Uma avaliação em tópicos

O convite para avaliar o 12º Festival Internacional de Dança de Recife proporcionou uma oportunidade de exercitar o meu olhar acerca de formatos possíveis de organizar e curar eventos em dança, bem como de tentar compreender as questões mais pontuais e significativas que, a meu ver, ocorreram nos dez dias de programação, ocorridos na cidade de Recife de 11 a 21 de outubro do corrente ano. Esta avaliação será, certamente, parcial e diversa dos profissionais que vivem o cotidiano da dança em Recife, da equipe organizadora e do público assistiu ao evento.

O Festival chega a sua 12ª edição como um dos mais importantes do país e integrado ao circuito dos grandes eventos de dança internacionais da área, potencializando intercâmbios já iniciados em edições anteriores. O fato de o evento estar inserido num circuito de festivais brasileiros pressupõe o compartilhamento de uma determinada programação. Estas parcerias otimizam custos e promovem o intercâmbio, mas, por outro lado, tendem a direcionar as escolhas dos grupos participantes. Faz-se necessário então, a busca das especificidades e demandas próprias de cada evento, inclusive as locais, em relação a um mundo cada vez mais menos fronteiriço.

Através de mesas-redondas, espetáculos, lançamentos de livros, debates, laboratórios cênicos, mostras de vídeo-dança, intervenções urbanas e conversas em diferentes espaços, contou com um público bastante numeroso, evidenciando que as estratégias de formação de espectadores para a dança por parte da organização do Festival vêm caminhando de forma consistente. O evento cada vez mais se insere na paisagem da cidade, envolvendo escolas e diferentes comunidades e espaços públicos, cumprindo um importante papel formativo, com implicações políticas, sociais e estéticas que merecem uma continuidade.

Inicio a avaliação me apropriando de algumas pistas deixadas pelo coordenador geral, Arnaldo Siqueira, e pelo curador, Ernesto Gadelha. A própria arte, presente em todo o material gráfico do evento, já aponta para um modo de organização e de entendimento de dança e de mundo. Uma rede formada por inúmeros pontos interligados por linhas, dispostos espacialmente numa não hierarquia. Este dispositivo permeia toda a programação do evento, incluindo as escolhas dos espetáculos, das atividades formativas, dos espaços descentralizados, etc.

Podemos aproximar a dinâmica das ações e das conexões múltiplas proporcionadas pelo Festival à noção de rizoma, como me confidenciou Arnaldo Siqueira em uma das muitas conversas instigantes e brincantes que surgiram entre todos os participantes nestes intensos dez dias.

O termo rizoma, originário da botânica e ampliado por Deleuze, funciona como ponto de partida para se pensar as multiplicidades por elas mesmas, visto que o fundamento do rizoma é a própria idéia de multiplicidade. A curadoria deste ano, efetuada com sensibilidade e atentividade por Ernesto Gadelha (nesta e na última edição) não estabeleceu um recorte conceitual tão delimitado, como o ocorrido no ano de 2005, com o tema Tradição e Contemporaneidade, e em 2006, Encontros e Deslocamentos. Contudo, a edição de 2007, ao evocar a questão da memória e do esquecimento carrega traços dos Festivais anteriores e agrega outros, formando uma rede maquinal de referências.

Ao não fixar pontos nem genealogias, a noção de rizoma aponta apenas trajetos de diversos estados e coisas, sem remeter uma coisa necessariamente à outra coisa. Não há uma força uníssona coordenadora dos movimentos, mas uma circulação de estados, uma combinação cujos resultados não podemos prever ou organizar totalmente.

Vemos na escolhas por parte da condenação geral e curadoria o compromisso com e o respeito à diversidade e a multiplicidade das danças locais, nacionais e internacionais, e suas possíveis conexões, problematizando até mesmo a noção de curadoria. Uma curadoria possível dentre tantas questões a serem consideradas no contexto brasileiro, cujas estratégias de organização de eventos demandam acordos tácitos.

As escolhas presentes no 12º Festival Internacional de Dança de Recife parecem ter levado em conta questões ligadas à recepção da obra, e ao acesso a diferentes formas e contextos, permitindo ao artista e ao público que prestigiou o Festival diferentes entradas para o universo das danças de ontem e de hoje. Daí a presença de trabalhos artísticos representantes de determinadas abordagens estilísticas inseridas historicamente, e de outros trabalhos cujo deslocamento ou afastamento das linguagens de dança instituídas, alguns ainda em processo, propicia uma reconfiguração do já estabelecido e uma visão crítica de mundo. Em sua obra Visitations (Visitações) apresentada no Teatro Apolo, a artista francesa Julia Cima nos mostra em sua apropriação de danças feitas por artistas como Isadora Duncan e Nijinsky que a problematização da tradição também pode ser transgressora, dependendo do modo como o artista a organiza.

Dentre as estratégias de coordenação e curadoria do evento, percebe-se a busca por uma equação justa entre as operações de lembrança e de esquecimento, o que não impede a ocorrência de certos lapsos de memória. O debate sobre a preservação da memória da dança ocorreu este ano, no país, em espaços e circunstâncias diferentes, de e o fato do Festival eleger este enfoque, corrobora para o aprofundamento e continuidade de reflexões e ações em torno deste problema, num Brasil que já nos acostumamos a associar com ausência de memória ou de curta memória.

Na homenagem a Airton Tenório, a justa lembrança a este que foi um precursor da dança local, disseminando procedimentos e temáticas que permitiriam a dança inserir-se na contemporaneidade, como aponta Arnaldo Siqueira em texto do programa do Festival. Contudo, faz-se necessário não somente lembrar, mas também esquecer, para que haja espaço para a emergência de outras conexões, como nos alertou Cássia Navas ao evocar a metáfora do corpo território em sua comunicação na ocasião da mesa-redonda O corpo dançante: lugar de memória e de esquecimento. Vele lembrar que as temáticas escolhidas para as mesas-redondas foram bastante pertinentes, com profissionais de destacada atuação nas áreas especificadas.

O Festival cumpriu seu dever de memória e de esquecimento, provocando fricções entre a recordação e a invenção também ao colocar para conversar artistas com formações distintas. Tanto aqueles cujos processos de formação foram realizados em academias ou em espaços acadêmicos, quanto aqueles cujo aprendizado se deu por meio de uma tradição popular ou de uma prática de rua. Como desdobramento de uma das questões mais discutidas na última edição do evento, em 2006, esta edição apontou para outras possibilidades de deslocamento das matrizes populares e urbanas para a cena contemporânea, permitindo aos artistas e ao público que os assistiu um panorama múltiplo, dispostos em rede, da produção em dança neste tipo de perspectiva, presente nos grupos locais, nacionais e internacionais.

O Festival mesclou diferentes artistas e interesses de pesquisa, dos mais jovens aos mais experientes. Nesta edição, apostou na inserção de manifestações gestadas em espaços urbanos, como a dança de rua, o Le Parkour, as práticas de skate e BMX, provocando um embaralhamento de imagens do passado, do presente e de um possível futuro, delegando ao espectador a tarefa de estabelecer suas próprias conexões. Os espaços, outrora chamados de “alternativos”, são hoje mais naturalizados na cena contemporânea, como testemunhou o dançarino de rua e palco Chiquinho da Costa. Este declarou que a rua é seu ambiente de formação e que o palco, era, até então, o espaço alternativo no espaço de discussão no espaço denominado Dança Falada. Este momento da programação do evento, reservado as falas dos artistas, reunia nos finais de tarde para uma conversa aqueles cujas obras haviam sido apresentadas no dia anterior, junto a demais interessados. Este é um dos espaços que merecem uma atenção especial por parte da organização e curadoria, no sentido de se pensar estratégias para a sua consolidação e visibilidade frente aos demais itens da programação.

