Sem mim / Foto: José Luiz Pederneiras

Sobre ‘Sem mim’, do Grupo Corpo

Depois de passar por Minas Gerais e São Paulo, o Grupo Corpo mostra no Rio de Janeiro sua nova produção: Sem mim. A trilha sonora é assinada pelo músico e compositor galego Carlos Núñez em parceria com José Miguel Wisnik a partir das canções de Martín Codax, autor do único conjunto de peças do cancioneiro profano medieval galego-portugês que chegou aos dias de hoje com as respectivas partituras. A coreografia, de Rodrigo Pederneiras, é inspirada no mar de Vigo, na Espanha.

A estreia carioca é esta noite (25/08), no Theatro Municipal (Praça Marechal Floriano s/nº, Centro. Informações: 21 2332-9191), às 20h. A temporada vai até segunda-feira (29/08), nos seguintes horários: quinta e sexta-feira, às 20h; sábado, às 21h; domingo, às 17h; e segunda-feira, às 20h.

Confira a crítica escrita por Arthur Moreau, que assistiu ao espetáculo durante sua temporada em São Paulo.

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A excelência do Corpo continua na segunda obra depois de Breu

por Arthur Moreau

O ano de 2011 é ‘ano sim’, ou seja, ano em que o Grupo Corpo estreia uma nova coreografia – a 35º coreografia da companhia. Mas é a partir de Breu, de 2007, com música de Lenine, que o coreógrafo Rodrigo Pederneiras instaura saltos criativos entre uma peça e a seguinte. Sua audácia e coragem são mais fortes do Ônqoto (2005) para Breu, deste para Ímã (2001) e desse último para Sem mim (2011) do que as diferenças mostradas nas obras até Ônqoto. O desligamento de algumas opções de tipos de movimento, a menor quantidade de registro dos passos básicos, a expansão de uma ideia de estética de dança e um pouco mais de jogo de dramaturgia coreográfica talvez sejam as características em comum desse novo processo de evolução da mesma cultura. Pederneiras se aproximou do risco de abalar os paradigmas íntimos e paradoxalmente preciosos de ser artista experiente. Sua emancipação pode ser explicada pela especialização que os corpos do grupo e seu coreógrafo adquiriram com a repetição da vivência do mesmo modo de criar coreografias.

Sem mim tem duração de 47 minutos. Sua dramaturgia foi inspirada pela trilha original que José Miguel Wisnik e Carlos Núñez compuseram a partir de sete cantigas medievais do poeta galego-português Martín Codax. Há participações vocais de Milton Nascimento, Chico Buarque, Mônica Salmaso, Ná Ozzetti, Rita Ribeiro e Jussara Silveira. Cenário de Paulo Pederneiras e figurino de Freusa Zechmeister. Todos eles, mais um excelente corpo de bailarinos criaram uma obra magnífica. O título é uma referência às letras de cantiga de amor em que são baseadas as músicas, cujo eu-lírico feminino se lamenta da ausência do amado.

A companhia fez o programa de apresentação tendo a coreografia O Corpo (com música de Arnaldo Antunes), de 2000, como abertura e a estreia de Sem mim em seguida. Mesmo com ambas bem executadas, o contraste é gigante. O Corpo é uma obra medíocre. Sua quantidade de variedade de movimentos não é grande; os passos básicos se repetem muito; muitas linhas coreográficas retas e paralelas; a iluminação é previsível; e o figurino não traz nenhuma diferença na comunicação. A música é dicotômica, variando claramente entre trechos animados e outros mais ralentados. Há muitos momentos de redundância.

Todavia, Sem mim é um acontecimento de arrebatar. As músicas foram reconstruções de canções de amigos do século XIII, que conferiram estatuto de enunciação à mulher. Foram orquestrados com viola caipira e percussão, mesclando ritmos galegos, o africano lundu e Bach. Foram construídas a partir de um certo conceito de noção de natureza primitiva a qual, talvez, não podemos viver sem, ligado a um entendimento generalista da Idade Média. Mesmo dentro desse tema elas possuem muitas expressões (naturezas?) diferentes entre si. Muitas vezes, as vozes dos intérpretes manifestavam mais sonorização lírica, aproximando os sentidos das palavras ditas ao assunto dela, do que como conjunto simbólico – esse ponto, então, em comum aO Corpo. As complexas variações sonoras ao se somarem às variações coreográficas resultavam em multiplicações elegantíssimas de imagens. Os bailarinos se organizavam no palco em linhas tortas ou mesmo sem linha – quase uma quebra de paradigma coreográfica de Pederneiras. Na mesma música havia pas de deux e quase todos em cena e movimentos rápidos e lentos. Enquanto uns faziam um movimento andando para a direita, outros o faziam espelhado andando para esquerda. É quase como se fosse uma dinâmica de coralidade, que é a disposição particular das dramaturgias de cada corpo de modo que não há destaque nem ao diálogo, nem ao monólogo. Essa pluralidade contorna os princípios do dialogismo, embora aqui a dança tenha reciprocidade e fluidez dos encadeamentos, em benefício de uma retórica da dispersão, mas os diferentes cantos se respondem musicalmente numa sequência elaborada, permeável à complementações não-especializadas de signos.

Mesmo nas análises, a obra é interessantíssima de se reparar. Por exemplo, em um solo onde a dançarina altera, caprichosamente, movimentos rápidos e lentos ao mesmo tempo em que outra dançarina se move de modo semelhante ao fundo já é uma combinação deleitosa. Em tantos passos, as muitas vértebras de tantas colunas fazem ondas inúmeras vezes. Possivelmente uma alusão ao mar que leva o amado para locais longínquos feitos com a mesma água dos choros das amadas que estão a dançar e a serem cobertas pela paisagem de Sem mim.

Essa metáfora também se deve ao cenário. Por momentos, ele parece ser uma benção da natureza à dança que a homenageia. Por outros, parece uma placenta que altera sutilmente a visão e a luz para as quais são feitos os passos e giros. Os figurinos da Zechmeister tatuam os corpos com cores quentes enquanto as cores da iluminação predominam no frio. Os desenhos se desdobram nos corpos como se fossem ornamentações ritualísticas de tempos míticos. Uma simbiose entre a cultura corporificada e os fenômenos que afetam esses mesmos corpos. As surpresas e nuances brotam aos montes.

Compor uma miscelânea de passos é fácil. Belo e caro é fazer isso de modo que suscite uma organização que deseja evoluir e que atraia e estimule os sentidos. Mais ainda é sobrepor músicas a esses passos de modo que isso produza algo muito mais interessante do que a experiência de assistir/ouvir separadamente. Sem mim é uma dança inteligentíssima e modesta. Promove uma junção de música e visual, cujas associações localizam-se num campo muito raro. Acompanhá-la força a atenção da percepção e a gratifica simultaneamente. É o fruto que uma longa (longa mesmo, de muitos e muitos anos) permanência de um coreógrafo residente em uma mesma companhia e de patrocínios polpudos que a companhia consegue manter de modo predominante nos últimos vinte anos. O artista-artífice costuma deixar grandes legados quando tem condições para tanto. Principalmente por isso o Corpo é o grupo de dança moderna mais interessante do Brasil.

Arthur Moreau é bacharel em Comunicação das Artes do Corpo (PUC-SP) e estudante de Direção, na SP Escola de Teatro.

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