Tudo começou | It all began

Quando ja havia começado. Havia uma afinidade entre eu e o Alejandro, quanto aos nossos modos de pensar a dança. Uma identificação reconhecida lá no primeiro ensaio que assisti do Grupo (Novo Cangaço) e retroalimentada desde então. Até que, em 2002, Alejandro me convidou para ser orientadora do projeto que o Grupo Cena 11 começava a desenvolver, com o patrocínio da BrasilTelecom: o projeto skr.

Tratava-se de uma proposta de criação coreográfica que seria desenvolvida por meio de procedimentos correspondentes aos diferentes enfoques acerca do assunto que interessava ao grupo tratar – o comportamento e a sua relação com as idéias de liberdade, condicionamento, manipulação. No procedimento 01, o grupo estabeleceu três parâmetros de investigação – sujeito e objeto, homem e máquina, controle e comunicação – para formular coreograficamente a sua hipótese acerca da autonomia do sujeito na estruturação de seu comportamento.

Naquele momento, havia uma coreografia já pronta e a sua montagem cênica prestes a estrear. Mas havia também um interesse por situá-la de modo diferente na relação com a platéia, para incluir a participação do espectador na investigação daqueles parâmetros. Tratava-se de um propósito artístico que requeria uma formatação cênica diferente daquela habitualmente executada como debate após o espetáculo, para não incorrer nos dois riscos mais indesejados por Alejandro: virar uma caixinha de sugestões ou um jogo de batalha naval com a platéia, cada um dando seu chute pra ver se bombardeia o suposto alvo escondido no trabalho apresentado.

Eis como começa a ganhar forma uma idéia de parceria colaborativa entre eu e o Grupo Cena 11: como um processo co-adaptativo entre as nossas especialidades – artística e acadêmica -, na busca de soluções para estruturar os formatos em coerência com as idéias. Sem métodos nem sistemáticas previamente definidos, numa dinâmica auto-organizativa, a convivência nos encontros foi, aos poucos, estabelecendo maior intimidade de pensamento e comportamento. A ponto de contaminarem-se mutuamente os discursos e atitudes de ambos os lados acerca do projeto, de tal modo que se fortaleceram não as nossas supostas autorias personalistas daquelas idéias e procedimentos, mas antes e acima de tudo, as propriedades caracterizadoras do projeto que desenvolvemos juntos e do argumento que partilhamos. Começava a se explicitar no processo aquilo o que se tornaria a principal formulação conceitual, gerada coreograficamente no processo investigativo do grupo desde o procedimento 01 e exacerbada no espetáculo skinnerbox: uma idéia que nomeei de causalidade espalhada e que aparece na dança criada pelo grupo como um fator de organização dos processos e eventos, uma lógica difusa de conjugação das idéias, movimentos e cenas, que sugere nexos de codeterminância entre as coisas relacionadas, mesmo que espacial e temporalmente remotas, desencaixando os pares ordenados de causa e efeito.

Depois da estréia no RJ, em que tivemos a primeira oportunidade de testar publicamente a receptividade a uma proposta de participação orientada, percebemos a necessidade de criar estratégias bem mais incisivas de controle das regras e assumir corajosamente uma proposta (impopular) de participação conduzida – tal foi o grau de dispersão da platéia em relação ao exercício proposto.

A partir dessa experiência, compreendemos que seria preciso formular uma estrutura de apresentação cênica que fosse capaz de acolher certo teor de interferência do público não como parte definidora do processo criativo, mas como uma variável da própria experiência de controle dos fatores selecionados para interagir no procedimento.Estávamos entrando no vespeiro. Combateríamos frontalmente a mais tediosa (e poderosa!) tendência comportamental do espectador atual: a de agir como um consumidor turista (como bem observou nosso amigo Ângelo Madureira), que se sente no direito de cobrar das coisas que compra a satisfação das suas expectativas consumistas de obter prazer sem esforço. ÿvido por consumir, esse tipo de espectador esqueceu de perceber que o que a arte lhe propõe são experiências que lhe solicitam o exercício trabalhoso de reorganização das suas percepções e convicções.
Daquele interesse inicial por criar uma situação de apresentação cênica que nos permitisse obter dos espectadores alguma resposta, em tempo real, a uma provocação a que fossem submetidos, chegamos à idéia de provocá-los com uma pergunta que deveria ser respondida por escrito, num tempo determinado. E, decidimos reservar um terceiro momento da mesma experiência para uma discussão orientada por mim e pelo Alejandro, com a platéia, acerca dos parâmetros trabalhados pelo grupo. Assim, o procedimento 01 foi estruturado em três fases diferentes e complementares que propunham ao espectador três modos distintos de interagir com as informações envolvidas no projeto, de modo que o próprio comportamento do público frente à proposta fosse mapeado em tempo real. Os cartões com as perguntas foram ensacados em plástico transparente juntamente com uma caneta e eram distribuídos logo após a explicação gravada em áudio, que entrava assim que a coreografia terminava sem dar tempo para aplausos. E a discussão dos parâmetros iniciava-se quando o cronômetro projetado na tela completava a contagem regressiva de 7 minutos.

