Elisabete Finger fala sobre os dois anos do Discoreografia e a nova edição com Ney Matogrosso

O projeto Discoreografia – Música, dança e blábláblá completa dois anos, com uma edição em vídeo com o cantor Ney Matogrosso. O projeto, que inclui entrevistas em áudio e vídeo com artistas que falam do seu processo de criativo a partir de músicas que consideram significativas, foi criado pela bailarina e coreógrafa Elisabete Finger, com realização do Itaú Cultural e do Ministério da Cultura.

Ao longo desses dois anos, passaram pelo Discoreografia artistas como Wagner Schwartz, Gustavo Ciríaco, Jorge Alencar, Marcelo Evelin, Thembi Rosa. Na primeira edição, o entrevistado era eu e, hoje, ironicamente, sou eu que entrevisto a Elisabete, que fala um pouco do que foi a experiência do programa e dos projetos para este próximo ano.


Eu percebo que do início pra agora mudou o perfil do programa. No começo parece que era mais voltado a artistas da dança e depois se abriu um pouco. Foi isso mesmo?

Elisabete Finger: Desde o princípio o projeto tinha relação com o que eu tenho chamado de “artes do corpo”, na falta de um termo melhor. São artistas criadores, que trabalham a partir do corpo ou que chegam nele. Mas no começo eu fui muito direcionada ao meu meio, as pessoas que eu conheço, mas a gente já tinha essa preocupação de sair um pouco disso.

Discutimos isso, por exemplo, sobre esse nome “Música, dança e blábláblá”, se não ia ficar muito fechado em artistas da dança. Mas a gente entendeu que a música, por si só, tem muita relação com a dança, não só essa dobradinha música-dança que se pensa normalmente, mas também uma incorporação, as pessoas trazem a música muito pro corpo. Quando eu falo pras pessoas sobre música, elas fecham o olho, elas batucam, incorporam mesmo.

Mas pouco a pouco eu fui tentando sair mais dessas minhas referências e tentando chegar em artistas que estão criando a partir do corpo, outros artistas que também estavam nesse meio. E sempre tentando pensar também em relações menos evidentes, porque normalmente quando se fala em música e dança, as pessoas tendem a imaginar essa relação de dançar a música. O Discoreografia também sempre teve essa curiosidade, de encontrar outras relações entre dança e música. No segundo ano, foi quando a gente conseguiu mais sair desse circuito da dança contemporânea.

Quais foram os artistas que você entrevistou que estavam mais longe desse circuito?

EF: Agora, o Ney Matogrosso, claro, mas antes disso, teve a Sonia Abreu, que pra mim foi um prazer enorme. Foi legal por ser de uma outra geração e por ela ser DJ. Então a aproximação dela com a dança é de outro jeito. Ela fala que começou a colocar música pras pessoas dançarem aos 15 anos, então 50 anos fazendo isso, e assistindo essa dança literalmente de camarote, na cabine, observando a transformação que a música produz nos corpos. Ela pensa uma dramaturgia pra noite. Eu perguntei pra ela como ela resolve quando o que ela planejou dá errado, e ela me respondeu que nunca dá errado. Só acontece o que ela quer que aconteça.

Então o modo como ela conduz essa dança pra mim foi muito interessante. E ela teve uma banda, a Banda do Quarto Mundo, que ela dirigia, tinha um pensamento cênico, coreográfico – e ela fez vários trabalhos, lançou discos, fez videoclipes, entre vários outros, e eu perguntei qual tinha sido o mais intenso, e ela falou que foi o palco. Que colocar a música e a dança num palco juntas era uma experiência de energia coletiva única.

E o Ney agora também. Na verdade eu descobri um Ney muito mais próximo da dança do que eu podia imaginar. Ele não estudou dança, mas ele conhece, se interessa por Nijinski, pela Sagração da Primavera, ele é um grande performer. Ele tem a vontade de colocar o corpo em situações limite… Ele é um performer, acima de tudo. Ele conta que não estudou música, não estudou dança, ele foi fazendo. E, apesar de ser de um jeito espontâneo, teve muita pesquisa.

