Televisão – dança que agrada, mas pouco esclarece

A televisão como “oitava arte” é motivo de controvérsia e também uma sentença raramente proferida. Apesar disso, é fato que ela está bem presente em nosso cotidiano, um processo que teve início na década de 50, com a inauguração da extinta TV Tupi, em São Paulo. Foi nesse período que os brasileiros foram seduzidos pelo eletrodoméstico que determinou e ainda determina padrões estéticos de comportamento e de linguagem, com forte vinculação ao entretenimento fácil e de mercado da engenhosa Indústria Cultural[1]. O que não impede que a tevê seja objeto de discussões na universidade, pelos mesmos motivos que a condenam como esse lugar da sedução para o consumo. Eis a empreitada deste artigo em relação à dança.

Afinal, como negar o poder da televisão em nossas danças e vidas? Bem ou mal ela está ai, quer desliguemos ou não o aparelho. E mais, seu poder de influência e contaminação tenderá a aumentar quando a dita TV Digital for, de fato, implantada em nosso país, que é televisão e Internet juntas e com toda a força. Força que pode converter o fazer televisão no Brasil em um extraordinário instrumento de democracia (sendo bem otimista) contra a sua atual configuração de “um instrumento de opressão simbólica” sob um olhar, muitas vezes, falsamente crítico, segundo o diagnóstico do teórico da comunicação Pierre Bourdieu[2].

Para tal empreitada, é importante entender esse contexto endêmico[3]. O primeiro quadro televisivo foi a Dança dos Famosos (2006, 2007 e 2008), veiculado no Domingão do Faustão, além da Dança no Gelo (2006 e 2007), ambos pela Rede Globo. Atento ao dito sucesso, a TV Record apresentou o matutino Reality Dance (2007), no Programa Hoje em Dia, e ainda, os dominicais Dançando em Hollywood (2007) e Dançando sobre Patins (2007), no programa Tudo é Possível. Já o SBT lançou o programa Bailando por um sonho (2007), aos sábados e com reprise aos domingos, cedendo lugar ao I Campeonato Brasileiro de Dança (2007).

Duas idéias contribuem para a discussão, a de “simulacro na televisão” – proposta pela filósofa Marilena Chauí[4] – e a de “qualidade na televisão” – do jornalista e pesquisador João Freire Filho[5] -, ambas convergindo para o “ocultar-mostrando” de Bourdieu, indo ao encontro da discussão sobre uma presença-ausência da dança no contexto televisivo atual em nosso país. Junto a isso, temos ainda os memes[6], definição do biólogo evolucionista Richard Dawkins e que se referem à informação cultural, em analogia à informação genética (genes).

Chauí discorre sobre a lógica capitalista que faz com que os meios de comunicação estejam mais comprometidos com a concepção de entretenimento, especificamente, a televisão. Ou seja, eles se apropriam, por exemplo, das obras de arte e as nulificam em simulacros de prazer e satisfação. Tem a ver com o que diz Bourdieu, de um falar descontextualizado que não cumpre a função básica de, minimamente, informar; ou quando isso acontece, é de tal maneira vazio de equivalências ou aproximações com a realidade. Mas será que isso justifica a falta de uma dimensão reflexiva, principalmente por parte dos representantes ditos intelectuais dos júris? Ou a condição de existência da tevê é não ser um espaço profícuo para discussões mais elaboradas, mas onde o pouco (tem de) vira(r) um muito esvaziado de sentido?

Assista abaixo a um trecho do quadro Dança dos Famosos, do programa Domingão do Faustão (Rede Globo):

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=cVJarPLtJ_8 [/youtube]

Freire Filho defende que há atualmente uma realidade de desinformação histórica e uma escassez conceitual acerca do ‘nível’ do meio de comunicação maior penetração popular do Brasil, o que faz serem pouco produtivas as discussões vindas das (cíclicas) polêmicas a seu respeito. E diz mais, que é possível sim falar “qualidade na televisão”, apesar de tudo. Nesse caminho, a idéia dawkiniana de meme colabora para desfazer certas inocências e entender (e aceitar) a televisão como um poderoso aparelho de replicação de informação cultural, ficando a discussão sobre qualidade referendada em que tipo de informação é veiculada e a natureza dessa informação.

Partindo da discussão desses autores, temos que a dança está e, ao mesmo tempo, não está na programação da nossa televisão. Em comum, todos seguem um formato parecido e de tendência de mercado. São versões de programas importados, como Dancing with the stars e Skating with Celebrities, inspirados nas grandes competições norte-americanas de dança de salão. As quatro emissoras – Globo, SBT, Record e Band – reafirmam a dança como showbusiness na disputa por audiência e merchandising, estrategicamente, com um júri formado por profissionais de dança de salão ou que tenham alguma ligação com a educação física, além dos artistas-celebridades – ou melhor, “personalidades autorizadas”, como definiu Chauí.

