Transgressão Blue

Protesto colorido tomou conta da plateia do Auditório Ibirapuera, em São Paulo, durante “noite dos campeões”, da trigésima edição do Festival de Joinville.

 

Enquanto a locução eletrônica de voz masculina, grave, com finalizações abertas das palavras, como que fazendo eco com o próprio céu da boca, ocupava a escuridão da sala de espetáculos do auditório Ibirapuera, no dia 4 de agosto, em São Paulo, e anunciava a próxima “atração” da noite, pernas prateadas se deslocavam entre uma poltrona e outra, indecisas em sua direção.

– Primeiro lugaaar. Balé clássico de repertóriooo. Grand-pas-de-deux categoria sêniooor…

Durante outro intervalo da “noite dos campeões” da trigésima edição do festival de dança de Joinville, uma senhora de cabelo azul também começou a se destacar na plateia. Junto, estavam um homem vestindo chapéu roxo e, outro, com uma túnica bege.

“Mãe, quem são aquelas pessoas fantasiadas?”, ouvi uma menina perguntar em uma escapada rápida ao banheiro. “Será que vão se apresentar daqui a pouco?”, ouvi outros espectadores se perguntarem.

Lady Blue, Mister Purple, Tô Bege e Jesus Disco Star – só mais tarde fui conseguir saber seus nomes – alcançaram parte de seus objetivos em poucos segundos de aparição: chamar a atenção do público para a própria plateia, em vez de apenas para o palco. O protesto estava apenas começando. Alternavam seus assentos, provocando cochichos e, a cada fim de apresentação, Lady Blue se levantava sem bater palmas e avistava o palco manipulando uma sombrinha japonesa.

Lady Blue aguarda a próxima "atração" da "noite dos campeões", na plateia do auditório Ibirapuera, em São Paulo.

Lady Blue aguarda a próxima “atração” da “noite dos campeões”, na plateia do auditório Ibirapuera, em São Paulo.

A dança apresentada naquele evento parecia distanciada de um fazer artístico, porque ocupada em vencer um concurso, em vez de se voltar à “expressão” e “formulação estética” de questões, inquietações, necessidades e vontades de cada artista, de cada grupo. Em se aproximar da busca por atingir um “padrão de qualidade” e se distanciar de uma necessidade expressiva, a dança apresentada ali escancarava a ausência de uma relação profícua daqueles estudantes com o ambiente em que vivem – e essa relação é que gera, de fato, terreno fértil para se formular problemas e questões que podem vir a se tornar formulações estéticas.

Ao fim da noite, os quatro personagens se posicionaram na porta de saída do auditório, onde diversos espectadores se aproximaram perguntando:

– Quem são vocês? Posso tirar uma foto? Foram contratados pelo Festival?

– Não, nós somos contra o festival.

E ali os quatro personagens se explicaram, ouviram e foram ouvidos. E, se não mudaram algo, provocaram, com certeza, ruídos. Para conhecer mais a fundo as motivações desses provocadores-transgressores, o idanca.net entrevistou dois deles: Lady Blue e Mister Purple.

 

ENTREVISTA

Vocês são contra todo festival que integra dança e competição? Por quê?

Lady Blue: Eu sou contra festival de competição. Te explico o porquê com algumas perguntas: o que tem dentro de um festival de competição? Tem o primeiro lugar, o segundo lugar, o desclassificado. O que é desclassificado? Por que é desclassificado? O que tem naquele que é diferente do primeiro lugar?

Essa competição movimenta um mercado das academias e elas estão focadas em quê? Formar um bailarino é estudar duas vezes por semana numa academia de bairro? E por que esses festivais não podem ser mostras? Por que precisa ser de competição? Por que tem que cobrar taxas de inscrição? Em que esse dinheiro é investido? O entorno do festival competitivo carrega diversas questões comerciais.

Mr. Purple: Essa questão da competição já é reflexo da ausência de uma política pública séria para cultura no país. Utilizando esse artifício, os festivais exploram a dificuldade que as escolas, espalhadas por todo o país, têm de ter algum tipo de visibilidade e perspectiva no fazer artístico. É como se fosse a única oportunidade, uma escada, para conseguir entrar no mercado da dança. Foi interessante ouvir depoimentos das pessoas naquela noite e, principalmente, daquele advogado, que conversou com a gente [no fim das apresentações, no auditório Ibirapuera], que disse que aquelas alunas “vão ter visibilidade até para terem condições de dançar num musical da Cláudia Raia”. Como se dançar no musical da Cláudia Raia fosse o máximo, quase como para um ator entrar na Globo.

E como se houvesse uma estabilidade depois disso.

Mr. Purple: Exatamente.

