Movimento feito de livros

É conhecida a adaptação que Petipa fez dos contos de fadas — “A bela adormecida”, “O quebra-nozes”, “Cinderela”, “Barba-azul”, “O espelho mágico”. Também são conhecidos os Ballets Russos de Diaghilev, “As mil e uma noites” e “Scheherazade”, com coreografia de Fokine. São muitos os casos clássicos de tradução de obras literárias. Numa enumeração aleatória, pouco rigorosa em termos históricos, estilísticos ou formais: Theóphile Gautier foi traduzido em “Le spectre de la rose” de Fokine, que também traduziu, com Nijinsky, “L’après-midi d’un faune”, de Mallarmé. Martha Graham traduziu as tragédias gregas nos espetáculos “Cave of the Heart” (Medéia), “Errand into the Maze” (Minotauro), “Night Journey” (Jocasta/Édipo Rei), “Clytemnestra”, “Alcestis”. José Limon traduziu “Otelo” de Shakespeare em “Moor’s Pavane”. Mais recentemente, Pina Bausch e Maguy Marin traduziram os contos de fadas “Barba Azul” e “Cinderela”, respectivamente.

Entre nós, também aleatoriamente enumerados, há o solo “O Homem de Jasmim”, de Marta Soares, que é uma tradução da obra homônima da escritora alemã Zurn. Clara Trigo traduziu a obra do poeta Manoel de Barros em “Idéias de teto”. Márcia Rubim traduziu Katherine Mansfield em “Algumas maneiras de dizer sim”. Vera Sala traduziu “A hora da estrela” de Clarice Lispector em “Estudo para Macabéia”. Mariana Muniz traduziu a obra de Ferreira Gullar em “Túfuns” e Florbela Espanca em “Dantea”. Elizabeth Finger traduziu o programa teórico-estético da poesia concreta em “construção para movimento concreto” e “frases”. “Hyperbolikós”, da Cia Corpos Nômades, é uma tradução de Paulo Leminsky. “Joaquim Maria” e “Santa Cruz” são traduções de Machado de Assis feitas por Márcia Milhazes. Gilsamara Moura traduziu “Macunaíma”, de Mario de Andrade, em “Ursa Maior”. Sandro Borelli traduziu a obra de Kafka — “O Processo”, “A Metamorfose” e “O Abutre”. “+ simples” de Ana Vitória é uma tradução de “Seis propostas para o próximo milênio” de Ítalo Calvino. O “Auto do Estudante que se Vendeu ao Diabo” é tradução do cordel de João Athayde realizada pelo Grupo Grial. Kleber Lourenço traduziu um poema de Murilo Mendes em “Jandira”, e o livro “Contos Negreiros” de Marcelino Freire em “Negro de estimação”. Regina Miranda traduziu Antonin Artaud, em “Heliogábalo, o anarquista coroado”, e o poeta persa Jellalludin Rumi.”Em cima da hora” de Carlota Portella é uma tradução de Clarice Lispector, de “A hora da estrela”, “Água viva” e “A imitação da rosa”.

A lista acima pode facilmente ser duplicada, talvez triplicada, tão corrente é a atividade de tradução intersemiótica (especialmente de obra literária) em dança.[1] Apesar disso, pouca teoria, pouca discussão, e pouca crítica, são dedicadas à atividade. Por quê? O fenômeno de tradução intersemiótica é difícil de caracterizar e de comparar com fenômenos correlatos (por exemplo, tradução interlinguística). Como envolve sistemas de natureza bastante distintos, sua análise cria dificuldades adicionais a qualquer abordagem crítica ou teórica comprometida com a materialidade, com a lógica, das operações sígnicas, com os processos de linguagem. Uma abordagem deste fenômeno pode ser dotada de especulações sobre problemas interessantes, de contextos gerais em que são concebidas as traduções, à filiação histórica de uma certa tradução, ambientes técnico-científicos, estéticos e filosóficos, etc. Tudo isso é importante e deve ser feito. Mas, nessas abordagens, o que é mais crucial está perdido: a lógica envolvida no processo de tradução, as operações sígnicas em jogo.