Daí a breve conclusão de que, na tevê brasileira de hoje, a dança está mais para playground e, perigosamente, para divã. O poder massivo da mídia televisiva reforça a dança como algo somente para divertir, dar prazer, nos fazer sentir bem – degustação meramente contemplativa. Seus produtos ainda estão referenciados em certos saberes historicamente consolidados, como “a dança é linguagem universal”, “o brasileiro é um povo dançante”, “dança boa é a que emociona”, “dançar bem é ter ritmo, tem de estar na música”; e “dança é desempenho físico”. O que engessa qualquer possibilidade de desdobrar os diálogos sobre a dança com mais eficiência contextual, longe de ser uma “arte do indizível”[7] . Quer dizer, a televisão elogia o que é repetição mecânica e consagra o que é moda. Resultado: agrada a muitos sim (audência), mas pouco esclarece.

Na verdade, configuram-se como memes de conseqüências maléficas, se levarmos em conta a formação nas graduações de dança, cujos imaginários de seus alunos são alimentados, quase que diariamente, por informação massificada e também cujos corpos que dançam tornam-se resultantes dessa relação midiática sem a devida reflexão. Algo preocupante quando se compreende corpo como mídia primária e mídia do seu estado – logo, “mídia de si mesmo” -, de um lugar onde as informações são processadas e reorganizadas, e não um meio por onde a informação simplesmente passa, como pressupõe a Teoria Corpomídia, desenvolvida pelas pesquisadoras Helena Katz e Christine Greiner [8].

Lembrando ainda da teledramaturgia brasileira recente. Tivemos a novela global Páginas da Vida (2007), com a personagem Giselle e sua professora Elisa (a bailarina clássica Ana Botafogo), e a grande audiência da novela-musical Dance Dance Dance (2007, 2008), da Rede Bandeirantes (Band), esta que acabou determinando uma nova formatação da Malhação (Globo), ambas ancoradas ainda no sucesso do musical norte-americano High School Musical[9].

Na novela global Páginas da Vida, a dança estava diluída na trama, generalizada como sinônimo do tradicional balé clássico, este também apresentado de forma compactada. Não à toa, a bailarina Ana Botafogo viveu Elisa, professora de Giselle, cujo nome foi inspirado em uma das mais famosas peças clássicas de repertório. A personagem era porta-voz de um entendimento de dança estagnado no tempo, legitimada pela história pessoal de Botafogo (vale ressaltar, não é a história da dança no Brasil). Disciplina e magreza foram difundidas como requisitos básicos, até decisivos, para quem quer dançar qualquer coisa, o que já é angustiante para quem almeja ser uma bailarina clássica. Tanto que Giselle tinha de fazer muita aula e comer pouco para não engordar, mesmo não gostando dos comandos de ordem balesísticos. Por ironia, torna-se bulímica. Como o foco era “discutir” o distúrbio alimentar, a dança ficou postiça, desatualizada e com um nível mínimo de complexidade nos diálogos.

Foi dessa pequena tentativa que veio uma versão “melhor” elaborada. Ano passado estreou a novela-musical Dance, Dance, Dance, na Band, novela que teve dança como protagonista, algo bem mais preocupante do que a bailarina bulímica global. O folhetim juvenil, na mesma linha da novela Floribela, também pela Band, teve como cenário principal uma academia de dança, com espaço para o balé clássico, ritmos de salão e hip hop. A protagonista, interpretada por Juliana Baroni, é uma bailarina que se apaixona por Rafael (Ricardo Martins), um cara durão. Pouca complexidade na trama, por conta dos objetivos mercadológicos bem evidentes: vender produtos para o público adolescente (roupas, calçados, trilha sonora, etc) diante de um custo total estimado de R$ 20 milhões para a produção de 160 capítulos em sistema digital, exibidos até maio deste ano. A este respeito, temos o depoimento do diretor Del Rangel para a matéria “Febre da dança na tevê”, da Revista Isto É (26/09/2007), que diz: “a dança é entretenimento e ajuda a contar histórias românticas. Ela prevê superação. Só é possível dançar bem com muito esforço e isso reforça o arquétipo do herói”[10].

Algo contraditório, tanto nas novelas como nos realities de dança, quando existe hoje um movimento forte na área que não deveria ser desconsiderado. São dançarinos ou bailarinos que não se conformam mais com a condição de meros reprodutores de passos; coreógrafos que se reconhecem como produtores de conhecimento, logo, estreitam a relação ética e estética; professores que repensam suas metodologias de ensino em sala de aula, com outros modos de trabalhar os conteúdos programáticos; e uma emergente discussão nos fóruns de dança sobre, principalmente, os desmandos dos conselhos de educação física contra a dança.

A própria existência da dança na televisão de agora se configura como uma problemática interessante para as duas áreas envolvidas, uma podendo alimentar as discussões da outra, contribuindo para que se diminua a “desinformação histórica e indulgência teórica”, colocadas por Freire Filho em relação à televisão, mas que também são sintomáticas na dança. Que o que está em ‘jogo’ não é simplesmente se a (nossa) tevê presta ou não presta, de uma mera condenação moral, mas na postura insistente de banalizar a dança como algo só bonito de ver e contemplar, e ainda, de deslegitimar o exercício da esfera pública em torno dela.