Lady Blue: Quando se assiste, por exemplo, à São Paulo Cia. de Dança, que é uma companhia clássica, você percebe que a maioria dos bailarinos de lá são fruto desses festivais competitivos. A maioria ganhou prêmio, primeiro lugar, segundo lugar. Você vai assistir uma companhia profissional e o que observa? Um monte de bailarina que dança um balé da competição. Estão, o tempo todo, de olho em quem levanta a perna mais alta, uma série de elementos que foram promovidos pelo tipo de formação, se é que podemos chamar isso de formação, que construiu aquele tipo de bailarino que não tem relação com a música, porque não estudou isso, porque não tem formação de/em balé, tem formação em festival de competição. Então, elas estão muito mais interessadas em saber quantas piruetas elas fazem, do que qual é a relação que elas têm com aquela música e com a história daquele repertório que estão dançando. E, por mais que a direção busque essa relação, bate de frente com anos que a pessoa ficou dentro de um ambiente competitivo onde o que importava era a linha do pé e a altura que aquela perna levantava mais que a outra. Porque, fora isso, qual seria o critério para avaliar quem é o primeiro lugar e quem é o desclassificado?

Mr. Purple: Esses festivais desarticulam o fazer artístico, porque veja só: o que você consegue propor ou expor artisticamente em cinco minutos? Essa é uma das coisas. A outra é uma desarticulação política, porque se a pessoa começa a promover esse tipo de festival dentro de um discurso da formação, dentro de uma perspectiva de projetar futuros profissionais, é uma falácia, uma propaganda enganosa, porque isso não acontece. Isso fragiliza uma união para se exigir mais editais públicos para programas realmente sérios para dança no país. Desarticula um mercado para esses futuros artistas, coreógrafos. É um ponto de vista da dança que é um verdadeiro fosso, verdadeiro abismo entre o que é se articular politicamente para a dança ou até mesmo dentro de um trabalho artístico, promovendo um discurso de realmente conseguir atingir um êxito em relação a se colocar na dança como área de conhecimento e, em seu contrário, ser simplesmente um divertsiment, um entretenimento, que é muitas vezes para agradar o pai, a mãe. Esses estudantes, na maioria das vezes, não continuam na profissão; quando chegam no momento de escolher, vão para outras áreas de atuação: medicina, direito, odontologia, etc. Então, acaba que essas pessoas não veem perspectivas profissionais dentro da área da dança, por conta da desarticulação política que esse contexto competitivo gera.

Lady Blue: Fazendo um paralelo disso com as produções independentes de dança, a primeira coisa que um diretor de festival competitivo pode questionar é: “ah, mas vocês competem nos editais; vocês estão concorrendo em edital do mesmo jeito que a gente compete.”. Mas nós não estamos usando o discurso da formação e educação para competir no edital, porque não são editais voltados para escolas.

 

E quanto ao festival de Joinville? Por que vocês são contra?

Lady Blue: O problema do festival de Joinville é que ele cola na competição um discurso de formação, educação, sendo que está muito mais conectado ao esporte do que à arte. Quem fica em segundo, terceiro lugar ou é desclassificado, acaba ficando desvalorizado e não sei até que ponto é mais ou menos desvalorizado do que aquele que ganhou primeiro lugar. Porque se a gente está falando de processo educacional, qual é o critério que desclassifica alguém? Como avalia quem está fora e quem está dentro?

Mr. Purple: Outro ponto que se deve questionar é: você reparou que, ao longo da noite, havia uma voz off anunciando as pessoas famosas que já participaram, o número de participantes, número de público? Se isso fosse realmente eficaz, se gerasse uma grande produção de arte, todo ano seria lançada uma companhia nova no festival de Joinville. Haveria um novo Quasar, Sandro Borelli, um novo solista, uma Marta Soares, ou até mesmo, desencadearia novos festivais. Haveria mais pessoas pensando e fomentando a dança, porque a questão numérica é tão volumosa, que todo ano haveria uma companhia nova de balé, dança contemporânea, o que seja. Nesses anos todos que o festival de Joinville acontece, qual é a companhia ou grupo que representa Joinville? A Escola Bolshoi não surgiu a partir de uma produção de conhecimento gerada pelo festival.

Importou uma filial da Rússia.

Lady Blue: Nesses muitos anos se poderia, sim, ter sido criada uma escola ou uma companhia. E existem festivais de dança que não são competitivos, que mobilizam a dança nacional e internacionalmente, porque acabam atraindo curadores, que é uma oportunidade de eles verem várias coisas de uma só vez.

Mr. Purple: Quais são as redes e conexões que o festival fez ao longo desses anos? Fomenta que perspectivas para a dança no país? Quem participa, quem ganha prêmio, se torna um bailarino de exportação.

Lady Blue: Nós somos a favor da continuidade desse festival, mas contra esse forma de existir. Gostaria muito que se refletisse sobre outra maneira de existir, mais sustentável, viável, tanto para quem está participando como para quem está produzindo.

