Trans-formar o moderno

A dissertação de onde foi retirado este trecho foi defendida em 24 de abril de 2002 com a Dra. Maria Cristina Soares de Gouvea como orientadora na Faculdade de Educação da UFMG, linha de História da Educação, Cultura e Sociedade. Em breve estará disponível na biblioteca da FAE – UFMG.

Esta pesquisa procurou mapear em Belo Horizonte, por diferentes vias, uma identificação não só de artistas, mas de literatos, intelectuais e alguns políticos com ideários da modernidade, os quais despontam desde a fundação da cidade, objetivando-se continuamente em novos significados ao longo da história da Capital. O campo da dança, em Belo Horizonte, foi o último a incorporar o ideário estético moderno, fato que, em outras áreas, já havia ocorrido há muito tempo. Tal efetivação vem com o trabalho desenvolvido por Klauss e Angel Vianna no balé, modernizando-o tanto técnica como coreograficamente; passa por uma continuidade, mantida de forma diferenciada pelo trabalho do Stúdio Anna Pavlova, e será retomado – numa dinâmica radicalmente diferente – por Marilene Martins, que integrando a chamada “Geração Complemento” – grupo de artistas e intelectuais envolvidos na publicação da revista Complemento – viveu os contatos com outros campos da arte e linguagens mais vanguardistas, fortalecendo suas convicções pessoais. Para Marilene, o trabalho com Klauss e Angel Vianna, seja na escola ou dançando no Balé Klauss Vianna, abriu-lhe perspectivas diferentes no tocante à dança, que iam desde o movimento em si, à técnica de aprendê-lo e transmiti-lo, até aos conteúdos subjacentes de sua expressividade, a relação com a música – seja como princípio inspirador e/ou direcionador, ou somente como fundo climático – e a relação entre forma e conteúdo. A busca pretendia por este de uma dança genuinamente brasileira, seria, sobre Marilene, fator determinante em seu próprio trabalho, que se caracterizaria, também, pela pesquisa de uma brasilidade nos movimentos dos bailarinos, ao que soma-se sua posterior formação com Rolf Gelewsky, na Bahia dos anos 60 como aluna, dançarina do Grupo Juventude Dança e mais tarde como sua assistente. A técnica moderna, Marilene recebeu-a principalmente de Rolf Gelewsky, entre outras disciplinas e ensinamentos, como todo um rigor metodológico aplicado ao ensino da dança moderna, à improvisação, à composição coreográfica e à filosofia da dança. Em 1969 funda, em Belo Horizonte, a Escola de Dança Moderna Marilene Martins, núcleo embrionário do Trans-Forma: Centro de Dança Contemporânea. Visando oferecer uma verdadeira formação artística no campo da dança, havia na escola cursos de dança moderna que abrangiam faixas etárias desde os 3 anos até a maioridade. A escola organizava-se em 4 níveis de cursos: principiante, intermediário I e intermediário II, somando um total de 5 anos, que davam acesso ao nível avançado, com duração de 3 anos. Ao todo o curso cobria 8 anos de formação. Para Marilene, ao criar a escola, o objetivo fundamental era o “… de formar professores. Toda a liberdade de criação do Trans-Forma era muito bem fundamentada em pesquisas. Existia uma didática sistematizada, que era freqüentemente avaliada”. (1) Inseriam-se no curso de moderno, além das aulas técnicas, outras matérias como o Estudo do Espaço, Estudo da Forma, Rítmicca, Composição, Improvisação e Coreografia em Grupo. Como técnicas acessórias, havia o Jazz, a Belly Dance e a dança Afro, que, segundo Marilene, favoreciam a soltura geral do corpo, seu relaxamento e proporcionavam formas diferenciadas de alongamento. Para aqueles que não pretendiam fazer todo o curso de formação, foi criado o curso de Dança Livre. Contava, também, com uma biblioteca especializada em dança, arte universal e cultura brasileira; uma discoteca com música erudita e popular (moderna e folclórica) e uma ampla área de convivência. Consolidando-se como um verdadeiro espaço de sociabilidade, a escola