Sobre fundamentalismos teóricos

Desmatamento
“Um dia, meu filho”, disse o velho índio indicando o topo das árvores como quem afasta um véu, “tudo isso será céu”.
Luiz Fernando Veríssimo, Cultura/O Estado de S, Paulo, 08/10/2006

Helena Katz

Você pode estudar dança com diferentes abordagens teóricas, tal qual sucede em qualquer outra área de conhecimento. Você pode explicar o começo do mundo com a hipótese do Big Bang ou com a hipótese do Universo Inflacionário. Nos dois casos, seja no da dança ou no da cosmologia, a questão se repete: é necessário dispor de informação tanto para ser capaz de escolher entre abordagens teóricas distintas quanto para ser capaz de identificar a filiação das falas e dos atos que são praticados.

Ocorre que, na área da dança, a informação ainda depende de um acesso e de uma distribuição não tratados como itens prioritários nas políticas públicas em curso no nosso país. Como fazer, então, para estudar dança por aqui? Ora, do mesmo modo que se lida com as outras dificuldades típicas de uma sociedade injusta: sendo criativo, inventando maneiras.

Mas há dois pontos cruciais, que precisam ser acordados antes de qualquer conversas sobre dança. Seja lá qual for o entendimento escolhido, lembre-se de NUNCA:
1) reduzir a dança ao efeito que ela produz em nós;
2) ignorar que toda escolha (incluindo a de não tratar a dança com a propriedade que qualquer objeto de estudo pede) tem conseqüências políticas, lógicas, éticas e estéticas.
O gostoso do ato de estudar é logo descobrir que produção de conhecimento não opera na mesma freqüência de sentimento religioso, e que sentimento religioso não é sinônimo de religião. Sentimento religioso pode ser desenvolvido com qualquer objeto do mundo e em qualquer campo de conhecimento, inclusive no científico. A caracterísitca do sentimento religioso é ser produzido pela fé, pela crença, e não por argumentos desenvolvidos a partir de hipóteses testáveis. É o sentimento religioso que faz alguém acreditar no professor que passa adiante seus conhecimentos apoiado somente no seu próprio discurso.

Estuda-se para descobrir como fazer perguntas adequadas. A autonomia que todo processo de educação deve despertar depende da aquisição dessa habilidade preciosa: saber perguntar. Quem estiver buscando respostas certas, deve procurar a religião. Lá é o lugar da verdade, pois na ciência, ao contrário do que o leigo supõe, mora a dúvida. Sem duvidar, ciência vira religião (o que, às vezes, infelizmente, também ocorre).

Como já deve ter ficado claro, o que se nomeia de ciência aqui nada tem a ver com aquela divisão de mundo onde fala-se da ciência como um conhecimento objetivo e da arte como algo ligado ao subjetivo. Aqui se nomeia por ciência todos os diferentes tipos de conhecimento nascidos de hipóteses testáveis. Despertamos, levantamos uma hipótese de como será o dia e escolhemos o que vestir. Nessa atitude trivial e cotidiana estamos usando conhecimentos indutivos acumulados (através da experiência) para uma decisão, ou seja, estamos praticando ciência.

Deppois de entender ciência fora da moldura da verdade objetiva, deve-se evitar tratar as suas teorias como se fossem programas de partidos políticos. Idéias não devem despertar devoção militante. A devoção militante constitui um dos tipos mais freqüentes de sentimento religioso, e sentimento religioso deságua no sempre assustador fundamentalismo. “Os fundamentalistas cristãos rejeitam as descobertas da biologia e da física sobre as origens da vida e afirmam que o Livro do Gênesis é cientificamente exato em todos os detalhes” (Armstrong, 2001:9).
O fundamentalismo, esse sub-produto da modernidade do século 20, espalha-se onde existir sentimento religioso, e prima pela surdez à voz do outro. Segundo Armstrong, é no mito que o fundamentalismo encontra as suas respostas – o que nos dificulta o entendimento das suas opções.
Fundamentalismo teórico e sentimento religioso andam de mãos dadas e é mais difícil do que parece escapar deles. Precisamos uns dos outros, em uma construção coletiva de vozes, para conseguir conviver na diversidade. Nossas escolhas teóricas não podem operar como trincheiras. Devem, ao contrário, funcionar como pontes, caminhos conceituais por onde atavessamos em direção ao encontro do outro.

À medida que a presença da dança se expande nos cursos de graduação e também nos de pós-graduação, as distintas escolhas teóricas vão segmentando a área. Todos nós, os envolvidos nessa situação, temos responsabilidade em manter sempre desbloqueada de qualquer tipo de preconceito a capilaridade dos canais de contato e troca. Sobretudo daqueles entraves que nascem da ignorância de parte a parte. E isso, só se consegue no coletivo.