Treinamentos técnicos de dança e artefatos cognitivos

É fácil enumerar uma lista de questões quando o problema é ‘treinamento técnico de dança’. A noção ‘treinamento técnico de dança’ designa a prática de movimentos corporais orientada por princípios técnicos. Pode-se descrever tais práticas como atividades reguladas de/por técnicas, como balé clássico, Martha Graham, Doris Humphrey, Limón; sistemas de treinamento corporal, como o sistema Laban; ou ainda métodos de abordagem corporal, como a educação somática. As questões envolvem problemas de aprendizagem, de natureza das técnicas, de relações com a atividade criativa; há questões histórico-sociais, estéticas, cognitivas etc etc etc. Trata-se de um tópico controverso.[1] Nossa idéia aqui é introduzir mais lenha a este acervo. Segundo nossa argumentação, o bailarino, coreógrafo ou intérprete-criador, ou o que eles são capazes de conceber ou fazer, resultam de uma parafernália de material não-biológico ‘acoplado’ a seus corpos-mentes, material formado por ‘artefatos cognitivos’.[2] Artefatos são coisas que amplificam e modificam a ação, criando domínios de problemas e espaços de soluções concebíveis – “por meio destas coisas, situo-me neste espaço, ‘onde’ posso imaginar, conceber, e resolver, tais e tais problemas”. Os treinamentos técnicos são coleções de artefatos mais ou menos codificados. A aprendizagem de uma técnica significa, em termos gerais, o acoplamento de uma, ou muitas, coleções de artefatos. O argumento é simples, embora não sejam triviais suas conseqüências. Os treinamentos técnicos de dança são coleções de artefatos acoplados à mente-corpo de seus usuários, mudando radicalmente suas atividades, e criando ‘atalhos’ para execução de muitas tarefas. Mais radicalmente, os treinamentos criam espaços de problemas, e formas de interpretá-los e resolvê-los. O dançarino, ao acoplar artefatos, entende (ou simplesmente é capaz de atuar em) um certo domínio de problemas, podendo alterá-lo, ao se ‘equipar’ com possíveis soluções.Para Andy Clark (2003: 3; 2006), o filósofo que sistematizou recentemente o tema dos artefatos, humanos são ‘ciborgues’ inatos (natural-born cyborgs) porque nascem com competência para acoplar artefatos não-biológicos a seus corpos-mentes para solucionar toda classe de problema. Os artefatos modificam as ações no ambiente; amplificam ou intensificam habilidades inatas, podendo alterá-las dramaticamente. Estão entre os artefatos que humanos acoplam: lápis e papel, notações, mapas, modelos, sinais, calendários, ábacos, calculadoras, computadores, internet, celulares, GPSs, cadernos de rascunhos, telefones celulares, algarismos arábicos, bússola, e muitos outros, incluindo a linguagem.

Por que treinamentos técnicos de dança são coleções de artefatos cognitivos e qual a vantagem desta perspectiva? Começamos por outra pergunta: quais são os problemas que as técnicas, e os treinamentos técnicos de dança solucionam ou pretendem solucionar? Os treinamentos, em termos gerais, criam ‘atalhos’, coerções e restrições para a aprendizagem, para a execução e para a criação de dança. Eles funcionam como atalhos para o aprendizado de novos artefatos, para a execução (no palco ou na sala de aula) de coreografias, ou estruturas de improvisação de movimento, e para a criação, tanto de novos artefatos em aulas de dança, quanto de movimentos ou sequências para obras de dança. Estas três tarefas (aprendizagem, execução e criação) são, ou apresentam, de forma geral, os ‘problemas’ e, ao mesmo tempo, as ‘oportunidades’, criados pelos treinamentos técnicos. Há aqui uma espécie de looping causal entre os problemas criados pelos treinamentos técnicos e as soluções resultantes de suas aplicações. Os artefatos conferem existência aos problemas, materializam os problemas e, ao mesmo tempo, criam condições para que sejam abordados.

