Sotaque pernambucano

Talvez seja um “lugar comum” falar de diversidade cultural como uma marca da contemporaneidade. Mas isto não nos isenta de constatar, através da observação de recorrentes exemplos práticos, que a produção de dança pernambucana tem esta “pluralidade” como característica, provável indício dos fortes traços populares que a constituem. Mas tratemos logo de tentar desmistificar o “popular”, entendendo-o “polisemântico”, como de fato ele é. Antes de lançar nossos olhos para as obras coreográficas que inspiraram e fundamentaram estes comentários iniciais, é preciso que se fale de uma tendência ao coletivo, “viva” nas artes pernambucanas, de uma maneira geral, e na dança, especificamente. Mesmo que alguns artistas busquem, por motivos óbvios, o solo como formato, o trabalho em grupo gerado nas companhias profissionais de dança continua sendo, na maioria das vezes, o “norte” destes criadores. Sobrevivendo às adversidades, os grupos persistem e esta maneira de se produzir dança ainda é maioria, e talvez assim seja para sempre. O que é bom por um lado e ruim por outro. Sem configurar-se aí uma predileção por solos ou conjuntos, devemos entender que o “trabalhar junto” é uma característica da dança pernambucana sim. Exemplos não nos faltam. Vamos a eles, então.

O mês de março anunciou um panorama promissor, a julgar pelas três temporadas de trabalhos inéditos em cartaz, teremos um 2007 de saltos qualitativos e quantitativos na dança, em Pernambuco. Três produções de companhias, que trabalham ininterruptamente há mais de dez anos, viabilizadas através do apoio do Fundo de Cultura do Estado – Funcultura Pernambuco, e também do prêmio Klauss Vianna da Funarte/Minc. Prova de reconhecimento do valor artístico da dança de Pernambuco? Pode ser, mas um reconhecimento que não significa necessariamente conhecimento. Os criadores continuam se sentindo “alienígenas”, incompreendidos, e os encontros nacionais continuam revelando um preconceito camuflado e gerado pela “ignorância”, no sentido do desconhecido que provoca desconfiança e desprezo. Diante disto, quis puxar o seu olhar para a “efervescente” cena pernambucana da dança. Acredite, um dos problemas dos artistas da dança no Recife hoje é a falta de pauta nos teatros, pois é, falta espaço para tantas produções e seu crescente público.

No palco, as obras consolidam o trabalho dos grupos e vice-versa, apontando para uma maturidade cênica praticamente generalizada. Preto no Branco, novo espetáculo da Cia. de Dança Artefolia, dirigida pela coreógrafa Marília Rameh, coloca o frevo, ou melhor, o “passo” (nome dado à dança do frevo) em pauta, no ano em que se comemora o centenário do icônico ritmo. Conseguindo distanciar-se dos clichês, Rameh traz o popular no seu sentido tradicional (folclórico), mas sem embalagens “turísticas”. As linhas contemporâneas aparecem na movimentação criada pelo coreógrafo Ivaldo Mendonça, que assina a criação junto com Célia Meira e a própria Marília Rameh. O “passo” do frevo é revirado ao avesso e visto por dentro, percorrendo um percurso não-cronológico, mas exibindo uma construção histórica desta movimentação. O vigor e a precisão técnica dos bailarinos, todos com formação popular no método Brasílica [1], ajuda a manter o público em êxtase. Comoção quebrada só em alguns raros momentos, que não conseguiram escapar de um certo didatismo, fazendo um reforço desnecessário à informação já contida e contada nos corpos, na dramaturgia física; como no caso da coreografia com os nomes dos passos de frevo e o momento inicial em que um dos bailarinos coloca literalmente o preto no branco. Nada que comprometa a legitimidade da obra.

Todo idealizado em preto e branco, o espetáculo conta também com intervenções do videomaker Breno César, ora como vídeo-cenário ora como videodança (imagens em preto e branco também), que muito contribuem para a costura da montagem, sem sobrepor-se à coreografia. Preto no Branco, nas cenas iniciais, chega a insinuar uma justaposição de linguagens que felizmente não se concretiza, dando lugar a uma hibridização consistente, aliás, característica de ritmos populares contemporâneos nascidos das cidades, como é o caso do frevo. Soluções inteligentes dos coreógrafos, bem incorporadas nos intérpretes, driblaram por completo à tendência aos estereótipos quando o assunto é dança popular. Para não dizer que não falou das cores, Preto no Branco traz o colorido “típico” do frevo ao final da sua bem sucedida trama, que mais que tudo leva à cena uma verbalização popular com conjugações contemporâneas.

O popular, agora no sentido de popularidade, também serve de pano de fundo para Entre Nós, novo espetáculo da Cia. Vias da Dança, comandada há quinze anos pela diretora Heloísa Duque, que nos últimos anos tem preferido trabalhar com coreógrafos convidados. Mário Nascimento assinou duas dessas coreografias: Cercados (1998) e B.A.Q.U.E (1999). E Henrique Lima (também ex-bailarino da companhia) foi o autor de Só Pó (2005), montagem anterior do Vias da Dança. Entre Nós é um espetáculo “com cara, corpo e alma” de Ivaldo Mendonça (que também coreografou Eureka, em 2003), que assina concepção, direção, coreografia, pesquisa musical e até os figurinos da obra. Daí se tira uma explicação para o espetáculo indicar rapidamente um caminho autobiográfico que deixa transparecer momentos frágeis e certas incoerências na criação.

