Um impasse incontornável

Uma especulação bem pessoal sobre prêmios, crítica, academia, democracia e APCA

Houve uma comoção entre profissionais da dança há alguns dias por conta da ausência da dança entre as categorias premiadas pela Associação Paulistana de Críticos de arte, a APCA. Sem uma justificativa convincente, o release oficial enviado pela entidade à imprensa informava que “as ausências neste ano [da dança e da música erudita, outra categoria que ficou de fora] são pontuais e devem servir para que as áreas retomem sua linha avaliatória junto à entidade nas próximas votações” – o que por muitos, eu inclusive, foi interpretado como uma repreensão, algo como “ei, dança, vocês precisam melhorar”.

Falei com o José Henrique Fabre Rolim, presidente da Associação, que me disse que a ausência da categoria devia-se ao fato de não ter havido consenso entre as quatro integrantes da comissão avaliadora da área – Ana Teixeira, Helena Katz, Renata Xavier e Ana Francisca Ponzio. Ainda não tinha entendido que divergência era essa que impossibilitou a entrega de todos os prêmios referentes à dança ou qual foi o critério utilizado. Ele também não soube informar. Falou que cada comissão tinha autonomia de decisão.

Um pouco depois de publicada a matéria aqui no Idança, tive acesso a uma postagem de Ana Francisca Ponzio (que pode ser lida integralmente aqui), em que ela expunha a sua versão sobre como foi tomada essa decisão.

Helena e Ana Teixeira nos enviaram também um texto, alguns dias depois, de autoria das duas, contando a versão delas sobre o que aconteceu, que publicamos integralmente aqui. Recomendo, pra quem quer entender, que leia as duas versões da história e os comentários nas duas.

Conversei, ao longo da semana passada, com três das integrantes da comissão: Helena e as duas Anas. Infelizmente, não consegui conversar com a Renata, que, por fim, preferiu me enviar por e-mail uma declaração, que está nas notas aqui embaixo (1). A intenção dessas conversas era menos desvendar os bastidores da APCA e muito mais entender de fato esses posicionamentos, o pensamento que cada uma dessas pessoas estava defendendo e por quê.

Sobre o processo de decisão, com pequenas diferenças, todas me contaram a mesma história, com perspectivas absolutamente diferentes, mas basicamente a mesma. Não me interessa entrar nos pormenores do ocorrido, é política institucional, sempre fugi disso, tenho pavor.

Mas um ponto, que fui entender depois, acho legal esclarecer aqui: a comissão de dança não decidiu de fato por não premiar ninguém. A princípio, havia dois posicionamentos divergentes: A) uma ideia inicial, defendida por Helena e Ana Teixeira, de dar destaque a uma obra, sem mencionar o artista, e divulgar um texto propondo uma reflexão sobre o prêmio; B) manter o funcionamento tradicional do prêmio, entregar troféus a todas as categorias relativas à dança – posição defendida por Ana Ponzio.

Depois, essa discussão muda: a comissão começa a se dividir entre a proposta inicial (ítem A no parágrafo anterior) e uma nova proposta: a de não premiar ninguém. Em ambos os casos haveria um texto, assinado pela comissão, explicando os motivos por trás da decisão. A premiação no formato tradicional a essa altura já não era uma possibilidade, pois a comissão não tinha escolhido os nomes a serem premiados.

Enfim, não teve consenso nem sobre premiar ou não, nem sobre o conteúdo do texto, nem sobre divulgar esse texto, não teve consenso sobre nada. Havia um empate, duas pessoas de cada lado. De acordo com as regras da Academia, em caso de empate, quem decide é o presidente, que, nesse caso, decidiu pela não premiação – o que, a meu ver, era a única possibilidade naquele momento.

A ausência de prêmio, pelo que eu entendi, foi consequência de um impasse incontornável – o que eu considero o ponto mais interessante dessa história toda e a melhor coisa que poderia ter acontecido. Não se decidiu propriamente por ela. A ausência de prêmio era, de fato, a ausência de um acordo.