Vejamos rapidamente dois exemplos. O balé clássico parece satisfazer convincentemente alguns requisitos que definem treinamento técnico como coleção de artefatos, devido a sua sistematização em passos. As coreografias são combinações de passos. Os passos, como artefatos, quando aprendidos, agem como atalhos para a execução e para a criação de coreografias. Além disso, há um gradiente de complexidade embutido em diversos momentos da aprendizagem. O dançarino começa pelo que é mais simples, que uma vez aprendido não precisa ser ‘pensado’ para produzir execuções precisas. E não é necessário se preocupar com a execução do que é mais simples quando ele faz parte de algo mais complexo. Menos óbvia, entretanto, é a idéia de que, por exemplo, o contato-improvisação também resulta de uma coleção de artefatos, de atalhos para solução de problemas. O motivo pelo qual é menos óbvio é que o contato-improvisação não é constituído por sistemas de passos, mas por ‘regras de restrição’. Neste caso, os artefatos não são ‘passos’. E o treinamento técnico deve basear-se em protocolos distintos da rotinização de padrões de movimento. Algumas das restrições são: ‘mudança de pontos de contato entre corpos; percepção por meio da pele; (…) percepção interna do movimento; ênfase no peso e no fluxo; rolamento ao longo do corpo; uso do espaço em 360 graus; tácita inclusão da platéia; (…) improvisação desprovida de intenções dramáticas’ (NOVACK 1990 apud LEITE 2005: 99). Nesse tipo de treinamento, as restrições são artefatos para execução e produção de movimentos. Isso significa que, através de restrições, o dançarino constrange, como no balé clássico, suas ações. Mais do que isso, através de restrições são criados espaços concebíveis de ações. Dessa forma, mover-se sob a restrição da ‘percepção interna do movimento’, por exemplo, cria limites para as ações que podem ser feitas. Em geral, no contato-improvisação, exercícios que ampliam e refinam percepções sensoriais, como a sensação do peso do corpo, o controle sobre relaxamento e tensão muscular (tônus), direções ósseas etc. auxiliam na aprendizagem de novos artefatos e permitem que problemas associados a contra-peso, carregamentos, deslizamentos, apoios, vôos etc. possam ser tratados, sob improviso. Desta forma, controlar o peso corporal de modo não-ordinário é um exemplo de como a ampliação de percepções sensoriais, sob a ação de restrições, criam oportunidades através do treinamento. O conhecimento e a exploração de alavancas do corpo, orientados por restrições também constituem artefatos neste contexto.

Como o acoplamento de artefatos cognitivos está relacionado com as criações em dança? Pode-se orientar essa pergunta na direção de programas ou sistemas estéticos (balé romântico, dança moderna americana, expressionismo alemão etc.), do coreógrafo ou do dançarino (executor ou criador). Os artefatos, além de amplificarem habilidades, direcionam e agem, como insistimos, como restrições para a ação. Assim operam os treinamentos técnicos de dança. Eles agem de forma coercitiva, em conjunto com outros artefatos (cenografia, iluminação, história etc), em diferentes escalas de tempo (dias e meses, décadas etc). Este aspecto é relevante para descrever as relações entre treinamentos técnicos e criações de dança. Mais uma vez, os artefatos agem como coerções daquilo que pode, ou não, ser criado pelo dançarino ou coreógrafo. São, ao mesmo tempo, restrições de ação e atalhos para novas ações. A relação entre programa estético e técnica não é de determinação unívoca. A técnica, através de artefatos, fornece um escopo de possibilidades para a criação, que provavelmente sequer teria sido imaginado sem ela. O treinamento técnico não é, portanto, apenas uma forma de resolver problemas estéticos, mas é uma abertura e uma restrição para realizações estéticas.

