Um instante

foto: Dally Schwarz

Cia Matheus Brusa, último ensaio de Centímetro antes de sua estreia, 2013, Caxias do Sul

 

* um ensaio de Dally Schwarz

Corpos em estado de atenção, expectativa, tensão.
Câmera que olha e captura.
Congelamento,
Para sempre.

Será que a fotografia já não mais nos emociona tanto, quando ainda tínhamos aquela ideia do momento único capturado em uma imagem de um instante? Com a digitalização temos possibilidades maiores de prever uma memória. Em poucos instantes escolhemos se queremos aquele registro, se o fazemos novamente, ou se deletamos a imagem de nosso arquivo cabeça.

Mas, apesar dos avanços tecnológicos, e o que isso provoca no nosso corpo e comportamento, as relações que os seres humanos estabelecem com as tecnologias são distintas, e diversas. Não que eu acredite que existam pessoas “fora” do regime atual da imagem. Ninguém está fora. Tiramos fotos incessantemente (fotografávamos antes, não?).  Como se as fotos pudessem registrar partes dos nossos olhares, daquilo que vemos no mundo, do que chama nossa atenção, do que nos faz querer abrir os olhos todos os dias.

 Cia Matheus Brusa, último ensaio de Centímetro antes de sua estreia, 2013, Caxias do Sul

Cia Matheus Brusa, último ensaio de Centímetro antes de sua estreia, 2013, Caxias do Sul

 

Veja através dos meus olhos.
Um mundo que eu vejo.
Como você vê o mundo?
Será que vemos mundos parecidos?

Olhar para um corpo que dança e querer capturá-lo parece uma tarefa um tanto quanto aprisionadora. Henri Cartier-Bresson, fotógrafo francês consagrado pelas capturas de preciosos instantes cotidianos, já dizia que “Fotografar é colocar na mesma linha, a cabeça, o olho e o coração”. Para Cartier-Bresson, “No movimento há um momento quando os elementos em movimento estão em equilíbrio. A fotografia deve capturar esse momento em manter imóvel seu equilíbrio”.

Será que o olho do meu celular enxerga

Como o olho da objetiva precisa?
Abre fecha obturador,
Ele observa,
Eu vejo.

Sou convidada a observar o último ensaio antes da estreia de uma Cia de dança contemporânea, a qual sou admiradora.  Os corpos viram imagens, imagens lindas. A luz, o som, o desenhos que os corpos fazem no espaço me tomam. Saco minha câmera, meu olho se estende e meu olhar se amplia.

A palavra fotografia deriva das palavras gregas  fós (“luz”), e grafis (“estilo”, “pincel”) ou grafê, significando “desenhar com luz” ou “representação por meio de linhas”, “desenhar”.

Começo a rabiscar por cima do desenho que já se faz. Desloco meu corpo, e danço junto procurando melhor maneira de compor um pas de dix, pois todos no palco dançam. Os bailarinos, os músicos com seus dedos e pequeniníssimos movimentos no corpo dos instrumentos. Ah! Os instrumentos são corpos. Os objetos são corpos. Precisam ser animados para que soem, cantem e dancem. Então na realidade, é uma orquestra de corpos que eu observo. Tudo no palco é corpo e tudo dança.

Cia Matheus Brusa, último ensaio de Centímetro antes de sua estreia, 2013, Caxias do Sul

Cia Matheus Brusa, último ensaio de Centímetro antes de sua estreia, 2013, Caxias do Sul

O olho do celular é aquele que olha, muito difícil fazer ver. Ele tem suas limitações, mas ele cabe na palma da mão e com ajuda do punho, dobradiça incrível do nosso corpo, ele consegue acompanhar mais nossos movimentos e nossos modos de olhar que saem-entram pelas frestas do olho.  Então, faço aqui a defesa desse olho 3,2 megapixels que olha. E desse olhar como possível desenho precioso do instante.

Apesar da digitalização, e de toda essa proliferação de imagens,  e dos problemas dessas imagens 3.2 megapixel, aquilo que olhamos, num momento especial deve ser visto, são imagens mágicas, cheias de luz, fotossensíveis. As imagens desse momento não voltam na espiral do tempo, são instantes antes de uma estreia. Em minha opinião, isso que vem antes da estreia, que o publico não vê, é um registro precioso.

   Cia Matheus Brusa, último ensaio de Centímetro antes de sua estreia, 2013, Caxias do Sul

Cia Matheus Brusa, último ensaio de Centímetro antes de sua estreia, 2013, Caxias do Sul

Imensidão de preto
Que se dissolve com luz e tonaliza
Em cinzas
O mundo em nuances,
De preto e branco.
Desenho com carvão,
Em cima da pintura de outro,
Meu olhar não é  pintura em cores e tons.
Olho mecânico, de câmera de segurança móvel,
de cachorro em frente a máquina de frango da padaria.

Cia Matheus Brusa, último ensaio de Centímetro antes de sua estreia, 2013, Caxias do Sul

Cia Matheus Brusa, último ensaio de Centímetro antes de sua estreia, 2013, Caxias do Sul

A escolha pelas imagens em tons de cinza se relaciona com o trabalho que faço por cima de uma pintura que já se faz no espaço. O trabalho do coreógrafo Maheus Brusa é não só coreográfico, mas também visual e plástico. Não quero pintar sobre sua pintura. Então, faço rabisco por cima na tentativa de propor diálogo. Como trabalhar meu olhar para trazer algo para o outro, agregando mais uma camada de sentidos?
Recurso preto e branco. Documental, sensível, rascunho, rabisco.

O trabalho com a cor é árduo, trabalho de pintor, na incerteza opto pelos tons de cinza. Atenho-me às formas, deixadas pelos desenhos dos corpos no espaço. Valorizando linhas, texturas e contrastes. Os tons de cinza também nos trazem sensações de melancolia, neutralidade, incertezas e registro. Momento  incerto. Captura intrusa. Sou intrusa. Mas crio pra mim o mundo a partir do meu ver. Deixe-me mostrar o que vejo?

Leia Minúcias por centímetros.

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Leia também o texto de Dally Schwarz  publicado no Ctrl+Alt+Dança.