Teve também a galera do Passinho. Porque eles fazem dança, mas é um pensamento sobre a dança muito diferente.  A primeira coisa que me impressionou foi o jeito deles de estudar, porque eles estudam no Youtube. Um faz um vídeo, coloca no Youtube, o outro desafia, fala “faço um vídeo melhor que o seu”, um aprende o passo do outro, e vão construindo um conhecimento de dança em cima disso e, assim como no caso do Ney, é um conhecimento que vem da prática.

E a ideia de batalha, porque os festivais, os eventos normalmente são competitivos. No nosso meio a gente crucifica a competição, porque como vai avaliar uma coisa tão subjetiva? Como vai dizer que um é melhor que o outro? Eles encaram isso de uma outra forma. Competir pra eles é bom. Essa provocação que vem com a batalha faz eles crescerem, mas tem um jeito muito leve de lidar com isso.

Esses encontros com essas pessoas me fizeram repensar muitas coisas sobre dança que eu já tinha como certas. E mesmo os encontros com outras pessoas que são do mesmo meio, mas de outras gerações, de outras escolas, que trabalham com criação de um jeito muito diferente, como o Rodrigo Pederneiras e o Rodovalho. Uma coisa legal do discoreografia é que mostra uma parte da criação que é invisível. Porque normalmente quando você vai ver um trabalho você não tem acesso a isso.

Você acha que também tem uma função de registro histórico?

EF: O que eu sempre achei é que a gente conta muito mal a nossa história. Eu fico feliz porque o Disocoreografia também demonstrou essa possibilidade, de ser um arquivo de vozes desses criadores. Até quando eu fui fazer o post sobre os dois anos do projeto, eu falei disso. Falei que se algum arqueólogo achar isso no futuro vai ter uma ideia de como a gente cria hoje.

Mas uma preocupação maior que a de registro é a preocupação com público. Eu acho muito preocupante você ter artistas fazendo um trabalho bom, consistente, e quando eles vão mostrar ter tão pouco público. Então pra mim tem um pouco essa missão, mostrar formas de falar sobre essas artes do corpo, falar sobre o trabalho, sobre o fazer, pra atingir outros públicos.

O programa também tem participado da programação de festivais, como apareceu essa ideia?

EF: O Discoreografia tem três formatos possíveis, por enquanto. Tem os programas em áudio, os programas em vídeo e a participação nos festivais. Nesse segundo ano, foi o ano em que a gente foi mais atrás das pessoas. Tinha uma ideia de ir até o lugar onde a pessoa trabalha e ter a textura sonora desse ambiente, que pra gente também faz parte desse arquivo.

Quando surgiram os festivais, não foi uma ideia minha, foi um convite do Interação e Conectividade, em Salvador. Foi uma proposta do Neto [Machado] e do Jorge [Alencar] que me convidaram pra testar fazer o programa ao vivo, com público assistindo, o que tinha muito a ver com o nosso objetivo.

Eu lembro, quando a gente conversou sobre o projeto há muito tempo, que você falava muito do teu interesse por áudio, pelo rádio, por essa mídia sonora. Como veio a ideia de fazer programas também em vídeo?

EF: O que eu acho maravilhoso do áudio é que ele dá um poder de criação para a pessoa que ouve, porque ela completa a informação sobre isso que ela não vê. Mas também o que acontece é que muita gente não escuta, porque as pessoas estão muito interessadas por imagem. Então, como a gente tem essa preocupação com o público, pensamos como é que a gente pode chegar no Youtube, pra falar com outros públicos? Mas a ideia é que as pessoas possam chegar por aí e talvez se interessar em ouvir os outros programas.

Então, pelo Youtube, a gente pode chegar num público que é mais jovem, que se interessa por dança, mas que talvez não se interessasse por dança contemporânea.

