Thank God Hip Hop Kisses | Thank God Hip Hop Kisses

“Hip hop loves the beat of music” é projectado no enorme cyclorama do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Nunca tinha entrado aqui. A opulência do Municipal contrasta com as vestimentas bem casuais do público. É que vir assistir a um espectáculo do 14º Panorama 2005 custa apenas um real na expectativa, absolutamente conquistada, de democratizar o acesso aos espectáculos e assim, por exemplo, trazer a juventude para as cadeiras austeras do belíssimo Municipal, onde a orgia de mármore quase fere a vista no enorme átrio de entrada encimado por uma escadaria indelevelmente gasta pelos passos vagarosos de gerações e gerações de amantes das artes cénicas.

Hoje, os Gucci de salto 15 foram trocados por sapatos de ténis e chinelas havaianas. O barulho da borracha a derrapar no mármore transporta-nos imediatamente para a atmosfera do espectáculo do Grupo de Rua de Niterói onde a explosão viril do hip hop convive com elementos próprios da dança contemporânea.

Confesso-me desconfiado. Acho que, invariavelmente, o hip hop cai em lugares comuns que o restringem demasiadamente, para além de possuir um imaginário machista que, a meu ver, representa um retrocesso na manifestação urbana da dança.
Mas o jovem coreógrafo Bruno Beltrão queixa-se do mesmo, diz que o impacto da dança era forte mas faltava conteúdo e inovação. “Era como um cachorro fazendo truques” e promete que com este espectáculo, ataca “os preconceitos e o machismo do movimento hip hop”.

Lá me convence. O Bruno promete uma grande surpresa. Ok! Eu vou, mas vou desconfiado. Se vou é apenas porque o espectáculo é dançado por rapazes de rua vindos de Belo Horizonte, Curitiba, Belém, São Paulo e Rio de Janeiro e como eu me sinto cada vez mais interessado na função social da arte desloco-me sem resistência ao belo teatro da Cinelândia. Só que vou um bocadinho desconfiado.

A Sónia Sobral, mais uma vez ela, arranjou lugares óptimos para a plateia. Sentamo-nos. As luzes baixam quase imediatamente. No enorme cyclorama do Teatro Municipal do Rio de Janeiro lê-se “Hip hop loves the beat of music”, o som percutivo de violinos invade a sala. A luz é bela. Desenha grandes quadrados de luz, como imensas janelas para o exterior. Não há a parafernália de som que eu estava à espera num espectáculo de dança de rua. Os corpos de três bailarinos movimentam-se com total graciosidade e vigor durante alguns minutos. Os aplausos são ensurdecedores.

No enorme cyclorama do Teatro Municipal do Rio de Janeiro lê-se “Hip hop loves the beat of”. Num silêncio opressivo, um só bailarino, vestido de verde seco dança e já pouco interessa se a raiz dos movimentos reside no hip hop ou noutra qualquer manifestação popular da dança ou onde quer que seja. O importante é que a solidão das ruas, irmã siamesa da solidão das grandes mansões da Estrada de Canoas, começa a alastrar pelos dourados da sala do belíssimo Teatro. Quando a luz se apaga sobre aquele corpo verde, seco, não há palmas que consigam preencher o silêncio que se alojou dentro do meu peito. E são muitas! E são tantas!

No enorme cyclorama do Teatro Municipal do Rio de Janeiro lê-se “Hip hop loves the beat”. Espero, por fim, uma batida mais semelhante ao que julgo conhecer do hip hop. Por uma vez, preciso descaradamente de barulho!, mas o jovem coreógrafo de Niterói não me quer dar tréguas e novamente um único rapaz move o seu corpo de anjo conturbado que vai sendo conduzido pelas batidas fortes que, de quando em quando, desabrocham do silêncio. Mas fazem-no muito espaçadamente, muito desregradamente e o corpo age em consonância com essa demora, com essa nenhuma regra. Parece mover-se em câmara lenta. Eu próprio pareço começar a respirar mais devagar, a viver mais devagar, a sonhar mais devagar comandado por aquelas batidas secas que muito espaçadamente me levam por caminhos que não sei se são de calma, se são de angústia.

No enorme cyclorama do Teatro Municipal do Rio de Janeiro lê-se “Hip hop loves” e, meus senhores, eu não sabia ao que vinha. Os doze rapazes cujas idades andarão entre os dezoito e os vinte e dois anos dirigem-se à boca de cena, olham para o público e, dois a dois, beijam-se ardentemente. Um beijo demorado, apaixonado, muito belo. Há duas ou três pessoas na plateia que assobiam, mas o beijo demora e o silêncio volta a reinar indecoroso. É que não estamos a falar de bailarinos com muitos anos de escola, ou de actores cujo distanciamento em relação às personagens torna tudo um bocadinho mais adónido. Nada do pensamento fashion e engajado dos artistas. Aqui são rapazes de rua, no pico da afirmação da sua virilidade. Rapazes provenientes do meio machista e preconceituoso do hip hop. Rapazes que vão voltar para a rua e, inevitavelmente, ouvirão muitas coisas que talvez preferissem não ouvir por causa daquele beijo. Eu fico comovido por tão grande disponibilidade e, francamente, acho que ali naquela palco carioca foi feito mais contra a homofobia do que em milhares de palestras e encontros e paradas sobre o assunto.

No enorme cyclorama do Teatro Municipal do Rio de Janeiro lê-se “Hip hop”. Um dos rapazes corre para trás. Parece estar a ser perseguido. Outro dançarino não se mexe. De repente no enorme cyclorama do Teatro Municipal do Rio de Janeiro lê-se apenas “hip” e eu nem dei por se ter apagado o “hop”. Aquele rapaz que corre para trás e para trás e para trás, carrega tanta perda, tanto desamparo que eu já me descubro naquele mesmo palco a andar para trás e para trás. O outro rapaz que comigo divide o palco permanece numa imobilidade imutável que potencia a minha sensação de desamparo. Entra um mulato vestido de vermelho. Traz com ele muito sentido de humor que só serve para desenquadrar ainda mais o meu desamparo.
Por fim já é toda a companhia que, com movimentos repetitivos, faz o meu desamparo alastrar pelos dourados da sala do belíssimo Teatro. E a luz apaga-se definitivamente. E finalmente os aplausos quebram o silêncio. Eu aplaudo freneticamente. Aplaudo os silêncios, aplaudo os desamparos, aplaudo o pensamento que norteia todo o espectáculo e que faz o hip hop transformar-se numa linguagem plena de vitalidade e de comunicação, mas, acima de tudo, aplaudo aquele beijo ousado, corajoso, despudorado. Aplaudo-o porque acredito que sobre as tábuas de qualquer palco se pode mudar o mundo. E depois de muitos beijos como este, o mundo será certamente um lugar melhor!

* Tiago Torres da Silva nasceu em Lisboa em 1969. Escritor e diretor teatral, há já alguns anos divide a sua atividade entre Portugal e o Brasil, onde dirigiu Bibi Ferreira e viu os seus poemas gravados por Ney Matogrosso, Elba Ramalho, Zeca Baleiro, Zélia Duncan, Ná Ozzetti, Mônica Salmaso, entre muitos outros.“Hip hop loves the beat of music” é projectado no enorme cyclorama do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Nunca tinha entrado aqui. A opulência do Municipal contrasta com as vestimentas bem casuais do público. É que vir assistir a um espectáculo do 14º Panorama 2005 custa apenas um real na expectativa, absolutamente conquistada, de democratizar o acesso aos espectáculos e assim, por exemplo, trazer a juventude para as cadeiras austeras do belíssimo Municipal, onde a orgia de mármore quase fere a vista no enorme átrio de entrada encimado por uma escadaria indelevelmente gasta pelos passos vagarosos de gerações e gerações de amantes das artes cénicas.

Hoje, os Gucci de salto 15 foram trocados por sapatos de ténis e chinelas havaianas. O barulho da borracha a derrapar no mármore transporta-nos imediatamente para a atmosfera do espectáculo do Grupo de Rua de Niterói onde a explosão viril do hip hop convive com elementos próprios da dança contemporânea.

Confesso-me desconfiado. Acho que, invariavelmente, o hip hop cai em lugares comuns que o restringem demasiadamente, para além de possuir um imaginário machista que, a meu ver, representa um retrocesso na manifestação urbana da dança.
Mas o jovem coreógrafo Bruno Beltrão queixa-se do mesmo, diz que o impacto da dança era forte mas faltava conteúdo e inovação. “Era como um cachorro fazendo truques” e promete que com este espectáculo, ataca “os preconceitos e o machismo do movimento hip hop”.

Lá me convence. O Bruno promete uma grande surpresa. Ok! Eu vou, mas vou desconfiado. Se vou é apenas porque o espectáculo é dançado por rapazes de rua vindos de Belo Horizonte, Curitiba, Belém, São Paulo e Rio de Janeiro e como eu me sinto cada vez mais interessado na função social da arte desloco-me sem resistência ao belo teatro da Cinelândia. Só que vou um bocadinho desconfiado.

A Sónia Sobral, mais uma vez ela, arranjou lugares óptimos para a plateia. Sentamo-nos. As luzes baixam quase imediatamente. No enorme cyclorama do Teatro Municipal do Rio de Janeiro lê-se “Hip hop loves the beat of music”, o som percutivo de violinos invade a sala. A luz é bela. Desenha grandes quadrados de luz, como imensas janelas para o exterior. Não há a parafernália de som que eu estava à espera num espectáculo de dança de rua. Os corpos de três bailarinos movimentam-se com total graciosidade e vigor durante alguns minutos. Os aplausos são ensurdecedores.

