Saúde e corpo em movimento

Para ler a Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, UFRJ, clique aqui.

O presente artigo pretende trazer uma breve análise acerca da dança e da consciência do movimento na saúde. Escrevo a partir da minha pesquisa de dissertação de mestrado na área da Saúde Coletiva que teve como objetivo contribuir para uma formalização prático-teórica do método Angel Vianna de Conscientização do Movimento na sua aplicação terapêutica, identificando e definindo os princípios filosóficos e práticos que o orientam no processo saúde-doença. A Conscientização do Movimento, para aqueles que não a conhecem, vem sendo criada e desenvolvida pela bailarina e educadora Angel Vianna há algumas décadas aqui no Brasil, como uma proposta de trabalho corporal que entrelaça a dança com a educação somática ou a consciência corporal. Com isso, Angel Vianna abre espaço para uma dança capaz de incluir as singularidades dos corpos a partir de um contato mais profundo com o corpo e suas sensações, da experimentação e pesquisa de movimento e de jogos corporais que intercalam momentos mais introspectivos com outros mais expansivos.

Essa propriedade do método Angel Vianna de expandir a dança para todos os corpos acaba prolongando sua aplicação para além dos campos da arte e educação, sendo utilizado também com fins terapêuticos (saúde mental, reabilitação neuromotora, controle de doenças crônicas, promoção da saúde etc.). Ao propor contribuir para uma formalização teórica e prática do método Angel Vianna de Conscientização do Movimento, não proponho um enquadramento dele, nem tampouco uma cristalização da sua prática. A primazia continua sendo da experiência, mesmo porque sem passar por ela a compreensão deste trabalho corporal torna-se um pouco mais limitada, visto que seu entendimento passa também pela carne.

Entretanto, é importante que se possa instrumentalizá-lo para que conhecimento e prática tenham seu alcance de transmissão ampliado para além dos núcleos de atuação direta da Escola, Faculdade e Instituto Angel Vianna. Reconhecer e formalizar a existência do método como instrumento terapêutico passa também por uma questão ética e política, se configurando como uma importante contribuição para o campo da Saúde Coletiva. Por se tratar de uma terapêutica com eficácia reconhecida por sua própria práxis (e de muito baixo custo na sua aplicação), a dimensão ética se dá no fato de ampliar a área de atuação e transmissão desse saber, dizendo como funciona e como pode ser replicada para um maior número de pessoas. A contribuição política se faz quando essa terapêutica propõe a humanização do processo saúde-doença assim como as relações dos diversos atores incluídos nele (gestores, profissionais e usuários) tal como propõe o HumanizaSUS, uma política (e não um “programa”) nacional que preconiza que todos os âmbitos da Saúde no Brasil sejam atravessados pela humanização dos serviços. Além de se configurar como uma posição política em si mesma, pois quando o método Angel Vianna se constitui como mais uma prática alternativa e/ou complementar de saúde, implementadas e apoiadas cada vez mais pela rede pública, essa terapêutica implica uma contraposição ao modelo biomédico vigente.

A fim de alcançar o objetivo da pesquisa, parto da minha experiência profissional e utilizo o método filosófico-conceitual (MARTINS, 2004), no intuito de desnaturalizar os pares conceituais corpo-mente, saúde-doença, propondo um novo uso a eles. Para compreender melhor como se dá a constituição do método Angel Vianna de Conscientização do Movimento enquanto uma prática corporal de alcances terapêuticos foi preciso contextualizar inicialmente sua dimensão artística, que está na sua origem e se mantém presente mesmo na clínica, quando Angel propõe uma nova dança capaz de se abrir para as sensações do corpo (TEIXEIRA, 1998). Em seguida foi problematizado o lugar do movimento no método Angel Vianna de Conscientização do Movimento, pois o movimento pode ser considerado como uma de suas engrenagens fundamentais para captar as sensações do corpo quando a técnica da dança é entrelaçada com a educação somática e as terapias corporais. Uma leitura mais cuidadosa sobre técnicas como Eutonia (ALEXANDER, 1983; GAYNZA, 1997), Tec. Alexander (GELB, 2000) e Tec. Feldenkrais (FELDENKRAIS, 1977, 1994) permitiu delinear um maior entendimento sobre a Conscientização do Movimento enquanto instrumento terapêutico nos campos da promoção da saúde, reeducação do movimento e reabilitação motora.

