Tecnologia na dança: entrevista com Gideon Obarzanek

O coreógrafo Gideon Obarzanek e o criador de software interativo Frieder Weiss conceberam Glow, um trabalho que eles definem como ficção biotecnológica, no qual os movimentos da bailarina geram uma resposta de luzes e gráficos em tempo real por meio de um software que rastreia o movimento. Glow foi apresentado no The Kitchen, em Nova York em fevereiro através de uma co-produção The Kitchen e The Joyce Theater.


Chunky Move foi fundada em 1995 por Obarzanek. A companhia faz turnês pelo mundo e em 2001 apresentou Corrupted no BAM – Next Wave Festival. Em 2005 a companhia recebeu um prêmio Bessie por Coreografia/Criação de destaque em Nova York por Tense Dave. Trabalhando com diversas mídias, incluindo novas tecnologias, o diretor Obarzanek fala a Cristiane Bouger sobre Glow e a cena da dança contemporânea na Austrália.

Muitos dos seus trabalhos parecem desvelar questões existenciais fundindo movimento e novas tecnologias. Como você desenvolveu esse interesse?
Eu me interesso por diferentes formas de ver ou perceber o corpo e, assim, possivelmente ganhar uma nova percepção sobre nós mesmo. Entretanto, mais frequentemente isso resulta em ver algo já conhecido ou familiar de uma nova maneira.
Meu trabalho, na verdade, se divide em duas correntes, uma com novas tecnologias e outra com quase nenhuma tecnologia, ou tecnologias de palco muito velhas e familiares, como cortinas e palcos giratórios. Nessas produções low-tech, eu frequentemente trabalho com uma combinação de atores e dançarinos e os resultados são muito mais teatrais, incorporando, muitas vezes, texto e personagens.

Como você e Frieder Weiss desenvolveram o conceito de Glow? Há quanto tempo vocês têm pesquisado essa possibilidade específica de um software que rastreia o movimento?

Eu estava trabalhando um pouco com projeção de vídeos no passado e era sempre pré-editado, quase sempre em telas e raramente em corpos. Eu queria usar a projeção de vídeo como um instrumento de iluminação para ver o corpo, ao invés de me preocupar com as imagens que eram projetadas. Originalmente, eu imaginei que isso poderia acontecer com vídeo pré-editado, mas eu encontrei Frieder em um fórum em Mônaco e ele me mostrou alguns dos resultados de rastreamento nos quais ele estava trabalhando. Isso era muito mais excitante e sem o tédio do dançarino ter que responder rigorosamente ao vídeo pré-editado.

Enquanto Frieder fazia alguns avanços em detalhes de seu software, nós usamos essencialmente o programa que ele estava desenvolvendo ao longo dos anos e realmente expandimos seu detalhamento e sensibilidade. Tentamos fazer de nossos trabalhos parceiros iguais, então não era só a projeção dando apoio para a dançarina e seu movimento, ou inversamente, a dançarina só demonstrando as possibilidades da máquina.

Você pode falar sobre como acontece a interação entre a dançarina e os gráficos de movimentos?

A dançarina e o chão onde ela dança são iluminados por luz infravermelha. Uma câmera de vídeo capta de cima só a imagens no espectro infravermelho e capta a dançarina em movimento como uma forma preta sobre um fundo branco. O deslocamento contínuo do seu contorno e também a sua taxa de movimento são inseridos no computador como dados. O computador processa essa informação através de uma série de algoritmos que geram respostas de vídeo em tempo real. Essas imagens são projetadas de volta sobre a dançarina e o chão por meio do projetor de dados posicionado e alinhado com a câmera de vídeo em cima. Já que projetores de vídeo não emitem luz infravermelha, a câmera só vê o corpo humano e não as projeções. Essa troca acontece em uma fração de segundo, dando a impressão de que a relação é instantânea.

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Você trabalhou com uma tecnologia de sistema interativo em Closer (2002). Há alguma semelhança entre Closer e Glow?