O que mais importa à argumentação é que os treinamentos técnicos de dança, e seus artefatos, constrangem a ação de coreógrafos e dançarinos em diferentes níveis. Dessa forma, deve ser possível analisar as coerções do treinamento sobre o desenvolvimento de um programa estético, sobre a construção de uma coreografia, pela perspectiva do coreógrafo, ou do dançarino que executa ou cria. Além disso, uma técnica aprendida constrange o aprendizado de uma nova técnica. (Isto não pretende nutrir a metáfora de que os treinamentos ‘prendem’ dançarinos e coreógrafos, ou que deve-se buscar qualquer espécie de dança ‘livre’, como se ela fosse possível.)

Quais as vantagens associadas ao uso deste modelo? Por que falar de artefato cognitivo pode ajudar-nos a entender a natureza dos treinamentos ou das técnicas de dança? Há diversas noções, conceitos, ou metáforas epistemológicas que podem ser usadas para descrever ou explicar treinamentos técnicos de dança, cada uma atribuindo ao fenômeno propriedades particulares. E sabe-se como é crucial a escolha de uma ou outra noção ou metáfora. Mais do que orientar as respostas, como artefatos (conceituais, teóricos) elas criam espaços de problemas. Ao adotar a noção de artefato cognitivo, problemas considerados de tratamento bastante complicado parecem de ‘solução trivial’, ou ‘pseudo-problemas’, muitos deles tradicionalmente equacionados como dicotomias: coerção versus criação, hábito versus invenção, dançarino livre versus dançarino adestrado, técnica versus expressão etc. Por exemplo, o que chamamos de looping causal, uma propriedade considerada intuitivamente estranha, entre coerção e criação parece mais facilmente tratável sob o escopo dos artefatos. Outros problemas parecem ganhar complexidade, como uma descrição integrada de coerções multimodais (técnicas, cenografia, iluminação, história etc) operando simultaneamente em diversas escalas temporais (horas, dias e meses, décadas etc).

O ‘sucesso’ de um modelo depende, evidentemente, de sua eficácia em termos heurísticos, explanatórios, descritivos etc quando submetido à tarefa de enfrentar muitos casos e exemplos. O que fizemos aqui deve ser considerado apenas uma etapa inicial, bastante preliminar, de exposição de um modelo.
Referências bibliográficas

AGUIAR, D. & QUEIROZ, J. (em prep.) Dance techniques – cognitive and semeiotic approaches.

CLARK, A. 2006. Language, embodiment, and the cognitive niche. TRENDS in Cognitive Sciences 10(8): 370-374.

__. 2003. Natural Born Cyborg. MIT PRESS.

LEITE, F.H.C. Contato improvisação (contact improvisation): um diálogo em dança. Movimento. Porto Alegre, v.11, n.2, p. 89 – 110, maio/agosto de 2005.


[1] Aguiar tem explorado mais detalhadamente esta perspectiva em sua dissertação de mestrado. Em outro trabalho, Aguiar & Queiroz (em prep.) exploram diversas consequências associadas ao uso de diferentes modelos de técnicas de dança — ‘sistema semiótico’, ‘memes’, ‘informação’, e ‘artefatos’.[2] Ao usarmos o termo ‘acoplamento’ nos referimos ao seu significado vernacular de ‘ação ou resultado de acoplar(-se), unir(-se) ou ligar(-se) formando uma unidade’ (cf. Dicionário Aulete Digital). Assim, ao dizer que os artefatos de uma técnica são ‘acoplados’ ao dançarino, afirmamos que há uma ligação entre dançarino e técnica tendendo à ‘formação de uma certa unidade’. O termo também é usado segundo uma acepção técnica, em teoria de sistemas dinâmicos (structural coupling), mas não poderemos explorá-la aqui.João Queiroz é diretor do Group for Research in Artificial Cognition (UFBA/ UEFS); http://www2.uefs.br/graco; www.semiotics.pro.br; Daniella Aguiar é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Dança (UFBA);