Tenho pouquíssima paciência pra premiações de arte. Mesmo. Oscar eu parei de assistir em 1999, quando a Fernanda Montenegro perdeu pra Gwyneth Paltrow. Grammy eu vejo os shows, pulo as entregas de troféu. Acho chato, não acredito naquilo, não acho que a opinião de um grupo de críticos defina alguma coisa, acho os critérios fracos, pouco abrangentes, repetidos. Não acho que crítica serve pra isso. Tem tantas coisas que a crítica pode fazer, mas isso, pra mim, é uma bobagem, é arbitrário, é superficial. Como assim escolher o melhor? Em arte? Não é nem possível.

APCA é diferente, eu tenho alguma proximidade. Fico feliz quando algum amigo ou alguém que eu admiro ganha um prêmio, não porque isso vá mudar a percepção que eu tenho do trabalho, ou da pessoa, ou do grupo, mas porque eu sei que vai trazer oportunidades pra quem recebe. Em suma, porque o prêmio – “simbólico”, como Ana Ponzio chama no texto dela – pode não ser em dinheiro, mas é capitalizável. E também acredito que é uma premiação que nem sempre trata de eleger o melhor (apesar de se anunciar assim aos jornais: “os melhores do ano da APCA”).

Mas nunca na minha vida me interessei tanto por esse prêmio, ou falei tanto a respeito, como na semana passada.

Como hoje eu trabalho no Idança, era um assunto sobre o qual eu tinha que, ao menos, fazer uma notinha. Todo ano o portal divulga os premiados da APCA, sem explicar muito. Podem fazer uma busca aí. “APCA divulga os premiados 2014”, “APCA divulga os premiados 2010”, e segue-se a listinha. Não se discute a respeito. É uma formalidade necessária. Mas dessa vez, uma coisa diferente aconteceu ali. Era uma premiação sem prêmio. Ficou mal resolvido, não dava pra saber o que tinha acontecido.

Sendo artista, e tendo contato com diversos profissionais da dança, vi reações diversas ao fato. Muitas bem categóricas, de espanto, revolta, apoio, deboche, descaso. Conversei com diversos amigos sobre o assunto (2). Da maioria das declarações públicas que eu vi no facebook, dos comentários no portal e na página do Idança, o que me pareceu é havia uma grande polarização (#teamponzio #teamkatz), que havia muita preocupação com os pormenores e com a política institucional, que os posicionamentos eram muito opinativos e questionavam pouco. Muitos consideraram uma decisão autoritária, um ato de vaidade, outros acharam importante, produtivo. Pouca gente estava se preocupando em entender de fato o que aconteceu e o que isso significa para a dança – enfim, falar sobre o que a gente faz agora e qual o significado desse desprêmio.

Quando falei com a Ana Teixeira, ela questionou isso: “Não te parece significativo que as únicas pessoas que nos procuraram de imediato pra saber o que aconteceu tenham sido você, que mora no Rio, e um jornalista de Florianópolis (3), dois artistas que atuam na imprensa?” E me parece significativo sim, só não sei o que significa. Não sei por que o desinteresse. Opiniões já formadas talvez, conformidade, não sei. No caso da comunidade da dança de São Paulo, que é a mais afetada, meu palpite é que também tem muito receio de se indispor com um lado ou com outro.

Eu sei sim o que me interessou, que foi a vontade de entender o que representavam esses diferentes posicionamentos e as implicações do fato.

Olhando pra essa primeira proposta, apresentada pela Helena e pela Ana Teixeira, eu tenho um apreço pelas motivações que eu vejo por trás dela. São duas pessoas, que estão em uma posição de poder – que seja o pequeno poder de decidir quem são os “melhores da dança” (acrescentem aí mais mil aspas) em um determinado ano – e que optam por fazer uso dessa posição e desse espaço pra questionar o que está se fazendo ali. É uma proposta de certa forma subversiva, e toda subversão tende a ganhar a minha simpatia. Dar destaque a uma obra, e não a um artista, que elas consideraram que materializava uma certa discussão, sobre o prêmio, sobre a dança, sobre a categorização. Muito que bem.

E é relevante, porque um questionamento sobre esses assuntos que viesse de artistas e não de integrantes da APCA seria visto como bobagem. “Tá reclamando porque não ganhou”, “tá reclamando porque quer aparecer”. Não seria levado a sério. É relevante porque reconhece um problema num lugar que ninguém mais prestava atenção, de tão natural que parece. Parece natural um grupo de pessoas se reunirem para decidir quem são os artistas da dança que merecem ganhar um troféu num certo ano, mas não é não. Não é mesmo. Se você dá um passinho pra trás e olha com uma certa distância, é um absurdo completo.

E é relevante, ainda, porque é a crítica se propondo a agir, em vez de julgar ações.

Mas, por outro lado, entendo perfeitamente a discordância terminante da Ana Ponzio quanto a essa ideia. “Não posso aceitar que uma premiação para a dança tenha essa postura. Que poder é esse do crítico? (…) Eu sou desprendida de prêmios, mas acho que eles têm um poder político, de reconhecimento público, que é importante para a dança. A dança conta com poucos espaços na mídia. Se essa informação da exclusão da dança de um prêmio como o APCA chega às mãos de um jornalista desinformado e apressado, ele pode interpretar que a dança está num nível inferior às outras áreas ou que não tem expressão e relevância”  – foi o que ela me falou.

Como jornalista que é, ela prioriza a perspectiva da comunicação. E de fato, o modo como essa informação chegou à imprensa foi, pra dizer o mínimo, prejudicial para o campo da dança. Pegou mal. Assim como teria sido, acredito, se a proposta inicial tivesse sido aceita. Dar destaque a uma obra ou premiar um único artista não faria a menor diferença, sob essa perspectiva. A informação seria, e foi, assimilada como uma deficiência de todo um campo da arte paulistana, brasileira.

Ao que me parece, a falha dessa proposta não é subverter as regras, mas sim subverter poucas regras. Ela vai num sentido único. É o crítico questionando o prêmio, mas oferecendo uma certa reflexão, específica, descrita por um texto (que acabou nem sendo escrito) e oferecendo uma obra como forma de ilustrar que tipo de reflexão deve ser feita. É uma subversão quase pedagógica. E a organização da coisa, que me parece o mais importante, não entra em questão.

Em um comentário na página do Idança, a coreógrafa Lara Pinheiro fez uma pergunta que me chamou a atenção: “Se a proposta é a reflexão, por que ela foi feita entre quatro paredes, por quatro pessoas, durante a votação de um prêmio que existe há muitos anos e, sim, colabora para manter a dança entre as linguagens artísticas em destaque no ano?” E eu pergunto mais: se a proposta é a reflexão, por que não questionar também toda essa estrutura? A maneira como as pessoas são convidadas pra fazer parte da comissão, o tipo de decisão que se toma por votação, o voto decisivo do presidente da Associação, o prazo limite para enviar os resultados, o sigilo das reuniões – quantas regras estão sendo aceitas, sem discussão, ao mesmo tempo em que se pretende propor uma ação radical? Pra se questionar o prêmio, pra se questionar a função do prêmio, acredito que é imprescindível discutir tudo isso.

Pelas conversas que eu tive com Ana Teixeira e Helena, entendo que essas questões que eu propus aqui importam pra elas também, em alguma medida. Mas eu não acho que elas se materializam nessa proposta, definitivamente.

Por outro lado, a vontade que a Ana Ponzio manifestou pode ser considerada uma postura mais conservadora – ela optou pela manutenção do funcionamento do prêmio como sempre foi. Qualquer que seja o motivo, é uma opção pela conservação.

No entanto, me parece que foi justamente a presença dela ali, naquela comissão, diante de um pensamento do qual divergia completamente, e o desacordo que essa presença gerou, que permitiram que, em vez de uma proposta pedagógica de reflexão, tivéssemos um acontecimento, uma falha, uma ruptura, um problema sem solução. O que é fantástico.

Por exemplo, Ana Ponzio, após todo o episódio, publica esse texto, longo, incluindo trechos de e-mails trocados, detalhes das conversas que elas tiveram. No texto de Ana Teixeira e Helena elas questionam essa atitude:

No entanto, na sexta-feira passada, fomos surpreendidas pela manifestação justamente do membro que não havia concordado em construir um texto em conjunto e que, sem comunicar à comissão da qual fez parte, escreveu sozinho a sua versão. Nela, torna público um trecho de uma longa correspondência (trocas de whatsapps e e-mails) realizada durante dois dias, retirando-o do seu contexto, e sem nada informar à parte citada.