Com esse formato, conseguimos incluir a participação da platéia no processo investigativo do projeto skr como mais uma variável do experimento para ser considerada no processo de elaboração do skinnerbox, não como elemento incluído na composição cênica, mas como estímulo de radicalização do desafio proposto de construir coreograficamente uma situação que se assemelhasse à estrutura laboratorial da caixa de Skinner, mas que, no entanto, revelasse sua própria contradição interna: quanto mais rígido o controle das condições de interação modificadoras do comportamento, mais explícito fica o campo para a dita liberdade se manifestar.

Como pressuposto do skinnerbox, está a noção de que em sistemas organizados é o próprio comportamento interativo, seja de robôs, corpos humanos, objetos, imagens e estruturas musicais, que formula seu espectro de possibilidades modificadoras. A liberdade não é mais do que o gradiente de autonomia do sistema para gerenciamento das suas próprias regras.
As discussões gravadas e os cartões recolhidos em cada uma das mais de 30 apresentações realizadas em várias cidades do país, ao longo de dois anos, e nas 2 apresentações realizadas em Berlim, forneceram um mosaico impressionante das idéias e hábitos de comportamento dominantes como padrão de resposta frente aos temas conduzidos pelo procedimento 01, e percebemos que a formulação corporal e cênica alcançada pelo grupo na sua investigação dos parâmetros homem e máquina / sujeito e objeto / controle e comunicação alavancou um conjunto de metáforas poderosas como repertório cultural daquelas platéias, que nos pareceu deveras interessante para ser negligenciado como refugo da investigação. Pensando nisso, decidimos criar outros formatos, além da montagem coreográfica, para expandir os resultados do projeto e estruturamos o skinnerbox em 4 configurações: o espetáculo, um workshop de dança realizado por Alejandro, um workshop de idéias realizado por mim e pelo Alejandro e a publicação de um relatório a ser preparado por mim. Há ainda, um jornal distribuído nas apresentações do espetáculo, não para fazer as vezes de um programa que o explica, mas com a função de atuar como um campo de debate entre as suas idéias e outras correlatas, formuladas por integrantes ou não do grupo. Para configurar o espetáculo, foram realizados 5 procedimentos preparatórios, cada qual enfocando aspectos específicos do projeto skr, e nem todos apresentados publicamente. Procedimentos criados para investigar enfoques dispersos de uma hipótese condutora e daí convergir na configuração de um espetáculo que é, por sua vez, uma proposição sugestiva de outras hipóteses que daí se dispersam em configurações próprias. E tudo continua como sempre foi… reorganizando-se evolutivamente.

* Fabiana Dultra Britto: Crítica de dança, Prª Drª Coordenadora do Mestrado em Dança da UFBa.É orientadora dos projetos: embodied de Cristian Duarte (SP) e SKR procedimento 01, do Grupo Cena 11 (SC), e curadora do evento TEOREMA. Elaborou e coordenou o projeto “Mapa da Dança”, realizado pelo Rumos Dança-2000 do Itaú Cultural e idealizou e organizou o livro resultante: “Cartografia da Dança” (2003). Crítica de dança e Coordenadora do Mestrado em Dança da UFBa.Graduada em Dança pela UFBA, Mestre em Artes pela ECA-USP e Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP .When it had already started. There was affinity between Alejandro and I, how in the way we think about dance. An identification recognized back in the first rehearsal I attended (New Cangaço) and mutually fed since then. Until in 2002 Alejandro invited me to be the tutor of the project Cena 11 started to develop, with the sponsorship of the BrasilTelecom: Projeto skr. Was a proposal of choreographical creation that would be developed by means of corresponding procedures to the different approaches concerning the subject that interested the group – behavior and its relation with the ideas of freedom, conditioning, manipulation.

In Procedimento 01, the group established three parameters of investigation – subject and object, man and machine, control and communication – to choreographically formulate its hypothesis on the individual autonomy in behavior structure.

At that moment, there was a choreography ready to be on stage and about to be premiered. But the group also was interested in pointing out a different way to deal with the audience, to include the spectator participation in the investigation of the parameters in case. One artistic intention that required a format different from the usual debate after the performance, not to incur in Alejandro’s two unwanted risks: to turn the discussion into a suggestions box or a naval battle game with the audience, each one kicking an idea to see if bombs a hidden target in the presented work.

Here is how a colaborative partnership between me and the Cena 11 started to gain form: as a co-adaptative process between our specialties – artistic and academic – in the brainstorming to structure formats in coherence with the ideas. Without previously defined methods or systematics, in an auto-organizational dynamic, the meetings started to, little by little, establish an intimate proximity of thought and behavior. To the point were speeches and attitudes on both the sides concerning the project were in such way contaminated mutually that they fortified not our supposed personal authorship of those ideas and procedures, but before and above all, the properties of the project that we develop together and the argument that we shared.

