Sofia Dias e Vitor Roriz / Foto: Divulgação

Um vazio relativo

Este texto foi originalmente publicado na edição de janeiro/fevereiro da revista Obscena, parceira de conteúdos do idança. A publicação da revista foi suspensa, leia mais aqui.

Com percursos desde sempre ligados à dança e ao movimento, ela vinda da Escola de Dança do Conservatório Nacional de Lisboa e ele de uma licenciatura em Educação Física e desporto, os projectos de Sofia Dias (1983) e Vítor Roriz (1980) caracterizam-se pela exploração da expressão espontânea dos corpos, assim como pela utilização das inevitáveis compulsões quotidianas como instrumentos criativos.

Em relação à sua linguagem coreográfica, os criadores assumem o processo criativo como gerador de sentido dramatúrgico. A trabalharem juntos desde 2006, dizem que, até agora, nunca partiram “para um projecto com uma ideia concreta sobre a forma final da peça”. E acrescentam: “Fazemos muitos esboços sobre como gostaríamos que ela fosse e também definimos um conjunto de premissas de partida, mas é apenas para gerar reflexão porque, no processo, não temos nenhum pudor em nos desviarmos dessas considerações. Ter confiança no processo significa que é o próprio material que vamos gerando que indica a direcção do trabalho e não tanto as nossas projecções sobre como gostaríamos que o trabalho fosse.”

A metodologia seguida por esta dupla está bem patente em Again from the beginning (2008/09) onde concretizam os seus interesses de pesquisa. Nesta obra busca-se, repetidamente, uma forma que se constrói fora do corpo, pelo corpo. Again from the beginning pode ser visto, explicam, “como um estado ou percurso mental que procura condensar elementos de um imaginário construído em comum ao longo da nossa colaboração. Um imaginário, em parte, sustentado pela necessidade universal de recapitulação, de retorno a um passado próximo e a temas ancestrais da história. A recapitulação integrada num processo de recomeço. Esse recomeço é dado por um gesto que inaugura um percurso físico implicado em trazer para o centro o que a convenção define como periférico: códigos e imagens surgem assim desconexas, desprendidas de lógica ou integradas numa nova ordem. Assumindo o corpo como meio fundamental para a transposição desse estado mental, Again from the beginning é constituído por uma linguagem abstracta, onde o absurdo, o emocional, a representação e a não representação são trazidos para o mesmo plano de relação.”

A convite da companhia Instável criaram O mesmo mas ligeiramente diferente (2010) no qual exploram um “estado performativo”, que, nesta peça, “tem que ver com uma procura constante pelo intérprete de novas intenções e objectivos para a sua acção, sobretudo quando se relaciona directamente com o público através do olhar”. Esta peça caracteriza-se por um vocabulário que já vamos reconhecendo, e que assume o movimento como um modo de subjectivação amplificada pela corporeidade do intérprete: “O mesmo mas ligeiramente diferente é um título, um ponto de situação e de partida.

Por um lado, traduz algo que temos vindo a perceber do conjunto dos nossos trabalhos anteriores. Apesar de formalmente diferentes, há qualquer coisa que identificamos como transversal e semelhante, algo que se tem apurado e que julgamos ser o cerne da nossa colaboração e o seu motor de pesquisa. Essa qualquer coisa parece relacionada com um estado ‘performativo’ e uma forma de articulação ou composição. Elementos que exploramos no sentido do particular e do subjectivo e que na sua utopia reflectem um indispensável e ambicioso ‘ligeiramente diferente’. No processo, isto não é mais do que um esforço de desvio de determinadas fórmulas de interpretação e composição, experimentando um vazio relativo.”

Denota-se no trabalho desta dupla uma constante: partir da identidade de cada corpo, respeitando o fraseado individual, para criar o vocabulário coreográfico que utilizam. Neste sentido, há algo que é transversal nas suas obras e que nos remete para uma forma caracterizada pela subjectividade e universalidade. Quando questionados reconhecem essa aspecto dúplice: “Se por um lado, não faz muito sentido falar de um processo de trabalho porque a cada espectáculo parece ter correspondido um processo muito diferente dos anteriores, por outro, parece-nos que andamos sempre a tentar abordar a mesma coisa, o mesmo sujeito. É uma questão de forma e conteúdo. A forma é mutável em resposta a diferentes estímulos do meio, aos diferentes contextos, às pessoas com quem trabalhamos, aos textos que lemos, mas o conteúdo parece-nos algo de transversal a todos os trabalhos. Como se cada trabalho fosse mais uma tentativa para reformularmos as mesmas questões.”

No trabalho de Sofia Dias e Vítor Roriz a dança revela-se a forma mais eficaz de pesquisar “com base não em temas mas a partir de estados de movimento, relações com objectos, etc. e daí decorrem sentidos e significados que nos podem remeter para determinadas temáticas, por isso o tema é um ponto de chegada”. O movimento é para esta dupla de criadores um dos meios disponíveis para a construção de um espectáculo. O processo de criação passa, assim, pela exploração de novas formas de composição, assumindo a triangulação subjectivo – simulacro – universal como material base de exploração. “Por vezes procuramos materiais que envolvam uma certa dificuldade de execução, não pelo seu carácter virtuoso, mas por nos obrigar a uma concentração constante sobre a tarefa. Achamos que isso nos tira de um certo conforto e complexifica o próprio estado performativo. Essa tensão entre o que se domina e o que não se controla, é o que julgamos exponencial para as possibilidades da presença, pois ela passa a existir para além da nossa capacidade de influência. Desta forma, a improvisação é das ferramentas que mais utilizamos tanto no processo, como nos próprios espectáculos, precisamente por querermos manter uma certa dose de desconhecido ou de imprevisibilidade no trabalho.”

A essa exploração não é alheio o cuidado com a presença configurada do corpo dentro de um espaço-tempo determinado e compartilhado. O intérprete adquire “presença” na relação do seu corpo com um outro corpo. Será o impacto desses corpos que despoleta no espectador sensações e, eventualmente, um sentido. Explicam: “Na exploração do material há sempre uma tentativa de desvio de determinadas fórmulas de interpretação e de composição. Achamos que faz parte do nosso trabalho encontrar formas de articulação inusitadas e zonas onde os códigos não são facilmente identificáveis. Mas procuramos que isso não seja um impedimento para que o público se relacione com as peças, porque simultaneamente procuramos integrar o que temos de mais subjectivo e pessoal, na expectativa que o específico recapitule o universal.

Na peça Unfolding (2009), o espectador é confrontado com um tempo linear que substitui a experiência do presente pela memória do passado e/ou a expectativa de um futuro. Os corpos são, nesta obra, permeáveis ao mundo e aos outros e, nesse sentido, tornam-se desejantes. “Unfolding é a acção de desvendar, de revelar algo gradualmente. A essa acção está associada uma expectativa perante o objecto/corpo a revelar. O momento em que quase reconhecemos o objecto, mas ignoramos a memória, na tentativa de retardar a revelação e prolongar a expectativa. Unfolding é o espaço da potência e da ilusão, onde o pensamento divaga até a razão identificar o objecto e se fixar ao concreto. O corpo, na iminência da revelação, assume a dimensão do nosso imaginário e metamorfoseia-se.”