Encenada no espaço público de uma galeria, Closer era uma instalação contínua pensada para que o público que assistia e passava por ela pudesse participar. Era bem diferente da performance de Glow. Em Closer, havia uma grande projeção vertical de um dançarino, isso estava posicionado em uma sala com grandes almofadas. Usando seu próprio corpo contra essas almofadas e ativando sensores, os espectadores podiam afetar o andamento do filme, como viam o dançarino e o que o dançarino fazia. Se os espectadores quisessem que algo acontecesse, eles tinham que se tornar ativos, então, no final, o público era tão, ou mais, ativo que o dançarino na tela.

Sobre Glow… Como a coreografia foi desenvolvida em relação ao software? Uma coisa veio antes da outra?

Na primeira visita de Frieder ao meu estúdio em Melbourne, Austrália, nós ficamos o tempo todo olhando para possíveis relações de rastreamento entre seu software e um corpo em movimento. Eu acho que não coreografamos nada. Neste período eu tinha documentado um cardápio detalhado de possibilidades entre o sistema da máquina e um só corpo. Eu queria ver as qualidades estéticas e cinéticas inerentes da máquina. Enquanto a maior parte das relações tiveram resultados visuais bem espetaculares, sozinhas, elas eram rapidamente reduzidas a truques bonitos.
Sem Frieder, eu comecei a explorar a idéia de que o corpo não estava ainda totalmente formado, ingenuamente buscando aquilo que poderia se tornar, uma progressão de evolução constante. Fazendo isso, surgiram novas sugestões para relações interativas, bem como o refinamento e reformulação de coisas que já tínhamos feito. Então, a coreografia e o desenvolvimento do software estavam em constante estado de fluxo, uma via de mão dupla.

Vendo o espaço do corpo mapeado por padrões de luz foi muito significativo para mim… De alguma forma, me levou a pensar em campos de energia e física quântica. Você pensou em algo relacionado com isso, quando você concebeu Glow?

Eu estava só concentrado no movimento e no comportamento de luz e imagem que se complementavam. As maiores considerações eram coisas que saíssem ativamente do corpo, o que o corpo deixa para trás e a luz e as imagens que estavam do lado de fora, pressionando ou envolvendo o corpo. A idéia era que o corpo não é realmente separado do espaço em volta dele, que existe constante troca e influência acontecendo.

Na maioria dos trabalhos de dança e teatro, o desenho de luz é tratado como o último elemento a ser pensado no palco. Glow me revelou uma nova abordagem para o uso desse elemento, porque, para mim, a luz define a dramaturgia da sua peça. Você pode elaborar sobre a dramaturgia de Glow e como ela está centrada no desenho da luz controlada pelo software de rastreamento de movimento?

O paradoxo de Glow para mim é que, mesmo usando uma tecnologia muito sofisticada de interatividade, o trabalho não é realmente sobre tecnologia ou nossa relação com ela. É profundamente humana, do começo ao fim. A jornada do trabalho pode ser vista como uma evolução, um sentido de ganhar consciência de si. A iluminação e as imagens são uma maneira de, literalmente, ver humor e movimento e definir o corpo humano tanto como sendo autônomo em relação ao seu entorno, como também, inextricavelmente ligado. As ações da dançarina repercute por todo o espaço da performance e também faz alusão ao que pode estar acontecendo internamente, um sentido de assombro. Nos segundo finais do trabalho, a performer se separa e rompe a relação com os gráficos e fica autônoma. A luz é grande e branca e cobre tudo. A luz que irradia refletida do chão ilumina até a platéia toda que está sentada em volta. Então, a luz se reduz um pequeno ponto para onde a dançarina está olhando e, num relance, desaparece deixando-a de pé no palco.

Eu leio em Glow uma velha idéia de luz e sombra inerentes ao ser humano, mas você trouxe uma abordagem muito eficiente através do uso da luz. Para mim, foi como uma atualização estética de algumas de nossas eternas questões existenciais encenadas. Para além do impressionante impacto tecnológico da peça, como disse antes, me fez pensar sobre o momento da consciência quântica no desenvolvimento humano e sobre tantos escritores que têm criado aproximações entre ciência e outras áreas de conhecimento numa tentativa de entender nossa conexão com tudo mais que existe no mundo…

Eu construo a partir de pedaços muito pequenos. Então, desenvolvimento é inerente à maneira como trabalho. A direção da maioria das coreografias é sofisticação e a direção dramática é o destaque da consciência do performer sobre sua própria evolução.