era especialmente freqüentada pela juventude mais identificada com o ideário da Contracultura, construindo uma imagem local para a sociedade belo-horizontino, de acolhedora dos “malucos” da dança na Capital. O corpo docente da escola formou-se gradativamente com os alunos mais adiantados preparados por Marilene, em cursos por ela ministrados; o trabalho técnico desenvolvido era revisto pela ótica de uma didática específica para a dança moderna. Paralelamente aos cursos regulares, professores convidados enriqueciam o currículo da escola, contribuindo com trabalhos que ampliavam as perspectivas da arte da dança. Ministraram estes cursos, entre outros: José Adolfo Moura, de Sensibilização e Improvisação; Paulo Baêta, junto a Rolf Gelewsky, de Estruturas Sonoras; Fredy Romero, técnica contemporânea de Martha Grahan, que foi, posteriormente, incorporado ao método de formação da escola; o diretor teatral Eid Ribeiro ministrou Iniciação Teatral; Graciela Figueiroa, Dança Moderna e Rítmica; o músico Eduardo Bértola curso de Ritmos e Sons; Bettina Bellomo, Dança Clássica; a diretora Carmem Paternostro, Expressão Corporal; o bailarino Denilton Gomes, Método Laban de Dança Moderna; Klauss e Angel Vianna, Consciência Corporal; Rolf Gelewsky, Espontaneidade e Consciência para a Improvisação. Por intermédio dessas diversas linguagens, a escola mantinha-se conectada com métodos que, em sua maioria, pela primeira vez eram oferecidos em Belo Horizonte, disseminando práticas que aos poucos vão sendo incorporadas por muitos dos profissionais que aqui trabalhavam. Chegavam, assim, através da dança moderna, experiências de áreas afins que ampliaram a qualidade da formação de bailarinos, e que, até aquela época, eram inexistentes na tradição cultural de dança na cidade. Nesse ponto, o trabalho desenvolvido por Marilene diferencia-se daquele iniciado por Klauss e Angel Vianna, anos atrás, pois que, se estes tinham sua maior força na linguagem e técnica corporal, Marilene, sem delas se descuidar, incorpora ao curso que oferece, outras linguagens para a formação de seus bailarinos. Dessa forma, Belo Horizonte, que sempre vivera o processo de dispersão de seus talentos, passa a funcionar como pólo atrativo para profissionais de outros estados, criando uma maior concentração não só destes, mas daqueles que, aqui formados, vão aos poucos criando novos meios de permanência e sobrevivência na capital. O ideário que Marilene fundava, funcionando como um curso livre, fora de uma escola de educação tradicional, termina por atuar no indivíduo como uma educação de sua sensibilidade e uma verdadeira formação. Nesse ponto a escola ultrapassa sua própria motivação como espaço de dança, aportando ao aluno condições que o posicionam num ideal ético-estético de formação, como sujeito, por meio de um programa regular do ensino de dança, e propõe uma educação que, no seu todo, termina por sustentar, sim, um verdadeiro movimento cultural em Belo Horizonte, do qual o Trans-Forma Grupo Experimental de Dança será o modelo de construção e que efetiva a formação de artistas-bailarinos mais questionadores, que, indo além da condição de executantes, criam. Assim, dessa coalizão de idéias, influências e de um verdadeiro “adubamento” do terreno preparado desde a década de 50 até finais dos anos 60, objetiva-se o seu trabalho, que, por sua vez, lança as bases de várias outras iniciativas vitoriosas, que se estendem diversificadamente à produção de dança em Belo Horizonte, num continuun pleno de rupturas, dentro de uma tradição até os dias atuais. Aqui se encontram os três grandes eixos referenciais desta pesquisa: Belo Horizonte, dança/educação da sensibilidade e modernidade, que, em suas distintas temporalidades, pelos momentos históricos que representam, marcam a cidade como um pólo dessa tradição cultural. (1) Entrevista de Marilene Martins à jornalista Michele Borges da Costa, do jornal O Tempo, em14/05/2000.