Mas o foco é sempre o áudio?

EF: Eu começo a achar que as duas coisas são possíveis. Tem uma diferença prática, porque um programa em áudio é muito mais barato e muito mais simples de fazer do que um programa em vídeo. E eu continuo tendo esse fascínio pelo áudio, pelo rádio, acho uma mídia muito interessante. Mas por outro lado, o alcance do vídeo é muito maior.

Agora, pra mim, tem uma outra diferença do áudio pro vídeo, porque envolve uma outra performatividade. No vídeo, eu me vejo performando pra câmera. E tem uma série de outras decisões sobre o que vai mostrar, como vai mostrar. Eu me pego coreografando os vídeos, tem que ver onde senta, em que local faz, como faz.

No programa com a galera do Passinho, por exemplo, a gente criou uma ceninha. Eu fiquei pensando “como eu vou aparecer?”. E aí a gente criou aquela ceninha em que um deles vem, e me tira pra dançar, e aí eu entro. No programa com o Ney, a ideia era mostrar os discos dele e ficar ouvindo os discos, mas tinha uma questão prática sobre como mostrar os discos, e aí a gente decidiu espalhar todos no chão e sentar no chão. Enfim…

E tem a edição também né? Tem várias camadas de edição que modificam completamente a informação: você decidiu o que vai perguntar, você decide o que tem que cortar, como cortar, o clima, o ritmo. E o público final vê o resultado como se fosse o fato em si…

EF: Olha, eu procuro fazer o Discoreografia em dois dias. Então, no primeiro dia eu encontro o artista, ele traz uma lista de dez músicas. Dessas dez a gente escolhe cinco ou seis, e nisso eu vou vendo os critérios, o que a pessoa acha mais importante. E juntos a gente faz um roteiro. E a gente tenta seguir. Isso, por exemplo, não funcionou com a Sheila [Ribeiro]. Eu fiquei três dias tentando fazer um roteiro, mas não encaixava, e quando a gente chegou lá e decidimos ir conversando e colocando música.

Aí eu percebi como cada roteiro tem muito a ver com o processo de criação do artista. A Sheila é uma pessoa cheia de hiperlinks, tudo o que a gente falava abria uma nova janela, e o programa ficou com essa cara. A estrutura do programa revela o pensamento do artista.

Fazer o roteiro pra mim é um momento muito importante, porque também é entender como eles querem ser ouvidos, o momento quando a pessoa se apodera do programa, consegue dar a cara dela. E quando a gente vai pro estúdio, eu tento ter um roteiro com poucos cortes, o que eu acho que faz muita diferença. A gente só corta, por exemplo, quando a pessoa engasga, ou quando ela quer repetir. Eu fui aprendendo isso, a deixar a pessoa se expressar ali e ajudar nesse processo.

O que você planeja pro Discoreografia a partir desse terceiro ano?

EF: Uma coisa é que tem muitos artistas pra discoreografar, tem muita gente com quem eu ainda gostaria de conversar e não consegui. Mas, além disso, eu queria sair ainda mais desse circuito da dança, porque tem muitos perfis que a gente ainda não acessou. Por exemplo, teve gente da música, gente que trabalha com o povo da dança, mas ainda não teve ninguém das artes visuais e do cinema, que é uma coisa que eu gostaria de fazer. Ainda mais agora que a gente tem trabalhado com vídeo, eu gostaria de ter a perspectiva deles sobre o roteiro, e sobre como a música pode atravessar esse processo. E gente do teatro também.

E tenho interesse também numa proposta mais investigativa, de não fazer vídeo só com pessoas conhecidas, mas também trazer gente que a gente não conhece, fazer alguns minidocs com artistas pouco conhecidos e ir até o local de trabalho deles.

 

 

Para ouvir as edições em áudio, clique aqui. As edições em vídeo, você pode encontrar no canal do Itaú Cultural no Youtube. E veja a última edição, Discoreografia com Ney Matogrosso: