Um estado de corpo

Recife. Queria falar um pouco sobre a dança cênica dessa cidade, no momento em que estamos. Somente para que o leitor saiba, ao menos em parte, sobre as circunstâncias que estarão embutidas na minha voz, quando estiver tratando de qualquer assunto, ou dando alguma notícia do local, no que vou escrever nesta coluna a partir deste mês.

É visível que a dança no Recife se encontra num momento inédito quanto à tomada de consciência de que somos todos seres políticos. Isso não é pressuposto geral, já que a categoria da dança aqui não é uma massa homogênea (aliás, categoria alguma, em lugar algum). Mas são agora mais numerosos os artistas, ou atuantes na área da dança de uma maneira geral, nesta cidade, que partem do princípio de que é preciso optar de maneira autônoma e consciente por um certo estado de corpo, condição que Laurence Louppe[1] vê como obrigatória para o grande artista de dança.

A opção por um certo “estado de corpo” significa certamente o que é ser um ser político na dança. Saber que ser dançarino é escolher o corpo e o movimento do corpo como campo de relação com o mundo, como instrumento de saber, de pensamento e de expressão[2]. O estado de corpo implica um jeito específico de pensar sobre o corpo. Em várias ações do Recife, dentro do âmbito da dança, o implícito tem sido a idéia de que o corpo não pode ser diferenciado do pensamento e muito menos ser colocado em oposição a este. Dessa forma, por vezes, as várias vertentes de atuação – pesquisa, crítica, criação, política, ensino – têm se confundido, e em cada uma delas conseguimos acessar um certo modo de pensar que nos remetem a questões sobre as demais frentes de atuação.

Para não ficar nas generalizações, o mês de setembro nos traz exemplos bem precisos, especificamente no que se refere à criação coreográfica e às ações políticas para a melhoria das condições de atuação. Refiro-me à estréia de dois novos espetáculos, Ilha Brasil Vertigem e Fervo; e às últimas discussões e iniciativas do Movimento Dança Recife.

Ilha Brasil Vertigem é o espetáculo mais novo do Grupo Grial, dirigido e coreografado por Maria Paula Costa Rego desde 1997, quando foi fundado por ela e pelo escritor e criador do Movimento Armorial, Ariano Suassuna. Este último trabalho é o segundo da trilogia A Parte que nos cabe, que, segundo o programa, “traduz o amadurecimento de uma busca por uma linguagem contemporânea inspirada e escrita com bases na Cultura Popular”, ou seja, representa um momento mais maduro do que já é, desde a década de setenta, a proposta estética armorial. No entanto, ainda mais radicalmente do que em Brincadeira de Mulato (2005), o primeiro da trilogia, Ilha Brasil Vertigem apresenta um discurso que promove, na sua textura (corporal, cênica), senão uma total ruptura, ao menos uma atualização no tratamento dos conceitos de identidade, cultura popular e povo, que fazem parte, implícita ou explicitamente, do pensamento armorial desde o início.

Ficaria bem mais simples dizer que Ilha Brasil Vertigem é sobre o maracatu rural (assim como Brincadeira de Mulato, sobre o cavalo-marinho), mas isso é muito pouco ou nada a ser dito acerca desse espetáculo. Não se trata simplesmente de uma transposição do folguedo para um outro espaço cênico, nem de uma história popular contada com o pretexto de mostrar os passos do maracatu rural traduzidos para uma corporalidade pesquisada por um grupo que quer construir uma dança brasileira erudita. Não quero me alongar no assunto nesse momento, mas já vimos o Grupo Grial fazer algo próximo a isso em sua trajetória. Sua diretora, juntamente com um grupo de dançarinos com formações corporais diversas, vinham construindo um vocabulário corporal justamente como resultado e ferramenta dessa tradução das danças populares, embora de forma totalmente diferente do que já foi feito pelo balé clássico, ou por grupos de dança popular cênica, cujo exemplo máximo em Pernambuco é o Balé Popular do Recife (1977).

Entretanto, nesse trabalho, Maria Paula abdica do vocabulário em que vinha investindo, para levar à cena, com exceção de apenas um de seus dançarinos veteranos (Emerson Dias), um elenco de literais caboclos do Maracatu Leão de Ouro do Condado: Fábio Soares, Sebastião de Lima, Marcos da Silva, Aguinaldo Roberto da Silva, Pino da Silva, Rosildo Mares e Bel Piola. Como e para quê?

A assinatura da diretora não está mais na criação de uma movimentação inspirada nas danças populares. Toda a corporalidade que se vê em cena é a dos caboclos-de-lança. A exceção é só a inevitável diferença com que Emerson Dias executa os movimentos, obviamente por este ter participado, desde o início do Grial, da elaboração de uma linguagem do grupo. A autoria de Maria Paula está, então, no enquadramento que dá a tudo o que já existe no maracatu rural: o rearranjo espacial das várias partes que constituem o desfile do folguedo, sua reordenação temporal, as repetições de movimentos específicos, como as quedas dos brincantes, entre outras interferências, como a inserção de depoimentos do caboclo Martelo. É através desses elementos que podemos dizer que existe um “filtro” no olhar possibilitado por esse espetáculo sobre o folguedo em questão, mas esse filtro, ou essa moldura, não consiste numa estilização da qualidade dos movimentos.

A opção de transformar pouco o discurso corporal do elenco de caboclos, inserir depoimentos que tratam do próprio processo de participação do folguedo e suas mudanças históricas, além de inserir imagens (no vídeo-cenário) que remontam ao lugar de onde o folguedo se origina constituem uma escolha política de romper com o viés espetacular da manifestação popular para captá-la “de dentro”. Na urdidura cênica, a representação do popular feita pelo sujeito de elite negocia uma parte significativa de seu espaço com a auto-representação feita pelos próprios agentes da cultura popular, através de sua voz, de sua corporalidade, de suas vestimentas. Num depoimento dado a um jornal de Pernambuco, a diretora confirma o que vemos em cena, dizendo que os caboclos, embora não acostumados a isso, contribuíram na criação do espetáculo. A trilha sonora, assinada por Gustavo Vilar e pelo terno (conjunto de instrumentos percussivos que acompanham o folguedo) do próprio Maracatu Leão de Ouro do Condado, segue coerentemente essa linha de uma intervenção que não traduz para outra musicalidade, mas fragmenta, reordena, desautomatiza os sons dos surrões (acessórios com chocalhos que os caboclos carregam nos ombros para sonorizar as passadas), ou as músicas resultantes do terno, dos instrumentos de sopro e das toadas (o canto).

A reordenação e fragmentação do desfile e da música que o acompanha, com as inserções das falas metalingüísticas e das imagens contextualizadoras, nos proporcionam a sensação de estarmos vendo a brincadeira do maracatu numa perspectiva de quem está no meio. Sentimo-nos com condições de captar o devaneio, o cansaço e o segredo de todos aqueles homens que também estão em construção, e não vê-los como os caboclos-de-lança que viraram logotipos da “pernambucanidade”, com passos isolados e desfeitos de seus significados históricos. Vemos esses homens “a caminho” saírem, com movimentos interrompidos, de trás de seus surrões no início do espetáculo, e se proverem, ao longo deste, apenas de parte de seus acessórios. Ficam sem a gola, sem a lança e, quase todos, sem a cabeleira brilhante, como um signo preciso de suas identidades em processo.

Temos que considerar um fato: o espetáculo resulta de um processo de pesquisa que envolveu a experiência de Maria Paula Costa Rego como cabocla-de-lança no último carnaval e sua residência em Condado por um período de aproximadamente três meses. A criadora chegou mais perto e, ao fazê-lo, está cada vez mais distante dos signos da caricatura, do estereótipo, a que o conceito de identidade fixa submete essa massa só ficticiamente homogênea a que chamam “povo”. Sem dúvida, Ilha Brasil Vertigem representa um corte radical e sem retorno na história das reelaborações das danças populares pelo sujeito de elite, este que, se voltarmos às origens da formação de um “balé brasileiro”, era literalmente o coreógrafo estrangeiro importado pelas primeiras escolas de balé oficiais no país[3].

Apesar de também partir de uma dança popular, o frevo, como matéria de investigação e criação, Fervo, de Valéria Vicente, tem resultado estético muito diverso do espetáculo do Grial, mas mantém com este alguns pressupostos em comum: desestabilizar estereótipos construídos para representar uma suposta “tradição”; “re-historicizar” uma manifestação popular, a fim de retomar discussões que interessam ao presente; e lançar para o mundo a pergunta “de que corpo se trata?”.

Comemorar o centenário do frevo (2006) certamente não desautomatizaria o olhar leigo para esse ritmo, se, a pretexto de comungar dessas comemorações, a coreógrafa, bailarina, jornalista e pesquisadora Valéria Vicente, junto com um grupo de artistas-pesquisadores, não tivesse se proposto fazer um espetáculo em que “o passo” (como tradicionalmente se chama a dança do frevo) é a partida, o meio e a chegada no tratamento de um assunto que está no passado e no presente do corpo: a violência.

Fervo. Esse é o nome preciso que a equipe “cavou” ao fazer a etimologia corporal da “matéria” frevo. Esse verbo na primeira pessoa do presente é a forma exata de dizer sobre a relação entre uma coreografia individual e o estado de corpo de uma coletividade, atrelado às circunstâncias históricas que ligam o frevo à violência[4]. A idéia que se fortalece é a de que cada momento da história é, como já disse Benjamin, povoado de “agoras”. Não temos como olhar para o passado senão com os olhos do presente. É dessa forma que, em Fervo, os pré-movimentos[5] belicosos do frevo do início do século XX são investigados, recuperados, mesclados às atitudes posturais do presente e explorados como possibilidades de direcionar o texto coreográfico para um desconforto capaz de “desanestesiar” o público da banalização da violência e do medo que presenciamos e experimentamos no Recife, no Brasil.

Enfatizando o caráter jazzístico do frevo, cada intérprete tem seus momentos de solar. Nas suas frases individuais residem a história peculiar de seus corpos, a forma como cada um dos dançarinos se relaciona com o ritmo, e a repercussão particular que as informações adquiridas durante os meses de pesquisa produziram sobre cada um. Todos os solos – de Calixto Neto, Iane Costa, Leda Santos e Jaflis Nascimento – são dignos de aplausos pelos resultados conseguidos, coerentes com seus criadores e ao mesmo tempo com o discurso da obra em seu conjunto, além de merecerem análises aprofundadas sobre os caminhos encontrados para construí-los. Mas os dos dois últimos citados instigam sensações e reflexões que não posso deixar de contar.

O de Leda, especificamente o da parte final do espetáculo, emociona por encontrar um elo lírico entre o estado de choro em que se encontra a intérprete naquele momento e o seu fraseado coreográfico. Este, ao mesmo tempo em que é matéria exata do desconsolo, se reverte, aos poucos, em abrigo, em lugar de o corpo descansar. As soluções coreográficas levam aos poucos este corpo, vítima da violência sofrida e praticada (na cena anterior, todos destroem a chutes um boneco de pano), para um estado de alívio próprio a quem conseguiu, por exemplo, transformar uma dor em um poema. Já o de Jaflis provocou, justamente, aplausos em cena aberta nas duas apresentações da semana de estréia. É que as conexões que ele faz entre o frevo, o afoxé (um ritmo do candomblé) e o break (a dança da cultura hip-hop), certamente, comovem o público por uma via que não é a da percepção subjetiva, mas a de uma vibração de corpos que deixam de ser, naquele instante, meros espectadores, para reconhecerem, ativa e coletivamente com os aplausos, o vínculo quase lógico entre cada um dos elementos conectados pelo dançarino-criador.

Os sorrisos rasgados dos passistas, as músicas vibrantemente alegres e o colorido das roupas que regam as convencionais apresentações turísticas de frevo, e de outras danças populares, são substituídos, no espetáculo, por oscilações no tonus – ora alegre, ora triste, ora agônico – das máscaras faciais dos intérpretes, da movimentação e da trilha sonora (de Silvério Pessoa e Yuri Queiroga). E tanto no figurino (de Isa Trigo) quanto na programação visual do material gráfico de Fervo (de Fernanda Lisboa), só se quebra o preto-e-branco com detalhes sutis em vermelho, para fornecer mais uma pista do viés cromático do frevo que se quer reavivar: o do sangue, obviamente, mas também o do estado de corpo enérgico, acordado, não passivo.

Digamos, então, que Fervo proporciona ao público o oposto daquilo que Richard Sennett[6] chama de “liberdade da resistência” e atribui ao construtor civil e ao diretor de televisão. Aquele por projetar “caminhos por onde o movimento se realiza sem obstruções ou maiores esforços, e com a menor atenção possível aos lugares de passagem”. O outro por explorar “meios que permitem às pessoas olhar para o que quer que seja, sem desconforto”. Os espetáculos de dança que promovem uma desconstrução de corporalidades dançantes já conhecidas rompem justamente com essa “liberdade da resistência”, fazendo com que o olhar se obrigue a deter-se nas paisagens construídas pelo movimento desautomatizado. É como se invertêssemos: quem está parado somos nós, e o movimento já conhecido passa por nós com outras qualidades de esforço a que não estamos habituados, e, com isso, a liberdade do olhar confortável é obstruída, obrigando-nos ao desconforto da consciência política, mas felizmente, também à ação. É o caso, sem dúvida, de Fervo.

No entanto, obras artísticas, mesmo dessa natureza, além de produzirem efeitos quase nunca perceptíveis a curto prazo, não se bastam para constituir esse “estado de corpo” não passivo, político no melhor sentido, a que me referi no início. Mas isso também não representa mais um impasse para a realidade atual da dança no Recife. Paralelamente à maior constância com que surgem, hoje, criações com uma preocupação política subjacente ao tratamento do corpo, outras ações, práticas e iniciativas estão sendo empreendidas: um maior interesse pela pesquisa e conseqüente aumento no número de publicações; as mudanças graduais a que vem se submetendo o importante Festival de Dança do Recife, com objetivos de formação quantitativa e qualitativa de público; e, especialmente, as discussões que o Movimento Dança Recife (existente desde 2004) vem realizando.

Entre as ações do Movimento Dança Recife, constam mostras coreográficas sempre acompanhadas de debates de interesse político, como os Plataforma de Dança Contemporânea e Plataforma de Dança Popular; participação efetiva, com representação, nas atividades da Câmara Setorial de Dança; e assembléias mensais para viabilizar o diálogo com os atuantes da dança e sua real representação nas reivindicações do coletivo junto à Prefeitura do Recife e ao Governo do Estado. O que está na ordem das prioridades do Movimento é a urgência da implantação, no estado, de um curso superior de dança, na universidade pública federal. Dessa forma, os artistas que estão à frente desse movimento já realizaram seminários para a discussão do assunto, buscaram consultoria de professores de estados em que já existe o curso superior de dança, participaram de uma reunião com o reitor da Universidade Federal de Pernambuco, e fizeram os primeiros contatos com um parlamentar representante de Pernambuco na Comissão de Educação e Cultura da Câmara Federal.

Neste mês, o Movimento realiza, nos dias 29 e 30, o Seminário Movimento e Trabalho: O que é Legal para a Dança?, no qual discute a Lei do Artista 6533/78 para o profissional da dança, o Cultura Prev, o contexto histórico da atuação do profissional de dança no Brasil e aspectos de uma lei específica para dança.

Esses exemplos do Recife são sintomas da percepção de que o corpo, matéria da dança, é também o lugar do político, ou seja, o lugar de também pensar e dizer que cidade, que estado ou sociedade se deseja, e quais os pensamentos, conceitos e caminhos obrigatórios para consegui-lo.

[1] Poétique de la danse contemporaine. 3.ed. Paris: Contredanse, 2004.
[2] Idem.
[3] Sobre os assunto, leiam o consistente livro de Roberto Pereira. A formação do balé brasileiro. Rio de Janeiro: FGV, 2003.
[4] As brigas sangrentas entre bandas militares rivais acompanhadas pelos capoeiristas, no final do século XIX e início do século XX, além dos confrontos civis durante a campanha Salvacionista de 1911. Sobre o assunto, leiam o texto da própria Valéria Vicente, Uma investigação sobre o frevo, publicado no idança.
[5] Que produzem a carga expressiva do movimento, segundo Hubert Godard. Gesto e percepção. In: Lições de dança 3. Rio de Janeiro: UniverCidade, s.d.
[6] Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro / São Paulo: Record, 2003.