Daí a urgência no exercício de retomar a capacidade de formular perguntas simples a respeito daquilo que nos parece familiar e acreditar, como propõe o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos[11], em “um novo senso comum” para as relações entre dança e televisão. Justamente para estimularmos nossa autocrítica sobre a dita presença-ausência da dança na tevê brasileira em nosso tempo.

Joubert Arrais é jornalista, artista independente, crítico de dança (CE), bacharel em Comunicação Social – Jornalismo (UFC) e mestre em Dança pelo Programa de Pós Graduação em Dança (PPGDanca/UFBA). É crítico-colaborador na área de dança, desde 2003, nos jornais cearenses O POVO e Diário do Nordeste. Nos últimos três anos, vem atuando em projetos autorais e colaborativos, de caráter artístico-acadêmico, como o Projeto Teorema (Estúdio Nave/SP), Experimento Bruto (Mara Guerrero/SP) e Ensaio em Estudo (PPGDanca/UFBA). Em maio e junho últimos, participou do “workshop para jovens críticos”, promovido pela TEAM Network (Transdisciplinary European Arts Magazines), em parceria com o Encontro Alkantara Festival 2008, em Lisboa (POR), sob a coordenação de Gwénola David (Revista Mouvement – FRA) e Nayse Lopez (Portal idança – BR)

Referências:

[1] O termo foi utilizado pela primeira vez no livro Dialética do Esclarecimento e se refere ao movimento acadêmico-teórico denominado Escola de Frankfurt, cujos principais expoentes são Theodor Adorno e Max Horkheimer. De modo geral, defino Industria Cultural como algo que diz respeito às empresas e instituições que direcionam sua atividade econômica à produção de cultura com fins de lucro e mercado, através dos meios de comunicação. Neste caso, a televisão vem se mostrando ao longo dos últimos cinquenta anos como principal recurso midiático no estimulo ao consumo, determinando hábitos, ideais e comportamentos.

[2] BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
A maioria dos programas tem sites específicos permanecem ativos, há trechos de vídeos disponibilizados no youtube.com sobre finais e bastidores, e o wikipedia.com, tais como:
http://redeglobo.globo.com/Dancadosfamosos/0,,8421,00.html
http://pt.wikipedia.org/wiki/Dan%C3%A7a_no_Gelo
http://pt.wikipedia.org/wiki/Dan%C3%A7a_dos_Famosos
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bailando_Por_um_Sonho
http://www.youtube.com/watch?v=qEkOtea69Yo

[3]CHAUÍ, Marilena. Simulacro e Poder, Uma análise da mídia. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006.

[4]FREIRE FILHO, João. Notas históricas sobre o conceito de qualidade na crítica televisual brasileira. Revista Galáxia – PUC / SP. No. 07 (abril de 2004). São Paulo: Educ. Brasília: CNPq, 2003.

[5]Um meme, termo cunhado em 1976, é para a memória o análogo do gene na genética, a sua unidade mínima. Assim como há o gene, relativo à informação genética, há também o meme, que é informação cultural. Assim, o meme é definido como a unidade mínima de informação cultural. Distingue-se da analogia da “linguagem como vírus”, pois não significa apenas a transmissão de uma mente para outra, como pode ser tratado num contexto coloquial e não especializado. Ao invés disso, como propõe Dawkins, em O gene egoísta (2007, nova edição), os memes são definidos como “replicadores de comportamentos”, podendo ser idéias ou partes de idéias, línguas, sons, desenhos, capacidades, valores estéticos e morais, ou qualquer outra coisa que possa ser aprendida facilmente e transmitida enquanto unidade autônoma. Relaciona-se diretamente com o estudo dos modelos evolutivos da transferência de informação, que é conhecido como “memética”.

[6]Em sua tese-livro O faze-dizer do corpo: dança e performatividade (2008, EDUFBA), a pesquisadora Jussara Setenta (PPGDanca / UFBA) apresenta a dança como fazer-dizer do corpo, tratando o corpo que dança como ação política performativa. Com isso, ajuda a desfazer o entendimento de que a dança é uma arte inefável (que não pode ser problematizada em palavras), muito menos indizível (como se não tivesse nada a dizer).

[7]GREINER, Christine. Corpo – pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005.

[8]High School Musical é um filme-musical adolescente da Disney Channel Original Movie, dirigido por Kenny Ortega, que conta a história de dois adolescentes que se conhecem e descobrem a paixão em comum pela música.

[9]Disponível em http://www.terra.com.br/istoe/edicoes/1978/artigo62024-1.htm. Acessado em 14/10/2007.

[10]SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 4 ed. São Paulo: Editora Cortez, 2006.