orientation: a more generous, pluralist and equal world.

[Luciana + Margô] + [Alexsander + Aretha + Geozelli + Ilma + Ludmilla + Rogéria + Verônica]
Interface

Scholar Bonnie Bainbridge Cohen compiled over the years a series of resources directed at the education of attention: instead of abstractly disputing anatomic structures and their importance in the construction of movement, Cohen’s work proposes that we both focus on and recognize in our own experience the presence of these structure. Such a change in perspective propitiates the emergence of new standards of salience in the conceptions of origin, the maintenance and expressiveness of movement, in the vocabulary that we use to describe the creative process of choreographies and performances and even in the way that we articulate the spheres of reason, emotion and corporality.

Giving continuity to an investigative work that, in the space of productions associated with FID, already resulted in Experimento 1 (TMTC-2001) and In Situ (TMTC-2002), Luciana Gontijo and Margô Assis now invest in the dissemination of their research strategy and choreographic creation. Interface consists of some of the results produced by a process of presentation of investigation methodology and choreographic production inspired by the work Bonnie Cohen, performed by a group of young choreographers. Guided by ideas of corporal reasoning and centering, the works are dedicated to expanding the very concept of corporal conscience of each one and to the exploration of the consequences of a focus on the body and space in choreographic production. Investigation, challenge, creative autonomy and attention to the process are key-words for the concept of corporal reasoning expressed in this work, and the coordination of the results in the performance exhibits certain facets of what this perspective can mean for dance creation.

[Vanilton Lakka]
You, a motionless accelerated body

Speed and acceleration are constantly increasing; effective displacements that are always being reduced. Characteristics filled with the contemporary way of life, these traces are incorporated into the work of Vanilton Lakka, whose work presents the concept of the body as a diffusing vector: a conductor of information, and paraphrasing McLuhan, a “message” in itself.

The result of explorations in dance performed in urban public spaces in the Southern Brazilian city of Uberlândia (Belo Horizonte), studies on ethno-scenology and questions about the relationship between the idea of the body in the context of media and the development of a “corporal media”, the work of Lakka consists of an intervention directed at provoking the passer-bys – those fortuitous users of the “non-place” who are interrogated about issues of movement, time, space and displacement. A man walks on a treadmill in front of a computer screen. A body shows itself in a condition of motor perplexity, in a walk that does not produce displacement. Looking at a screen in which there exists the promise of displacement without movement. What is being exhibited here? Around all of these facets of Lakka’s work, the most intense and visible movements are those revolving around issues that the work proposes for all those involved and that follow the very nature of artistic production along the horizon of the cultural industry.

[Márcia Neves]
In Transit

A rather extensive network of contemporary vocabulary is tied to the notion of transit. Traffic, trade, transition, transitory: all are themes of use common in innumerous discursive spaces, indicating notions that are tightly lodged in the ordinary arrangement of expectations in urban life.

In her work, Márcia Neves serves as a translator for this area of meaning, performing a choreography that, upon narrating some of the paradoxes and tensions associated with our relationship with transit in a very specific sense – daily urban itineraries, cars, seatbelts, the sounds, traffic jams, signals, police, cell phones, those in a rush and those rude cut-offs – can be expanded to reach an immense variety of meanings related to transit that we can circumscribe. Through the use of a scenographic apparatus that explicitly describes the immediate reference of the work, Márcia Neves plays with the audience in a registration that constantly oscillates between the literal and the ironic, provoking and sharpening our perception of that which, in an era that is so marked by a rhetoric of praise in terms of movement, is perhaps one of the most shocking aspects in the life of urban citizens; immobility, the effective incapacity of moving to another place.

[Joana Carmo]
Desert

An allusion to the desert can provoke visions of privation and difficulty, as well as the echoes of an environment marked by its hostility toward human presence. However, it can also bring images of oases and palm trees and the eventually inviting exoticism of distant cultures. Viewed through a romantic prism, the image of the desert adds a certain unpredictability and danger to the idea of the mysteries hidden beneath its sands.

In her work entitled Deserto (Desert) Joana Carmo is not satisfied with any of these crystallized expectations. Performed with an attention toward the nexus between the notions of limit and possibility, Carmos’ work constantly diverts the audience away from canonic expectations and invests in the eloquence of detail and in the expressiveness of the minimal. To inhabit the desert is, by rule of natural law, to negotiate with precariousness, with the lasting reminder that available resources are limited and that parsimony is a question of survival. In the explorations and reiterations of the gestured movements, and in the many maneuvers of confluence, dialogue and interference – propitiated on one hand by the contact between corporal reasoning and the precise music of Grivo and on the other hand by the transparency of the tulle that covers the drawings created by the artist herself – Deserto challenges at each moment the expectations of the audience. Negotiations with precariousness, limited resources, the choice of parsimony, the many semiotic and discursive plots that form a part of life’s composition: this is the amplitude explored in Joana Carmo’s Desert. As John Cage said, it is a matter of “observing what there is to see and hear in the theatre within which we are living”.

Antônio Marcos Pereira is a PHD in Linguistic Studies at UFMG, and was artistic coordinator of FID – TMTC 2003.