No enorme cyclorama do Teatro Municipal do Rio de Janeiro lê-se “Hip hop loves the beat of”. Num silêncio opressivo, um só bailarino, vestido de verde seco dança e já pouco interessa se a raiz dos movimentos reside no hip hop ou noutra qualquer manifestação popular da dança ou onde quer que seja. O importante é que a solidão das ruas, irmã siamesa da solidão das grandes mansões da Estrada de Canoas, começa a alastrar pelos dourados da sala do belíssimo Teatro. Quando a luz se apaga sobre aquele corpo verde, seco, não há palmas que consigam preencher o silêncio que se alojou dentro do meu peito. E são muitas! E são tantas!

No enorme cyclorama do Teatro Municipal do Rio de Janeiro lê-se “Hip hop loves the beat”. Espero, por fim, uma batida mais semelhante ao que julgo conhecer do hip hop. Por uma vez, preciso descaradamente de barulho!, mas o jovem coreógrafo de Niterói não me quer dar tréguas e novamente um único rapaz move o seu corpo de anjo conturbado que vai sendo conduzido pelas batidas fortes que, de quando em quando, desabrocham do silêncio. Mas fazem-no muito espaçadamente, muito desregradamente e o corpo age em consonância com essa demora, com essa nenhuma regra. Parece mover-se em câmara lenta. Eu próprio pareço começar a respirar mais devagar, a viver mais devagar, a sonhar mais devagar comandado por aquelas batidas secas que muito espaçadamente me levam por caminhos que não sei se são de calma, se são de angústia.

No enorme cyclorama do Teatro Municipal do Rio de Janeiro lê-se “Hip hop loves” e, meus senhores, eu não sabia ao que vinha. Os doze rapazes cujas idades andarão entre os dezoito e os vinte e dois anos dirigem-se à boca de cena, olham para o público e, dois a dois, beijam-se ardentemente. Um beijo demorado, apaixonado, muito belo. Há duas ou três pessoas na plateia que assobiam, mas o beijo demora e o silêncio volta a reinar indecoroso. É que não estamos a falar de bailarinos com muitos anos de escola, ou de actores cujo distanciamento em relação às personagens torna tudo um bocadinho mais adónido. Nada do pensamento fashion e engajado dos artistas. Aqui são rapazes de rua, no pico da afirmação da sua virilidade. Rapazes provenientes do meio machista e preconceituoso do hip hop. Rapazes que vão voltar para a rua e, inevitavelmente, ouvirão muitas coisas que talvez preferissem não ouvir por causa daquele beijo. Eu fico comovido por tão grande disponibilidade e, francamente, acho que ali naquela palco carioca foi feito mais contra a homofobia do que em milhares de palestras e encontros e paradas sobre o assunto.

No enorme cyclorama do Teatro Municipal do Rio de Janeiro lê-se “Hip hop”. Um dos rapazes corre para trás. Parece estar a ser perseguido. Outro dançarino não se mexe. De repente no enorme cyclorama do Teatro Municipal do Rio de Janeiro lê-se apenas “hip” e eu nem dei por se ter apagado o “hop”. Aquele rapaz que corre para trás e para trás e para trás, carrega tanta perda, tanto desamparo que eu já me descubro naquele mesmo palco a andar para trás e para trás. O outro rapaz que comigo divide o palco permanece numa imobilidade imutável que potencia a minha sensação de desamparo. Entra um mulato vestido de vermelho. Traz com ele muito sentido de humor que só serve para desenquadrar ainda mais o meu desamparo.
Por fim já é toda a companhia que, com movimentos repetitivos, faz o meu desamparo alastrar pelos dourados da sala do belíssimo Teatro. E a luz apaga-se definitivamente. E finalmente os aplausos quebram o silêncio. Eu aplaudo freneticamente. Aplaudo os silêncios, aplaudo os desamparos, aplaudo o pensamento que norteia todo o espectáculo e que faz o hip hop transformar-se numa linguagem plena de vitalidade e de comunicação, mas, acima de tudo, aplaudo aquele beijo ousado, corajoso, despudorado. Aplaudo-o porque acredito que sobre as tábuas de qualquer palco se pode mudar o mundo. E depois de muitos beijos como este, o mundo será certamente um lugar melhor!

* Tiago Torres da Silva nasceu em Lisboa em 1969. Escritor e diretor teatral, há já alguns anos divide a sua atividade entre Portugal e o Brasil, onde dirigiu Bibi Ferreira e viu os seus poemas gravados por Ney Matogrosso, Elba Ramalho, Zeca Baleiro, Zélia Duncan, Ná Ozzetti, Mônica Salmaso, entre muitos outros.