It started to explicit in the process what would become the main conceptual formulation, generated choreographically in the investigative process of the group since Procedure 01 and exacerbated in the show Skinnerbox: an idea that I nominated as spread casuality and that appears in the dance created by the group as an organization factor of the processes and events. A diffuse logic of ideas, movements and scenes conjugation, that suggests nexuses of co-determination between related things, even if space and timely remote, dislocating the pairs of cause and effect.

After the premiere in Rio de Janeiro, where we had the first chance to publicly test the reception to a proposal of guided participation, we perceived the necessity to create strategies way more incisive of rules and control and to courageously assume a (unpopular) proposal of leaded participation – such was the dispersion of the audience during the proposed exercise. From this experience, we understood that it would be necessary to formulate a scenic structure that was capable to receive certain interference of the audience not as defining part of the creative process, but as an variable of the experience of control itself of the selected factors to interact in the procedure. We were entering in the wasps’s nest.

We would fight frontally the most tedious (and powerful) trend of the current spectator: to act as a consuming tourist (as our friend and creator Ângelo Madureira observed well), that feels entitled to ask all things he purchases the satisfaction of its consumer expectations to get pleasure without effort.
Eager to consume, this type of spectator forgot to perceive that what art offers is an experience that requires the laborious exercise of perceptions and certainties reorganization.

From that initial interest for creating a scenic situation that allowed us to get from the spectators some reply, in real time, to provocation they were submitted, came the idea to provoke them with a question that would have to be answered by writing, in a given time. And we decide to reserve one third moment of the same experience for a quarrel guided by me and Alejandro, with the audience, concerning the parameters worked by the group.

Thus, Procedure 01 was structuralized in three different and complementary phases that offered the spectator three distinct ways to interact with the project, in way that the behavior of the audience in response to the proposal could be mapped in real time. The cards with the questions have been wrapped in transparent plastic together with a pen and distributed soon after a recorded audio explanation is played as that the choreography was finished, leaving no time for applauses. The discussion on the parameters was initiated when the projected chronometer in the screen completed the countdown of 7 minutes.

With this format, we got to include the participation of the audience in the investigative process of the Project Skr as another variable of the experiment to be considered in the process of elaboration of Skinnerbox. Not as an enclosed element in the scenic composition, but as stimulaton to radicalize the challenge to choreographically construct a situation similar to the laboratorial structure of the Skinner Box, but that, however, disclosed its inner contradiction: the more rigid the control of the modifing conditions of interaction of the behavior are, more explicit is the field for the so called freedom to manifest itself.

In the core of skinnerbox is the notion that in organized systems is the interactive behavior itself, either of human bodies, robots, musical objects, images and structures, that formulates its modifying possibilities. The freedom is not more than the gradient of autonomy in the system for managing its own rules.

The recorded discussions and cards collected in each one of the more than 30 presentations _ carried through in some cities of the country throughout two years and in the two in Berlin _ had supplied an impressive mosaic of the ideas and dominant habits of behavior as a reply to the faced subjects in Procedure 01, and we perceived that the corporal and scenic formulation reached by the group in its inquiry of the parameters man/machine and object/control and communication triggered a set of powerful metaphors as cultural repertoire of those audiences, that in themselves seemed too interesting to be neglected as by products of the work.

Thinking about this, we decided to create other formats, beyond the choreography, to expand the results of the project and so we structured Skinnerbox in four configurations: perfomance, one dance workshop led by Alejandro, one ideas workshop led by me and Alejandro and the publication of a report to be prepared by me. It also has a periodical distributed in the performances, not as a program that explains it, but with the aim to act as a field of debate between ideas formulated by people in or out of the dance group. To configure the final performance, five different procedures had been carried through focusing specific aspects of Projeto Skr, and nor all presented publicly. Procedures created to investigate dispersed approaches in a conducting hypothesis and from there to converge in the configuration of a performance that is, in itself, a proposal of other hypotheses that from there are exhausted in its own configurations. And everything continues as it has always had… reorganizing itself in an evolutive way.

Fabiana Dultra Britto* is dance critic and Coordinator of the Master in Dance of the UFBA. Graduated in Dance at the UFBA, Master in Arts for the ECA-USP and Doctor in Communication and Semiotics at PUC-SP. She has participated as tutor of the projects of choreographic investigation: Embodied, with Cristian Duarte (SP) and SKR Procedure 01, with Cena 11 (SC), and is advisor of the project THEOREM, winner of Prize APCA 2005 and carried through by the Studio Move (SP). She elaborated and co-ordinated the mapping project Rumos Dança 2000 and organized the resultant book: Cartografia da Dança (2003). In 2004, she integrated the Collegiate to elaborate the programming at Olido Gallery (SP).