Tendo o amor como tema e os mega hits da diva Maria Bethânia como trilha, Entre Nós acaba nos levando às nossas próprias memórias afetivas, dispersando a atenção do público, às vezes por excesso de dramatização, outras pela repetição de seqüências, que tornam-se previsíveis. A escolha de uma trilha original ou de músicas “não tão populares” poderia ajudar a manter a obra coreográfica mais perto do equilíbrio. Contudo, a interpretação rigorosa dos bailarinos e o competente e criativo traçado contemporâneo de Ivaldo Mendonça (apesar de não conseguir esconder a predominância de uma linguagem de dança moderna, tentando se esconder… Aliás, porque não assumi-la?), compensam as fragilidades apontadas, resultando em uma pesquisa passível de aprofundamento, mas que promete bons resultados em um breve futuro.

Em Conceição, do Grupo Experimental, companhia fundada e dirigida pela coreógrafa Mônica Lira, que caminha para o aniversário de 14 anos, o popular aparece como contexto, temática e cenário. A inspiração veio da maior festa popular-religiosa do Recife, a festa de Nossa Senhora da Conceição, comemorada todo dia oito (08) de dezembro no morro homônimo, na periferia da capital pernambucana. Por evidências óbvias, o feminino e as questões de gênero aparecem como subtema, permeando quase todas as cenas do espetáculo. Porém, a grande questão motivadora da obra e que nela se oferece ao público é: o que move as pessoas a fazerem sacrifícios em nome da fé?

Conceição fala, “às vezes baixinho, e em quase todos os momentos gritando mesmo”, dos sentimentos de um povo, das sensações vivenciadas com assustadora intensidade nos subúrbios das metrópoles, local em que sagrado e profano vivem em constante ressignificação ou, como disse o professor Amalio Pinheiro, “nas periferias, que são o almoxarifado da criação ” [2]. Neste depósito, lotado de possibilidades criativas, o Experimental descobriu o mote da sua pesquisa e deparou-se com uma realidade que desembocou no sincretismo religioso, também trazido à tona nas seqüências coreográficas e no próprio cenário da obra.

Forte: é o primeiro adjetivo que nos vêm à mente, quando tentamos classificar o novo espetáculo do Grupo Experimental. Talvez reflexo da já referida maturidade cênica, tão nítida nas cenas de Conceição, talvez eco da própria relação do humano com o divino, invariavelmente marcada por momentos de forte emoção. Ainda que a representação simbólica persista em alguns momentos no gestual dos bailarinos coreografados pela própria Mônica Lira, Conceição está longe da obviedade. Muito pelo contrário, a pesquisa coreográfica do Experimental mostra-se consistente, coerente e generosa, no sentido de permitir interpretações variadas, oferecendo vários caminhos, todos eles instigantes, reflexivos e questionadores.

Conceição marca a volta de Mônica Lira e da bailarina Ana Emília Freire (do primeiro elenco do Experimental) aos palcos, ao lado dos estreantes Ramón Milanez e Daniel Silva [3] (estes, vindos realmente de um contexto popular), e das bailarinas (todas atuando há bastante tempo no Grupo) Helijane Rocha, Renata Muniz e Maria Agrelli. Esta mescla de temporalidades e experiências distintas, somada à escolha de uma movimentação que explora as quedas, o equilíbrio / desequilíbrio e o trabalho de chão, deram o tempero ideal para o Experimental acertar na receita da sua Conceição. Além da já referida força, no sentido físico e emocional, outra coisa que não podemos deixar de destacar é a beleza, a plasticidade do espetáculo, realçada pelo cenário de Marcondes Lima, e reforçada no misticismo das cenas finais, em que Nossas Senhoras e Iemanjás se fundem para caber em humanas conceições como uma celebração do que há de divino, sagrado, sensual e misterioso nas mulheres comuns.

É quase desnecessário dizer que em Pernambuco a dança tem forte presença do popular, nos seus vários significados. Perceber as singularidades deste dançar plural não é tarefa fácil, porém é uma necessidade urgente e imprescindível aos que têm a democracia como meta. A produção pernambucana e, neste caso, principalmente, recifense, quer falar a sua língua, utilizando o vocabulário peculiar e singular que gerou, e que, mesmo mantendo os laços com o popular, mostra-se em sua plena contemporaneidade, sejam quais forem as matrizes técnicas utilizadas nas criações coreográficas. Afinal, sendo a arte contemporânea terreno do híbrido, posturas estanques ou falsas liberdades não são bem-vindas.

Fala-se tanto no esfacelamento das barreiras, na licença poética, em liberdade de criação enfim, mas há que transpor também as barreiras do pensamento, que insistem muitas vezes em “clicherizar” a dança, indo de encontro à própria natureza livre e experimental da arte contemporânea. Companhias e artistas da dança de Pernambuco, sem querer perder seu sotaque, trabalham para fazer o discurso dos seus corpos chegar legível aos olhos e sensibilidades nacionais e internacionais. Ainda que sejam muitas as possibilidades de leitura (aliás, isso é próprio da dança e da arte contemporânea). O que importa é que essa voz não seja engolida pela globalização da estética, que tenta homogeneizar até a vanguarda dos movimentos artísticos. As diferenças existem e é preciso conhecê-las, para reconhecer, de fato e de direito, os seus valores.
Notas:

[1] Metodologia de trabalhar com as danças populares, criada e difundida, desde 1977, pelo Balé Popular do Recife.

[2] Trecho da palestra do professor doutor Amalio Pinheiro (PUC-SP) intitulada Identidade X Mestiçagem, que fazia parte da programação da Mostra Rumos Dança, do Itaú Cultural, realizada no dia 02 de março de 2007 no teatro do Itaú Cultural, em São Paulo.

[3] Jovens bailarinos formados pelo Núcleo de Formação em Dança, projeto social que o Grupo Experimental realiza desde 2004, oferecendo formação aos jovens de periferias do Recife. Neste caso, os dois bailarinos são do bairro do Ibura.