As perguntas que ficam são: por que o festival de Joinville insiste no formato de competição, cobrando essas taxas das academias, mobilizando as escolas dessa maneira, se tem tantos incentivos? Por que precisa ser esse comércio? Por parte das academias: não haveria outra forma de sustentar os professores e a escola, com outras ideologias? Por que não deixa isso para as academias de ginástica e natação? Por que tem que ser isso com a dança? Eu não ouço falar em escolas de teatro competindo. Que história é essa que a dança carrega que detona com o que ela tem de artístico?

Infelizmente as academias não buscam outra forma de existir e, com isso, prejudicam os alunos. Se pensassem em outra saída já teriam, juntas, estabelecido políticas educacionais, que promovessem estudos mais aprofundados em sua formação. E isso não acontece só na relação das escolas com os festivais competitivos, até nas universidades tem gente que termina e não sabe o que fazer.

 

Vocês conhecem alguma formação diferente?

Lady Blue: Existe outra maneira de formar, que não está vinculada à competição, como por exemplo o projeto dirigido pelo professor Sacha Svetloff, em São Paulo. Os estudantes de sua escola não participam de festivais competitivos, somente de mostras, e só dançam quando vão apresentar trabalhos criados no próprio núcleo. Cerca de 90 crianças e adolescentes fazem aulas gratuitamente. Elas entram às 14h e saem às 20h. Nesse período, elas têm aula de balé, dança moderna, Forsythe, música, história da arte, vivências sobre o comportamento artístico. O problema é que do dia pra noite o projeto pode não existir mais, porque depende de editais, patrocínio de instituições.

Esse projeto visa à profissionalização?

Lady Blue: Sim. Quando eles completam 18 anos, eles precisam, ainda, de quatro anos em vivências profissionais para fazerem concurso para companhias profissionais.

 

Como foi a experiência no auditório Ibirapuera, durante a “noite dos campeões”?

Mr. Purple: Eu acredito que provocamos transgressões com elegância. Só a nossa presença já gerou uma transgressão. Naquela noite quisemos que as pessoas se perguntassem quem somos nós, de que planeta viemos. O movimento que fizemos foi o que qualquer pessoa na plateia poderia ter feito: trocar de cadeira, ir ao banheiro, mudar de lugar, levantar sem bater palmas. Não mexemos na estrutura do que aconteceu no palco com os artistas; movimentamos na plateia. Acho que a grande interrogação que o público fez foi: “que é que essas figuras especiais estão fazendo assistindo à minha apresentação?” A transgressão com elegância está aí, como uma rainbow action, uma ação arco-íris. Não é violenta, não é agressiva.

Lady Blue: Tem aquela pergunta sobre se existe um pote de ouro no fim dos arco-íris.

Mr. Purple: O que queremos mostrar é que não existe. As cores existem, mas não existe a ilusão. Estamos empenhados, como super-heróis, em não permitir que as pessoas se iludam na dança. Existe uma ação colorida que realmente está dentro de uma questão de esperança, não no sentido romântico, mas como potência de mudança para algo melhor.

Lady Blue: Melhor pra todo mundo, até pra curadoria. Acho que eles próprios devem passar por situações difíceis por conta dessa política. É que, pode parecer clichê dizer, mas a união faz a força e sozinho parece impossível mudar. E as pessoas não se juntam.

Mr. Purple: Nós não estamos interessados em uma revolução, somos piratas, queremos levantar questões, provocar e dar visibilidade a problemáticas da dança. Se a mudança não é uma escolha é uma condição, sempre temos esperança de que o meio da dança mude para algo melhor.

Lady Blue: Nós aparecemos quando o bicho está pegando para dar visibilidade a esse bicho.

 

O que vocês têm a dizer para aqueles que participaram e participam desse festival?

Lady Blue: Primeiro que, quando estava fazendo a intervenção, me preocupei muito em não interferir nas pessoas que estavam em cima do palco. Porque são pessoas que vivem o mundo da fantasia, de uma ilusão. Tentei respeitar isso, porque se trata de jovens que não têm dimensão do entorno que alimenta a indústria do festival competitivo. Além disso, tenho diversas perguntas a fazer a eles:

– Pegue um exemplo de uma academia que frequenta o festival de Joinville, desde a década de 1980, e veja o que aconteceu com ela e com os alunos que a frequentam. É isso o que você quer pra você?

– De fato, qual é o ganho de se receber algum prêmio nesse festival?

– Pensem bem se esse festival existiria se você não pagasse mais essa taxa de inscrição. E se você cobrar o ônibus, a hospedagem e a alimentação para o seu grupo ir para esse festival, eles pagariam?

– Perceba se há outro lugar para dançar onde seu grupo tenha outra visibilidade que dê mais ganhos.