L'après midi / Foto: Rosa Frank

7×7 – Um rico diálogo entre as sensações

O idança retoma o projeto 7×7 trazendo críticas de alguns dos espetáculos apresentados durante o Festival Panorama 2010, no Rio de Janeiro, e o Festival Contemporâneo de Dança, em São Paulo. O projeto foi idealizado por Sheila Ribeiro/dona orpheline para promover diálogos entre diferentes instâncias do meio artístico da dança. Para isso, abre espaço para que os próprios artistas do meio possam expressar suas opiniões estéticas e políticas sobre as obras dos colegas. Depois da primeira série de textos 7×7 (clique aqui para conferir), os autores vão criar um blog para reunir todas as publicações.

Raimund Hoghe por Arthur Moreau

A montagem L’après midi, de Raimund Hoghe, apresentada na programação do Festival Panorama 2010, é composta de muitas conversas sintetizadas numa dança altamente sensorial. Em cena, um rico repertório de conhecimento de história da arte, composição coreográfica, topologia da técnica e sensibilidade de mesclar essas sabedorias. Uma mescla de alta harmonia.

Originalmente, L’après-midi d’un faune, ou “A tarde de um fauno”, é o nome de um poema feito pelo francês Stéphane Mallarmé (1842 – 1898), terminado em 1876. É um monólogo sensual lírico das experiências de um fauno que acaba de acordar após a sesta. Ele descreve seus encontros com várias ninfas durante a manhã. Marco da arte simbolista, foi uma obra impactante na época. Tanto que Claude Debussy (1862 – 1918) se inspirou nela ao fazer a composição para orquestra Prélude à l’après-midi d’un faune. O grande Vaslav Nijinsky (1890 – 1950) coreografou a música, sendo também seu protagonista. A estreia da obra foi em Paris, em 1912.

Era o crepúsculo do balé de repertório. Isso porque Nijinsky foi coerente com Debussy. A obra do francês era majoritariamente modal. Ou seja, não havia hierarquia interna entras as notas de suas músicas. Ele dialogava com o impressionismo. Buscava uma arte que estimulasse as sensações nos seus receptores. Assim, a movimentação do fauno foi pensada a partir do que a música suscitou e da situação dada. Até então, os passos e ações dos personagens no balé eram organizados com o ritmo das músicas, que eram tonais.

Raimund Hoghe refaz isso com a crítica contemporânea. Em L’après midi ele utiliza uma trilha musical que combina duas gravações da composição original de Debussy e outras peças de câmara desse autor. E também tocou um lied (arranjo musical para piano e cantor solo) de Gustav Mahler (1860 – 1911), compositor mais épico, de caráter sombrio, mas que também procurou romper os limites da tonalidade nas suas obras. Todas elas fazem parte do pensamento corporal apresentado pelo intérprete Emmanuel Eggermont. Esse amálgama é tributo da percepção do coreógrafo em encontrar um tipo de movimentação e qualidade de estado que sejam férteis nesse dançarino. Essa especificidade conseguiu casar com as músicas tocadas de Debussy, incluindo a música tema.

Essa evolução, tanto do passar do dia, como da história da dança, pode ser uma leitura para as disposições dos copos de leite no palco com o discorrer da duração da peça. No final, o coreógrafo deixa de trabalhar como contrarregra e entra em cena como performer. Sua coluna vertebral deformada e sua baixa estatura contrastam com o corpo bonito e de volume bem distribuído do alto Eggermont. Espelham movimentos, derrubam os copos e desenham com o leite esparramado. Dois corpos incrivelmente diferentes fazendo as mesmas coisas. No final de L’après-midi d’un faune, Vaslav Nijinky se masturbou. Ora, o leite, que é uma metáfora de vida e visualmente semelhante ao esperma, é manuseado diretamente por ambos no final desse L’après midi. Se o fauno é metade humano, metade animal, mas se o humano também é um animal, é revelador esses dois darem luz aos desenhos feitos no linóleo numa peça que é o passado e também é o presente.

Essas relações, e tantas outras não iluminadas aqui, enriquecem a obra. Ela é um convite para aquelas. Criar arte conhecendo, com crítica, a sua história, é um recurso assaz valioso para seus profissionais. O Brasil precisa de mais livros sobre história da dança. Seus artistas precisam se colocar mais vezes perante seus antecessores e saber melhor com quem está dialogando. Afinal, a beleza maior do modo de dialogar está na persistência (de um artífice) de compor uma fala própria, a qual, necessariamente, emerge de realidades previas.

A arte carece mais dos experientes e pesquisadores. Hoghe tem 20 anos atuando como coreógrafo, após uma década de colaboração com Pina Bausch como dramaturgo. Desfilando numa linhagem inventiva, de muita categoria, ele consegue falar por si mesmo. Arte madura e terna.

Arthur Moreau é bacharel em Comunicação das Artes do Corpo (PUC-SP) e pós-graduando em Yôga (UGF-SP).

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