Quando se traduz, de um idioma para outro, uma obra literária, por exemplo, um poema, os problemas sobre como recriar certas estruturas formais (desenho rítmico, padrões sonoros, estruturas sintáticas, efeitos semânticos, pragmáticos e outras propriedades) são bastante complicados. Acabamos de usar o termo “recriação” porque é de fato o que alguns tradutores-ensaístas preferem. Haroldo de Campos, por exemplo, fez uso de diferentes expressões para designar uma prática criativa de tradução, atenta à “materialidade” do signo traduzido: transcriação (Campos 1972: 109; 1986: 7), transposição criativa (Campos 1972: 110), e reimaginação (Campos 1972: 121), são algumas delas. A passagem de um idioma a outro não consiste, na tradução criativa, em ser um deslocamento de estruturas, mas um tipo de transformação estrutural. E quando se trata de uma tradução intersemiótica? Recriado em um sistema distinto, com componentes, leis, e história próprias, há quem inclusive duvide que se possa tratar de “tradução” (Eco 2007).

A noção de tradução intersemiótica foi definida pelo linguista Roman Jakobson (1959) como transmutação de signos, de um sistema semiótico em outro sistema, de diferente natureza. Para estabelecer uma distinção, de modo preliminar, entre diferentes práticas, propomos duas modalidades: “ilustrativa” e “crítico-criativa”. A primeira refere-se à tradução que privilegia o deslocamento de componentes da obra traduzida; a segunda, à transformação desses componentes. Propomos, adicionalmente, duas categorias: “transposição” e “recriação”. No primeiro caso traduz-se aquilo sobre o qual certa obra se “refere”, ou uma “atmosfera geral” ou as “motivações psicológicas” de um autor, de um período estilístico, etc. A “recriação”, de outro lado, concentra-se na tradução de estruturas e procedimentos formais. Pode-se associar essas subdivisões, por exemplo, em casos de recriação ilustrativa ou de tranposição crítico-criativa. Entretanto, o que é facilmente generalizado como prática de tradução intersemiótica mais frequente são casos de “transposição ilustrativa”, onde facilmente observa-se uma “obra comentada”. De outro lado, traduções crítico-criativas costumam envolver casos de recriações de “procedimentos formais” e de “estruturas formais”. A primeira concentra-se em estratégias de composição, em meios identificados, e selecionados para construção de estruturas formais. Recriar um procedimento equivale a recriar uma estratégia usada por um autor, grupo ou período, para construção de certas estruturas, e podem ser autorais, ou programáticas, quando são identificadas características de um período, ou estilo. Estruturas, por sua vez, se referem mais propriamente aos componentes manipulados, à materialidade sígnica sobre a qual opera a tradução.

Um caso não muito recente, mas exemplar, de uma vertente sobre recriação de estruturas formais, que merece destaque entre nós, é “A carne dos vencidos no verbo dos anjos” (Cena 11, 1998). De acordo com o programa, “a performance […] se servirá da fisicalidade unida a textos microfonados, projeção de slides e utilização de objetos cênicos para comunicar, através da coreografia, a plasticidade, ritmo e estilo que emanam da obra poética de Augusto dos Anjos”. O release informa como o Cena 11 atua sobre a poesia de dos Anjos, indicando metalinguisticamente, de forma direta, alguns “níveis de descrição” que recria — ritmo e estilo. Parece evidente que aquilo que o Cena 11 pretende traduzir não é uma temática geral observada na obra do poeta. Ao invés de “transpor” um tópico geral de sua poesia para a dança, o grupo recria, através da “fisicalidade unida a textos microfonados, projeção de slides e utilização de objetos cênicos”, princípios e estratégias constitutivas da poética de dos Anjos. Tal projeto parece enfaticamente comprometido com uma versão crítico-criativa da atividade de tradução intersemiótica.

Uma notável dificuldade, quando se trata de tradução intersemiótica, refere-se ao tipo de comparação que pode-se fazer entre sistemas semióticos muito distintos. Se uma tradução, digamos, uma adaptação, de obra literária implica uma modificação de materiais e estruturas muito diferentes, como comparar “fonte e alvo semióticos”? Estabelecemos um pressuposto aqui: uma tradução, seja de que natureza for, opera em diferentes “níveis de descrição”, selecionando propriedades ou aspectos relevantes do objeto traduzido. Assim, certos níveis, por exemplo, rítmico, sintático, semântico, estrutura narrativa, ambientação psicológica, histórica, etc, são traduzidos em outro sistema e material, por exemplo, em qualidade e dinâmica de movimentação, organização espacial, iluminação, figurino, cenografia, etc. Mas, uma vez que não se estabelece facilmente uma relação de mapeamento entre níveis de descrição de diferentes sistemas semióticos, torna-se um problema identificar e analisar o par “fonte-alvo”, como traduzido-tradutor. (Esta não é uma dificuldade característica dos casos de tradução interlinguística, porque há um pareamento, uma correspondência aproximada, de níveis, entre idiomas diferentes – fonético-fonético, sintático-sintático, semântico-semântico.) Dois esclarecimentos: o que estamos chamando de nível de descrição é um artefato conceitual, um modelo funcional, com um poder heurístico interessante para entender um fenômeno bastante complicado. Não significa, portanto, que estes níveis estão “claramente” distribuídos em termos hierárquicos na obra traduzida ou na obra tradutora. Também não significa que atuam independentemente. Mas em termos descritivos, e funcionais, possuem certa autonomia, e estão coordenados em termos de restrição e dependência. Assim, embora se possa descrever “organização espacial” sem se referir diretamente à “dinâmica de movimentação”, sabemos como são fortemente dependentes.

De qualquer forma, deve-se poder responder a questão: o que significa traduzir um signo, ou complexo sígnico, em outro sistema semiótico, ou processo de linguagem? São estas algumas premissas: uma tradução é, primordialmente, uma operação semiótica, uma operação com signos. É óbvio que uma tradução é também um fenômeno cultural, ou de trans-culturação, uma vez que é sempre datada e situada (Torop 2002, 2007; Eco 2007: 34), e é também um fenômeno cognitivo, porque requisita do tradutor diversas atividades cognitivas. Mas não nos interessam aspectos psicológicos, cognitivos, sócio-culturais, históricos, etc, embora a tarefa de tradução naturalmente os envolva. A razão pela qual não nos interessam é simples: tais aspectos não explicam como a tradução é feita. Outra importante premissa, relacionada ao que acabamos de chamar de “nível de descrição”: se processos semióticos são multi-estruturados (multi-level systems), como defendemos em outros trabalhos (ver Queiroz & El-Hani 2006), uma tradução é um tipo de relação (semiótica) entre processos multi-estruturados. (Insistimos nisso, mesmo sabendo das complicações para comparar níveis de descrição de naturezas muito distintas. Não poderemos desenvolver aqui este problema, porque exige mais espaço.)

Uma última premissa. Tem sido (translation studies) sugerido, como um princípio constitutivo da tradução, a noção de equivalência. Defendemos que uma construção adequada deste princípio deve estar fundamentada na noção de “semiose icônica” (Aguiar & Queiroz, em prep.). Muito sumariamente, este princípio (equivalência) é usado para descrever o tipo de relação que se estabelece entre traduzido e tradutor. Diversas sub-divisões desta relação têm sido usadas para explicar o modo como eles estão relacionados (Kenny 2001). Discutimos (Queiroz & Aguiar, prelo) diferentes tipos de relações para descrever o princípio de equivalência que opera entre fonte e alvo, em casos de dança: fisiognômico (ou figurativo) e estrutural; icônico, indexical e simbólico; metafórico e metonímico; imagético, diagramático e metafórico.[2] São algumas sugestões para explorar.[3]
Para uma discussão

Há, no cenário criativo de dança, uma notável influência de práticas de tradução inter-semiótica, envolvendo poesia e literatura, teatro, música, cinema, etc. Quando exercida na forma literatura > dança, seus modos de realização operam com frequência em um ambiente descrito metalinguisticamente (releases, entrevistas) como de “inspiração temática” sugerida pela obra, que chamamos aqui de “transposição ilustrativa”. Há uma bateria de noções e termos, identificados com as práticas de tradução: ‘re-leitura de’, ‘inspirado por’, ‘baseado em’, ‘orientado por’, ‘a partir de’, etc. (A aplicação desta bateria não segue qualquer critério além daqueles vernaculares, encontrados em dicionários.) Mas não parece haver, no cenário teórico sobre dança, qualquer preocupação ou sistematização sobre tradução para dança de poesia/literatura, segmento ou estrutura da obra, ou estratégia relacionada a sua construção, de forma rigorosa, em um ambiente de investigação semiótica (e relacionada a translation studies).

O fato é que tradução intersemiótica é um fenômeno complexo e desafiador, e continua mal explorado, ou é explorado superficialmente, especialmente porque não dialoga com uma tradição consistente de estudos sobre tradução, em geral[4]. Não há descrições interessantes do fenômeno, com certo nível de detalhamento, capaz de distingui-lo de práticas próximas ou similares (por exemplo, intersemiose); não há tipologias que orientem a distinção de diversas práticas, conforme suas naturezas (adaptação, inspiração, etc, de obras literárias); não há qualquer generalização de leis observadas nos fenômenos analisados e, uma vez que não há generalização, não há forma de comparação com fenômenos descritos em linguística teórica, semiótica geral, ou semióticas aplicadas (semiótica do cinema, música, teatro).