A partir dessa análise inicial, buscou-se compreender a relação entre movimento, corpo e consciência no trabalho de conscientização corporal. Os conceitos de corpo sem órgãos (ARTAUD, 1947; DELEUZE e GUATTARI, 2004), corpo paradoxal e consciência-corpo (GIL, 2002, 2004a, 2004b) potencializam a compreensão sobre os mecanismos de atuação da Conscientização do Movimento na imanência da experiência, balizados pelas noções de prudência (DELEUZE e GUATTARI, 2004) e cuidado de si (FOUCAULT, 1981-1982), no sentido em que pela prática da Conscientização do Movimento o indivíduo pode recriar a si mesmo a partir da relação que estabelece, via corpo, consigo e com o mundo, numa dimensão ética e estética da vida. Ou seja, ao situar o lugar do corpo nas experimentações de si, quando há em vista ganhos terapêuticos, é preciso recorrer a certas doses de prudência que possam potencializar ainda mais o corpo na recriação de si mesmo.

Dando continuidade a essas considerações, a discussão se encaminha para campo da Saúde, propriamente dito. Os pensamentos de Canguilhem (1943), Winnicott (1945, 1949, 1975) sobre normatividade e criatividade, respectivamente, formam um fio condutor para a problematização das noções de mente-corpo, saúde-doença, a fim de se pensar e fazer saúde a partir de uma visão mais ampliada e positiva do que definirá o que é ser saudável numa dimensão sócio-somato-psíquica. Uma concepção afirmativa de saúde apoiada, como sugere Martins (2004), sobre as noções de normatividade (Canguilhem) e criatividade (Winnicott) contribui para compreender filosófico-conceitualmente porque o método Angel Vianna de Conscientização do Movimento pôde se legitimar durante todo esse tempo como um potente instrumento terapêutico capaz de vitalizar a experiência de viver.

Finalizando o percurso da dissertação, buscou-se identificar e delimitar contornos para uma organização e um entendimento sobre o desenvolvimento do método Angel Vianna no processo terapêutico. O método Angel Vianna de Conscientização do Movimento foi reconhecido como uma prática pedagógica-terapêutica que através da vivência corporal permite ao indivíduo experimentar um corpo paradoxal que se abre a uma consciência-corpo. No campo da Saúde, essa propriedade do método contribui para a organização somatopsíquica do indivíduo na direção de uma concepção ampliada do processo saúde-doença, onde a saúde pode ser avaliada pela plasticidade normativa e a capacidade criativa do indivíduo frente à vida. Ao ser proposta uma organização metodológica para a aplicação terapêutica da Conscientização do Movimento foram reconhecidos três estágios que constituem o processo de recuperação da espontaneidade: Processo de Sensibilização, Processo de Expressão e Processo Pedagógico-Terapêutico. Foi possível concluir, ao final da pesquisa, que o método Angel Vianna de Conscientização do Movimento pode ser formalizado enquanto uma prática complementar de saúde que atua na interface entre arte e clínica, além de contribuir para o campo da Saúde Coletiva quando possibilita uma relação humanizada e acolhedora entre os diversos atores envolvidos no processo saúde-doença, preconizada pelo Ministério da Saúde através da Política Nacional de Humanização (PNH-HumanizaSUS) e da Política Nacional de Medicina Natural e Práticas Complementares (PMNC).

Dar forma à vivência com o método Angel Vianna não foi tarefa fácil. Muitos foram os descaminhos no exercício de tentar encontrar num mesmo ponto de imanência a inteligibilidade do pensamento com a intensidade do que estava encarnado em movimentos e sensações. Considero que essa pesquisa se constitui como um questionamento inicial sobre possíveis modos de se formalizar o conhecimento sobre o método Angel Vianna, que decerto não se encerra com o fim do mestrado, pois assim como a prática, o pensar também deve ser um exercício contínuo que se estende por toda a vida em desdobramentos infinitos. Propor a Conscientização do Movimento como um instrumento terapêutico formal com contornos metodológicos é possibilitar também uma visão crítica acerca desse procedimento, onde será possível problematizar, atualizar e criar conceitos que potencializem ainda mais sua aplicação.

Referências bibliográficas

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Catarina Resende é psicóloga e bailarina, formada em Recuperação Motora e Terapia através da Dança pela Faculdade Angel Vianna, mestre em Saúde Coletiva pelo IESC/UFRJ, trabalha com o método Angel Vianna de Conscientização do Movimento.

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