No transcorrer destes dez dias, outras conexões se tornaram perceptíveis, comprobatórias do momento profícuo que vive os profissionais da dança de Recife e de arredores. As questões sobre formação em dança, envolvendo as práticas realizadas em salas de aula, de ensaio e de espetáculo, especialmente nas relações entre tradição e contemporaneidade estão sendo discutidas em diferentes mídias e contextos, envolvendo diferentes profissionais locais.

Durante o evento fui presenteada com a Revista Movimento, sobre Ensino em dança, editada por Marcelo Sena, Marília Rameh e Monica Lira, integrantes do coletivo Movimento Dança Recife. As ações mobilizadoras deste coletivo vêm alcançando repercussão, como a tão aguardada implantação de um Curso superior de Dança na Universidade Federal de Pernambuco. Abre-se a perspectiva deste curso proporcionar condições para uma maior continuidade e sistematização do conhecimento e a legitimação institucional para um circuito já existente de projetos, ações, eventos e pesquisas voltadas para a dança, atravessado por abordagens teórico-práticas. Abordagens estas presentes em Projetos como o Acervo Recordança, por exemplo, referência hoje em ações do gênero no país.

O alargamento de conceitos e a revisão de preconceitos a cerca da dança popular e suas relações com a dança contemporânea se faz presente e de forma inexorável no Festival, e não é de hoje, e não se exaurirá nesta edição, certamente. As operações, tão discutidas na atualidade, referentes a processos culturais de mesclagem e hibridização entre popular e erudito, tradição e contemporaneidade encontram da dança recifense uma terreno propício para emergirem com propriedade.

Vê-se esta questão latente nos debates em espaços acadêmicos ou não, em eventos, publicações, etc., bem como na cena, representado nesta edição especialmente por meio da figura do “brincante” recifense Helder Vasconcelos. Por outro lado, observa-se outras práticas “brincantes”, mais urbanas, como as de Diogo Granato, de São Paulo, e do mineiro Vanilton Lakka e seus convidados, presentes também neste evento. Com formações distintas, mas com certas semelhanças de conduta em cena e de procedimentos de improvisação e composição estes artistas apontam para questões importantes, referenciados em sistemas culturais e organizações técnicas estruturadas em espaços de formação pouco legitimados. O que contraria aqueles que entendem a cultura popular como algo imutável, a ser preservado como peça fixa.

O deslocamento das tradições ditas populares de seu entorno original, de forma respeitosa e apropriada, como o vem fazendo Helder Vasconcelos, por meio do Cavalo Marinho na obra Por si (em parceria com o diretor italiano Armando Menicacci), só faz ampliar as potencialidades técnicas e estéticas das danças e folguedos. Num jogo entre memória e esquecimento, há um confronto, crítico e relacional às práticas contemporâneas de formação, improvisação e composição cênica. Estas questões saltaram da cena e foram problematizadas no espaço Dança Falada.

Na contramão das velhas e estanques polaridades entre tradição e contemporaneidade, popular e erudito, os artistas da dança em Recife nos ajudam a refletir sobre o que é formação e criação em dança, hoje. A edição deste ano permitiu um reconhecimento maior de que a tradição popular e seus modos de organização próprios, longe da informalidade que lhe é comumente atribuída, podem converte-se em matéria para uma leitura crítica da contemporaneidade numa perspectiva formativa e estilística. Estas questões afloram também nas pesquisas relacionadas ao frevo, por parte de Marília Rameh e Valeria Vicente, citando somente dois exemplos de um universo maior.

Algo de singular e genuíno vem sendo maquinado na dança recifense, cuja latência pudemos conferir mais uma vez nesta 12 edição do Festival. Estas ações possuem um longo histórico e estão sendo gestadas, na atualidade, fora dos circuitos e dos holofotes comumente voltados às manifestações da cultura popular, descaracterizadas muitas vezes pelas demandas de mercado. O antigo e ainda acalentado sonho armorial de legitimar a cultura popular atualiza-se em suas diferenças. A dança clássica, outrora passaporte para a incursão das danças populares no ambiente cênico, é cada vez mais menos requisitada, permitindo que a própria movimentação e outros elementos das tradições populares sejam referenciais, bem como outras abordagens técnicas, numa condição menos hierárquica. Isto vem ocorrendo com pesquisadores de dança de Recife de dentro e de fora da universidade, em diferentes níveis de investigação, num movimento que contribui para a reflexão a cerca da dança que se faz hoje no Brasil, e suas identidades. E o Festival vem abrigando em sua programação esta particularidade do contexto recifense.