Defendemos aqui uma abordagem do fenômeno baseada em estudos sobre tradução (semiótica, translation studies), e sugerimos uma divisão preliminar em classes e modalidades capaz de distinguir diferentes práticas de tradução intersemiótica. O que pode ser observado, e facilmente generalizado como prática de tradução intersemiótica mais frequente é o que chamamos acima de “transposição ilustrativa”. Contrapusemos a esta prática a noção de “recriação crítico-criativa”. Além disso, defendemos a premissa de que traduções envolvem relações entre sistemas multi-estruturados. Isso deve aumentar a precisão das descrições e análises dos estudos sobre tradução intersemiótica.

Nosso cuidado para abordar este tópico decorre de dois importantes fatores: além de não haver uma clara distinção entre formas mais conservadoras de tradução e exemplos de tradução criativas, não há ainda teorias e modelos capazes de generalizar as operações de tradução intersemiótica, muito menos em casos de dança. Supomos que os resultados de uma abordagem deste tipo não sirvam somente à discussão acadêmica — uma prática de distinção e classificação de diversas modalidades de tradução deve levar a uma intensificação da pesquisa estética envolvendo tradução intersemiótica.

Agradecimentos: J.Q. e D.A. agradecem a Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB), ao Centro Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Fundação Nacional de Artes (FUNARTE), e a Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB) pelos apoios recebidos.

Referências
AGUIAR, D. & QUEIROZ, J. (em prep.) Topics on intersemiotic translation in dance. Sign Systems Studies.

CAMPOS, H. 1972. A Arte no Horizonte do Provável. Editora Perspectiva.

CAMPOS, H. & PAZ, O. 1986. Transblanco. Editora Guanabara.

ECO, U. 2007. Quase a Mesma Coisa. Editora Record.

KENNY, D. 2001. Equivalence. Em: Routledge Encyclopedia of Translation Studies. Mona Baker (ed.). Routledge.

JAKOBSON, R. 1959 (2000). On linguistic aspects of translation. The Translation Studies Reader. (ed. Lawrence Venuti). London & New York: Routledge, pp. 113-118.

LOBO, F. R. 2003. Signos em translação elementos para uma análise dos signos plástico-gestuais tradutores de “Carmen”, de P. Merimee, para a HQ e o balé. São Paulo. Dissertação de mestrado PUC-SP.

PETRILLI, S. 2007. Interpretive trajectories in translation semiotics. Semiotica 163 (1/4): 311-345.

PIRES, G. M. R. 2000. Macunaima somos nós Mario de Andrade: da literatura para a dançaa. São Paulo. Dissertação de mestrado PUC-SP

http://biblio.pucsp.br/teses/index.php?numero=62976 ;

PLAZA, J. 1987. Tradução intersemiótica. Editora Perspectiva.

QUEIROZ, J. & EL-HANI, C. 2006. Semiosis as an emergent process. Transaction of C.S.Peirce Society 42 (1): 78-116.

QUEIROZ, J. & AGUIAR, D. (prelo). Sobre tradução intersemiótica em dança. Congresso World Dance Alliance, 2007, UFBA.

TOROP, Peeter. 2002. Translation as translating as culture. Sign Systems Studies 30.2, 593-605.

__. 2007. Methodological remarks on the study of translation and translating. Semiotica 163 (1/4): 347-364.


[1] Agradecemos a Sônia Sobral, Sílvia Soter, Roberto Pereira e Leonel Brum pela indicação de muitas das obras mencionadas, e por colocar-nos em contato com diversos artistas envolvidos em tradução intersemiótica.[2] Estas divisões seguem algumas indicações. As duas primeiras, extraímos de Augusto de Campos, referindo-se “às perturbações tipográficas” de e.e.cummings (Campos 1986); as seguintes aparecem em Petrilli (2007), mais influenciada por Jakobson.[3] Está em desenvolvimento, em um trabalho mais recente (Aguiar & Queiroz, em prep.), uma abordagem deste tópico, com base em diversos estudos casos, em dança, e envolvendo como “sistema fonte”, literatura, artes visuais, e “paradigmas científicos”.[4] Há duas dissertações de mestrado que devem ser mencionadas, e consultadas, pela audácia de abordar de modo inaugural um tema tão complicado: Macunaima somos nós Mario de Andrade: da literatura para a dança de Gilsamara Moura, e Signos em translação — elementos para uma análise dos signos plástico-gestuais tradutores de “Carmen”, de P. Merimee, para a HQ e o balé de Francisco Renato Lobo. Consideramos, entretanto, superficiais, especialmente em termos teóricos, os dois trabalhos, uma vez que não travam um denso diálogo com a tradição mais consolidada sobre tradução interlinguística.