Algo que é realmente sofisticado em Glow é o fato de trazer uma resposta gráfica em tempo real para o movimento da dançarina e que não é baseado em uma projeção de vídeo na qual a dançarina tem que encaixar seu tempo de coreografia… e, porque a coreografia também é influenciada pelo padrão do software em momentos específicos, eu acho que pode permitir um paralelo com a nossa relação diária com fontes tecnológicas e como elas redefinem nossos movimentos diários ao mesmo tempo em que são, cada vez mais, concebidas para responder aos nossos corpos. De alguma forma, questões como essa tem sido exploradas demais na indústria cinematográfica, mas você apresentou essa interação no palco de uma forma tão elaborada e, ao mesmo tempo, simples… Foi uma experiência muito bonita para mim.

Eu não tive muita consideração com a nossa relação com a tecnologia ao criar esta peça, mesmo sendo fundamental a relação prática entre a performer e a máquina.

Existe algo bem diferente entre o trabalho ao vivo e nossa experiência dele em comparação a assistir um filme. As coisas que consideramos normais em um filme são frequentemente surpreendentes e chocantes ao vivo. Sabemos que o filme é altamente mediado, enquanto eventos ao vivo ainda têm um sentido de verdade, então, quando testemunhamos coisas como esforço e beleza ao vivo, é uma experiência muito forte.

Nós gravamos Glow em vídeo muito bem e as pessoas que assistem sem saber que é uma gravação de um evento que acontece ao vivo, não se impressionam nada. A maioria assume que são pós-efeitos gráficos.

Eu gostaria de entender melhor o papel da voz nesse trabalho… Eu questiono o uso de gritos na sua dança, mas isso é muito pessoal. Eu só tenho a impressão de que a coreografia e a dançarina são muito fortes e você não precisa disso.

Algumas pessoas também questionaram o usa da voz nessa peça e eu concordo em parte. Entretanto, há momentos nesse trabalho em que eu queria tirar a performer da composição estética. Não está totalmente certo, mas é algo com o qual ainda estou trabalhando e estou confiante de que tem lugar na peça.

Estou interessada na maneira como você borra as fronteiras da dança ao desenvolver o trabalho do Chunky Move em uma vasta gama de formatos incluindo instalações, filmes, produções site specific e de palco. Depois de pesquisar sobre alguns de seus trabalhos, fica claro que você é muito engajado em um entendimento teatral, mais do que somente coreográfico de cada trabalho. Por exemplo, isso é muito claro em Tense Dave. De onde vem essa influência?

Eu não sou um amante da performance de dança. Pelo contrário, eu muitas vezes duvido que seja um meio de expressão legítimo e forte. A maioria dos meus trabalhos são, parcialmente, exercícios para provar para mim mesmo sua validade. É uma relação estranha, já que a dúvida é também minha motivação. Dentro disso, meus interesses são como a maioria das pessoas – tentar entender a mim mesmo e o mundo em volta de mim e tentar achar significado naquilo que fazemos e somos. Em última instância, tentar entender o que é ser humano. Eu sei que é vago e algo banal, mas é o único fio que eu consigo identificar que junte os meus trabalhos ecléticos.


Uma coisa que fica clara para mim é a sua preocupação real com a perspectiva da qual o espectador vê o seu trabalho. Seu trabalho parece lidar com a perspectiva como um princípio fundamental. A maneira como o palco gira em Tense Dave, a proximidade e a interatividade da platéia em Closer e a maneira como olhamos para chão em Glow. Você pode me falar mais sobre isso?


Eu tenho sido, às vezes, hesitante em usar o palco convencional e sua conseqüente relação mais convencional entre o trabalho e a platéia. A idéia original para Tense Dave era um tour da platéia por uma série de salas com Dave, mas a pressão do meu produtor para fazer uma turnê com alguns dos meus trabalhos fez com que Dave acabasse em um palco, andando em círculo por salas enquanto a platéia assistia de seus lugares.