O artista, na atualidade, mais do que um criador, é um sempre um intruso em outros campos, um explorador de linguagens, manipulando-as e construindo ligações entre elas. Inventa dispositivos para habitar formas de arte historiadas, reativando-as. Algumas questões podem derivar daí, tais como:

(a) Como pensar a produção artística situada fora dos grandes centros urbanos e examinar as inquietações que se operam em artistas inseridos num circuito chamado “periférico”?

(b) Como olhar as diferenças resultantes da incorporação de certas perspectivas modernas e contemporâneas, e no caso de Recife, aliado a já incorporada tradição popular?

As idéias geradas pelos artistas recifenses, contudo, precisam de meios e de um terreno propício para se propagarem e se consolidarem, o que inclui aspectos formativos e, certamente, de políticas públicas de continuidade para a dança. Ao promover oficinas e laboratórios de pesquisa e criação não somente no período do evento, mas no transcorrer do ano, propiciando aos profissionais locais um intercâmbio com seus pares locais, nacionais e internacionais o Festival trás para si algumas das responsabilidades inerentes a instituições responsáveis pelas políticas públicas. A previsão de orçamento para bolsas de pesquisa aos coreógrafos envolvidos nos já instituídos Laboratórios e Oficinas poderia, por exemplo, propiciaria um maior comprometimento e condições de trabalho para a continuidade deste programa de incentivo a pesquisa, aliado a abertura de um espaço para a apresentação de resultados parciais ou finais no próximo Festival. Cabe também aos profissionais locais abraçarem esta perspectiva, reafirmando a demanda e necessidade desta.

As questões abordadas anteriormente, relacionadas às noções de tradição e contemporaneidade e seus possíveis deslocamentos, reforçaram certas identidades locais já postas, por exemplo, e que distinguem este de outros eventos, tanto nacionais como internacionais. A curto, médio e longo prazo as questões postas pelos trabalhos artísticos irão reverberar nos profissionais locais e nos espectadores. Algumas coisas permanecerão na memória, outros serão esquecidas. Para a próxima edição, se faz necessário puxar alguns fios desta rede já formada, bem como pinçar outros pontos para estabelecer conexões que possam propiciar a aquisição de novos repertórios e leituras de mundo, tanto para os artistas quanto para os espectadores e para a comunidade recifense.

O evento descentralizou-se ainda mais, não somente conceitualmente, mas espacialmente, conquistando, esperamos que definitivamente, espaços públicos da cidade, alguns deles pontos de agudos conflitos sociais. Esta conquista, depois de um processo longo e paciente processo de namoro, capitaniados por Arnaldo Siqueira e sua equipe, ganhou fôlego este ano, e esperamos que se espalhe cada vez mais pela paisagem da cidade.

A cidade vem se apropriando do evento de forma significativa, nos diferentes espaços propostos. A receptividade de comunidades como a de Nascedouros de Peixinhos, Parque 13 de maio, e Escola Assis Chateaubriand aos eventos lá ocorridos comprova a pertinência da iniciativa. O público numeroso que compareceu ao magnífico Teatro Santa Isabel, em detrimento de sua chegada tardia ao horário estipulado para o início dos espetáculos e a dispersão ocasionada (que interfere na recepção da obra), aplaudiu entusiasticamente as obras coreográficas escolhidas pelo evento. A programação destinada a estes espaços citados, em seus contextos sociais extremamente distintos, contribuiu para ampliação da rede de conexões possíveis para a consolidação do evento, promovendo o acesso a arte à comunidade da cidade que abriga o 12º Festival Internacional de Dança de Recife.