Salto para o vazio | Leap into the void

ERRATA: Ao contrário do divulgado na nossa newsletter, este texto é de autoria apenas de Fabíola Salles.

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Este texto foi originalmente publicado no site do GRiD-CCSP (Grupo de Reflexão Interdisciplinar do Centro Cultural São Paulo).

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Reflexão a partir do Encontro de Improvisação das Oficinas de Dança no Centro Cutural São Paulo (CCSP) do dia 5 de dezembro, de dados urgentes de nosso cotidiano e outras divagações.

A imagem ao lado é de  Leap into the Void, de Yves Klein, fotomontagem de 1960.

Resolvi nesta noite, domingo, não esperar. Não esperar a segunda-feira. (E que estas palavras sirvam para visualizar um sentido não linear). Cada um desta comunidade suspensa, de um ciclo de amigos, conhecidos, desconhecidos e parentes, ciclo de pessoas que evoco diante da vela para cuidar… Cada um agora provavelmente em sua casa e dentro de sua casa: pensamentos, projetos, afazeres para a próxima segunda, terça, quarta…  Os dias organizados com a lua. Nós, como ela, presos à terra pela gravidade. Eu, presa a você. Cumprir papeis? Desejo.

Como está você?

Estamos nós aqui: na cidade das longas distâncias, do anonimato e da descrença. Da fragilidade, do medo. Também, e principalmente, dos encontros, da possibilidade de se viver junto, bem junto, num mesmo território: especular. Ir na churrascaria e dançar um samba para seguir com sorriso no rosto. As máscaras. Acabo de saber (e esta frase foi a única escrita na segunda-feira) que no sábado, o dramaturgo Mario Bortolotto  foi baleado num bar de São Paulo, no mesmo dia em que presenciei um encontro bastante rico de dança e improvisação no CCSP. Esquizofrenia. Dificuldade de compreensão diante dos olhos.

As sutilezas das superfícies dos campos: possíveis entradas. Os espaços públicos e os privados. Carinho e arrombamento. Momento no qual se questiona na prática hierarquias e fronteiras. Vontades sem teto, sem chão e abertura escancarada de intimidades. Não temos uma revolução, uma guerra, e temos todas as revoluções e guerras em diferentes escalas. Temos o olhar de cima, o panóptico, Google Earth e também as páginas amarelas. Temos os mapas detalhados e o volume experienciado no cinema 3d. E se me permitir modelar uma argila, ainda existe este tempo artesanal que o corpo é capaz de acompanhar/sentir, alargado. Anestesias, sinestesias.

Entre a velocidade do pensamento e dos sentidos deve existir um lugar.

O tempo que a bala demorou para tocar o alvo.

Onde cabe a intuição?

Tateando minha casa se a luz acabar, moro numa superfície rugosa, empoeirada, no domingo principalmente. Respiro gostando do gosto do ar. Lembro de uma notícia que poderia estar nos jornais: hoje. Dia 6 de dezembro de 2009. Poucas nuances são perceptíveis na medida em que se deseja o vislumbre. Critica-se o espetáculo mas deseja-se a revelação, o aparecimento, o tornar visível. Saber mais a vida. Me lembrei da bolacha de maisena. Deve ter algo a ver com isso.

As imagens da infância geralmente calam por afirmarem o que chamamos de ingênuo. O nosso tempo sobre a terra. A infantilidade do artista hoje.

Me disponho, sobre a mesa, numa sala desconhecida, depois de ter ingerido alguma substância, ou não. Eu, mais 4 mulheres deitadas. Na verdade eu não estava deitada, estava nua diante de um espelho. Era um espelho que me deformava na horizontal como se nadasse em ondas psicológicas. As superfícies das peles.

Silueta Works, Ana Mendieta, 1974 a 1981

Silueta Works, Ana Mendieta, 1974 a 1981

Naquele lugar feito de papel, o sangue de alguém escorria e formava um desenho. Sobressalto. Debaixo da cama, encontrei um sobrenome. Em cima de você estava eu em ondas. Crepúsculo das histórias pequenas. Amantes: aqueles que devem bater o ponto todos os dias para alimentar seus filhos mais tarde. O braço de uma mulher que manipula objetos estranhos, infectado por uma bactéria. Os postos de saúde e os prontos socorros. Fumo e galinha d’angola. Algo para se apoiar que não a arquitetura nem o romance.

Cadafalso.

Acabo de inventar uma palavra que não se escreve. E se, quem sabe, inventássemos novas palavras para que as imagens também pudessem mudar dentro de nós, para que pudéssemos nos livrar dos símbolos rígidos, dos hábitos, para acabar com os pré-conceitos, para desarticular a ideia de que o símbolo se forma primeiramente por similaridade. O que é similar? Resposta: o que conseguimos identificar a olho nu como sendo “parecido”. Que fragilidade e prepotência do  ser humano. Incapaz de perceber o invisível. Se falássemos menos…? Esperança e igualdade social.