Eu não faria isso, não citaria publicamente uma conversa pessoal sem avisar. Mas me parece que se trata de uma outra perspectiva, que entende que essa conversa, que esse processo de decisão sobre um prêmio, é pública. E, concretamente, foi por meio desse texto que a gente, que estava fora, ficou sabendo que não se tratava de uma decisão arbitrária da presidência da APCA, mas que houve uma comissão, que essa comissão não chegou a um acordo e qual foi esse desacordo. O fato de ela se colocar publicamente de maneira explícita foi o que nos deu acesso ao que aconteceu. (Se seria melhor consultar as coleguinhas, com acordo ou sem acordo, antes de publicar esse texto? Acho que sim, mas essa decisão não compete a mim.)

Foi esse texto também que trouxe a discussão sobre a composição da comissão e sobre a maneira de decidir. Foi aí que a gente entendeu que ela participou da comissão a convite da Helena, que foi justamente quem apresentou a proposta, que era uma proposta que ela entendeu como definitiva. Me parece que da perspectiva da Ana Ponzio, isso é que era questionável. Ela entende que a sua presença ali era pro forma, pra corroborar uma decisão que já tinha sido tomada. (No final das contas, não foi isso que aconteceu, porque a presença dela mudou totalmente o rumo das coisas, então alguma abertura pra isso havia.)

Isso, pra mim, mostra que são visões de mundo incompatíveis, estruturalmente incompatíveis.

É difícil conviver com a diferença. Pensar sob outro viés demanda muito, mas muito esforço extra. Mas, além disso, acredito que existem pontos, existem situações em que a diferença não é dialogável mesmo. Nem sempre vai se chegar a um acordo, às vezes sequer vai existir um vocabulário comum. Isso também é diferença. Entender isso também é conviver com a diferença.

Aqui, a diferença, a incompatibilidade completa, gerou um acontecimento. Um resultado que não satisfez nenhuma das partes envolvidas na decisão, que não satisfez ninguém, na verdade. Deu errado. Mas eu considero esse acontecimento como uma oportunidade. O acontecimento não direciona. Ele é autônomo. Você vai reagir a ele como sabe, como pode, como aprendeu, mas ele não diz como reagir.

Pode não servir pra nada, pode ser só mais uma fofoca da dança, se a gente insistir no dualismo, se a gente quiser respostas fáceis, se a gente quiser uma saída que não exija esforço, se a gente quiser continuar na velha disputa de território.

Mas me parece que autoritária ou não, autorizada ou não, acertada ou não, essa não-premiação pode nos dar de presente algumas perguntas, que acho muito importantes não só para a dança mas para a arte. Sobre o papel dos prêmios, o papel da crítica, a figura da autoridade, sobre o que é público e privado nas decisões de uma comissão avaliadora, sobre atritos e sobre comunicação. E, para mim, uma das que ficam mais latentes é sobre diferentes entendimentos de democracia: Democracia sempre se trata de maioria e minoria? De voto? Como se tomam decisões democráticas sem depender apenas do quesito numérico? Ou ainda: o que é de fato uma decisão democrática? E algumas mais imediatas: O que a gente quer desse prêmio APCA no ano que vem? Tem importância? Não tem? O que se pode fazer? Vai voltar ao normal? É possível voltar ao normal? É bom que volte ao normal? Por quê?

Notas:

(1) Eis a declaração que a Renata Xavier me enviou: “As informações sobre reunião da Premiação APCA 2015 passadas por Ana Ponzio, Ana Teixeira e Helena Katz explicam o processo da conversa/discussão que estava acontecendo dentro do grupo responsável pela votação do qual também fiz parte. No momento de decisão entre premiar e não premiar, considerei as implicações possíveis de cada opção dentro e fora do contexto específico da comunidade dança. Optei pela premiação.”

(2) Em especial Ricardo Marinelli, Elisabete Finger, Sonia Sobral, Sheila Ribeiro – a quem eu agradeço por me ajudarem a pensar.

(3) Ela se referia ao Anderson do Carmo, que escreveu um texto sobre o assunto no jornal Notícias do Dia, de Santa Catarina. Incluiremos o link aqui, assim que estiver disponível.

 [Na foto, Gwyneth Paltrow no Oscar 1999, meu rompimento com as premiações]