Eu acho que eu só queria que as pessoas se sensibilizassem com o que vissem e que muitas vezes tivessem um sentido consciente de que estavam lá, testemunhando. Na escuridão do auditório do teatro, o espectador deixa de existir de forma corpórea. Se vêem a platéia do outro lado daquilo que estão assistindo, também olhando para eles, eles se tornam conscientes de si, do que estão fazendo, como aparentam e seu papel. Parece importante para mim que a platéia possa ver o trabalho e o resto da platéia assistindo também. Eu também gosto que a platéia fique perto das performances de dança. Eu acho que, assim, aproveitam mais a experiência.

Você está expandindo em seu novo trabalho – Mortal Engine – a mesma tecnologia que você usou em Glow?

Mortal Engine explode a tecnologia que usamos em Glow para uma escala muito maior. Nós usamos quatro sistemas de rastreamento separados em Mortal Engine enquanto em Glow, usamos apenas uma. O sistemas de Frieders se comunicam com o sistema de laser de Robin Fox bem como com o som e a música da Ben Frost permitiram o fluxo de informação entre o corpo que se move no palco, a projeção de laser, a imagem de vídeo e a composição do som.
Como um desenvolviento do solo original de Glow, Mortal Engine se debruça sobre relações, conexão e desconexão, isolamento e intimidade, em um estado de fluxo constante. Conflitos entre o eu e um outro sombrio – o outro que está dentro e o outro como outro. Duetos são vistos tanto como pares como indivíduos se esforçando para escapar da obscuridade interior – mortalidade, sexualidade, desejo.

Qual é o momento atual da dança contemporânea na Austrália e como você vê a Chunky Move dentro de seu contexto?

Essa é uma pergunta grande e difícil! Enquanto a população da Austrália é muito pequena, pouco mais de vinte milhões, a dança contemporânea aqui é muito diversificada com muitas influências. Com certeza há uma busca por um sentido de identidade no trabalho australiano que possa distingui-lo dos cânones maiores da Europa e da América do Norte. Isso é frequentemente alcançado em formas mais brutais com certos cenários australianos clichês em trabalho de dança-teatro e, às vezes, sutilmente em trabalhos baseados em movimentos. Interessantemente, quanto mais forte é a busca pela identidade australiana, mais parece revelar que existe muito pouco de exclusivamente australiano e que nós compartilhamos preocupações, valores e características muito comuns na maioria das culturas contemporâneas. Ou talvez a dança não seja um meio bom o suficiente para dar conta de nuances culturais distintas mais complicadas.


Algum plano de apresentar o trabalho do Chunky Move no Brasil?

Nunca estivemos no Brasil e adoraria ir! Nós precisamos nos conectar com algum festival e/ou com organizações de performance por lá.

Tem alguma coisa que você gostaria de dizer que ainda não falamos sobre?

Essa foi a entrevista mais abrangente que eu já fiz. Não.

Muito obrigada pelo seu tempo para responder essa entrevista. Foi um prazer vivenciar Glow.

Foi bom pra mim ter que articular minhas respostas e eu espero conseguir me apresentar no Brasil em um futuro próximo.

Glow foi visto em 9 de fevereiro de 2008 no The Kitchen, na cidade de Nova York. Esta entrevista foi conduzida por e-mail em março.

Para saber mais sobre Glow, clique aqui. Para saber mais sobre Chunky Move, clique aqui.

Cristiane Bouger (Brasil, 1977) é diretora de teatro, dramaturga, performer e videoartista. Ela trabalho e mora em Nova York. Lá, ela escreve sobre dança e arte contemporânea para The BraSilians, Movement Research Performance Journal e Critical Correspondence. Em 2004 ela concebeu e dirigiu Community, Activism and the Downtown Scene – an independent documentary about the experimental scene in New York (Comunidade, ativismo e a cena downtown – um documentário independente sobre a cena experimental em Nova York). O Documentário estreou no Brazil em 2006, foi exibido no circuito independente no país e foi apresentado como parte do festival de dança In-Presentable 08, em Madri na Espanha em 2008 e na Judson Church durante o Movement Research Festival. Atualmente, está desenvolvendo o segundo capítulo da performance híbrida Walk East – Erotics Poems by Norma Kluster em Nova York e em Portugal. Ela é membro do Coletivo Couve-flor – Minicomunidade artística mundial. www.cristianebouger.com