Licença poética. Pedimos licença para ocupar um espaço (in)comum, o papel escrito, a tela no caso, para que aí se (des)organizem palavras que devem comunicar algo ao próximo. Ou, revelar diante dos olhos de quem escreve, algo entre o digitar das letras e os pensamentos correntes. O corpo do discurso pode ter vida própria.

Atualmente fala-se diversas vezes em criação de linguagem no ambiente das artes. Podemos abordar esta questão a partir de diversos prismas, passando pelo estudo da linguística, da semiótica, da filosofia… Mas gostaria de colocar esta discussão do ponto de uma pessoa (no caso, eu mesma).

Ricardo Carioba, artista paulistano, em debate sobre o projeto Zona de Risco, que aconteceu no CCSP no segundo semestre de 2009, disse que pensava não em pesquisa de linguagem mas em pesquisa artística e que esta, para ele, se dá no momento em que o artista se coloca na dúvida entre o real e o ficcional. Talvez no âmbito das artes isso caiba com o devido cuidado e irreverência, mas na vida o perigo é que este limiar entre o real e o ficcional se perca em questões graves, como a violência nas cidades e tantas outras discussões que poderíamos levantar aqui. Percebo hoje, em alguns casos, um estado de apatia de pessoas diante de questões bastante fundamentais, vitais do cotidiano. Como se as mesmas estivessem no sofá assistindo a uma novela: o real e o ficcional banalizados mutuamente.

Muitas vezes, na atualidade, obras de arte, não deixam claro seu intento: tratam de processos compartilhados, bastante abertos; ou se bastam em afirmar o momento no qual discursam. Neste ambiente difícil de incorporar a “dança”, não se sabe onde dançar, ou qual ritmo seguir, ficamos suspensos, pendurados como no momento impresso do salto/hipótese de Klein. Ficcional, real; real, ficcional. Ficcional, real; real, ficcional. Ficcional, real; real, ficcional. Ficcional, real; real, ficcional. Como se entrássemos em estado de congelamento: impossibilidade para a percepção/conhecimento. Não, a realidade não é bidimensional. Precisamos sair do estado de suspensão e nos tornar garimpeiros de sinais que gerem sentido. Será que foi esquecida a síntese? Será que poesia e síntese já não caminham mais juntas?

Agnaldo Farias, no livro “A Arte Brasileira Hoje”, diz que podemos admitir como arte contemporânea toda obra que gere algum sentido hoje, podendo esta ter qualquer formato, suporte ou data.

Reflexão e pedido para que fiquemos à flor da pele. Atenção.

Gosto de acompanhar os artistas em suas vidas, não em seus trabalhos. Quero dizer: gosto de acompanhar a vida de um trabalho que acompanha a presença de um corpo que o faz. A extensão de nossas mãos no mundo, nossos gestos talvez sejam nossos “símbolos totais”, nossa linguagem, complexa e hiperdisciplinar, transdisciplinar, multidisciplinar, estilhaçada.

Estilhaçada, pois, as disciplinas evocam para mim a ciência e talvez este lugar onde as fronteiras se perdem seja o lugar da intensidade e não da classificação, da análise. E que a intensidade não seja compreendida como uma luz única que cega, mas como uma massa complexa de relações, sentimentos, heranças, projeções e ações cotidianas. Quando uma roda se forma, como a do sábado de tarde, no CCSP, com artistas e as mais diferentes pessoas para dançarem juntas, me parece gerar sentido. Sim, acho que era arte. Um sentido criativo, de vida.

Já uma bala atingir o corpo de alguém… é intensidade que ofusca.

Imagens contemporâneas de um sábado: a bala e a roda.

Isso me faz pensar que precisamos trabalhar muito. Todos.

Fabíola Salles Mariano é formada nas faculdades de Comunicação das Artes do Corpo pela PUC-SP e Artes Plásticas pela ECA-USP. É artista de circo desde 1998, tendo participado de espetáculos e festivais. Atualmente, faz parte de um grupo de pesquisa de butoh, além de desenvolver textos e outras criações do/no campo das artes performativas.

This text was originally published at the website of GRiD-CCSP (“São Paulo Cultural Center Interdisciplinary Reflection Group”)

Image on the left is Yves Klein’s Leap into the Void, a photomontage from 1960.

Sunday, tonight I decided I can´t wait. Not wait until Monday. (And expect that these words help visualize a non-linear meaning). Each one in this suspended community, in a circle of friends, acquaintances, strangers and relatives, a cycle of people I summon before the candle to care for… each one is probably at their home and inside their home: thoughts, projects, chores, for next Tuesday, Wednesday… the days organized like the moon. We, along with it, stuck to earth through gravity. Me, stuck to you. Fulfilling roles? Desire.

How are you?

Here we are: in the city of long distances, of anonymity and disbelief. Of fragility, of fear. Also, and mainly, of meetings, of the possibility of living together, closely, in the same territory: speculate. Going to a barbecue restaurant and dancing samba to keep a smile on our faces. The masks. I just learned (and this sentence was the only one written on Monday) that on Saturday, playwriter Mario Bortolotto was shot in a bar in São Paulo, on the same day in which I witnessed a very rich dance and improvisation meeting at CCSP. Schizophrenia. Difficulty understanding what is in front of our eyes.

The subtleties of the fields’ surface: possible entrances. The public spaces and the private ones. Tenderness and forced entry. The moment when hierarchies and frontiers in practice are questioned. Homeless wills, without ground and wide opening of intimacies. We don´t have a revolution, a war, and we have all revolutions and wars in different scales. We have a perspective from above, the panoptic, Google Earth and also the yellow pages. We have detailed maps and the volume experienced with 3D cinema. And if I allow myself to model clay, there is still this handicraft time the body is able to follow/feel, enlarged. Anesthesia, synesthesias.

Between the speed of thought and feeling there must be a place.

The time the bullet took to reach the target.

Where does intuition fit?

Groping around my house, if the lights are out, I live in a wrinkled surface, dusty, specially on Sunday. I breathe enjoying the taste of the air. I remember news that could be in the papers: today. December 6, 2009. Few hues are noticeable when one desires a glimpse. The show is criticized but revelation, appearances, becoming visible is desired. Knowing more about life. I remembered cornstarch crackers. It must have something to do with this.

Childhood images are usually silenced for stating what we call naive. Our time on earth. The childishness of the artist today.

I place myself, on a table, in an unknown room, after ingesting some substance, or not. Me and 4 women lying down. Actually I wasn´t lying down, I was naked in front of a mirror. It was a mirror that distorted me as if I was swimming in psychological waves. The surfaces of skin.

Silueta Works, Ana Mendieta, 1974 a 1981

Silueta Works, Ana Mendieta, 1974 a 1981

In that place made of paper, someone’s blood was running and it created a drawing. Startle. Under the bed I found a last name. On top of you I was in waves. Twilights of little stories. Lovers: those who must work everyday to feed their kids later. Health centers and emergency rooms. The arm of a woman who manipulates strange objects, infected by bacteria. Smoke and helmeted guineafowl. Something to lean on that is neither architecture nor romance.

Scaffold

I just invented a word that can´t be written. And what if, who knows, we invented new words so that the images could also change inside us, so that we could rid ourselves from rigid symbols, from habits, to put an end to prejudices, to disarticulate the idea that the symbol is formed primarily through similarity. What is similar? Answer: what we can identify with naked eye as being “alike”. How frail and arrogant of the human being.

Poetic license. We ask permission to occupy an (un)common space, the written paper, in this case, the screen, so that words are (dis)organized to communicate something to our fellow men. Or, to reveal before the eyes of the one writing, something between typing letters and current thoughts. The body of discourse can take a life of its own.

Currently, many times people talk about language creation in the arts environment. We can approach this issue from many different prisms through the study of linguistics, semiotics, philosophy… But I would like to take this debate from one person’s point of view (in this case, myself).

Ricardo Carioba, artists from São Paulo, in a debate about Zona de Risco (“Risk Zone”) that took place in CCSP in the second semester of this year, said he thought not about language research, but rather about artistic research and for that, for him, takes place at the moment when the artist puts himself in doubt about real and fictional. Maybe in the arts realm this fits with the due care and irreverence, but in life the danger is that the limit between real and fictional is lost in serious issues, like violence in the cities and so many other debates that could be raised here. Today I see, in many cases, a state of apathy in people before some very fundamental issues, vital to every day life. As if they were sitting on the couch watching a soap-opera: real and fictional are mutually trivialized.

Often, in current days, art works do not make their intentions clear: they deal with shared processes, very open; or they suffice by asserting the moment in which they speak. In this environment difficult to incorporate “dance” no one knows where to dance, which rhythm to follow, we remain suspended, hanging like in the moment of Klein’s leap/hypothesis. Fictional, real; real, fictional. Fictional, real; real, fictional. Fictional, real; real, fictional. Fictional, real; real, fictional. As if we were entering a frozen state: impossibility of perception/knowledge. No, reality is not two-dimensional. We must get out of the suspension state and become prospectors of signs that can generate meaning. Was synthesis forgotten? Are poetry and synthesis no longer walking together?

In the book A Arte Brasileira Hoje (“Brazilian Art Today”), Agnaldo Farias says we must accept as contemporary art every piece that generates meaning today and it could have any format, material or date.

Reflection and request to remain skin deep. Attention.

I like to follow artists in their lives, not in their work. I mean: I like to follow the life of a work that follows the presence of the body who makes it. The extension of our hands in the world, our gestures are maybe our “total symbols”, our language complex and hiperdisclipinary, transdisciplinary, multidisciplinary, shattered.

Shattered, for disciplines for me evoke science and maybe this place where frontiers are lost is the place of intensity and not of classification, analysis. And that intensity is not understood as a single light that blinds, but as a complex mass of relationships, feelings, heritages, projections and trivial actions. When a circle is created, like that on a Saturday afternoon, at CCSP, with artists and the most different people are dancing together, its seems to generate meaning. Yes, I think it was art. A creative, life, meaning.

But a bullet hitting someone’s body… it´s intensity that blinds.

Contemporary images of a Saturday: the bullet and the circle.

This makes me think we have to work a lot. All of us.