Uma conversa com Pina Bausch

O trecho abaixo faz parte de uma conversa com Pina Bausch, realizada no mês de abril, em Lisboa, por ocasião das apresentações do espetáculo Para as Crianças de Ontem, Hoje e Amanhã. Confira o texto na íntegra na Revista Obscena #4, disponível online em pdf. Moderação de Mónica Guerreiro.

Começo por dizer boa tarde a todos. A Companhia Nacional de Bailado desafiou Pina Bausch a juntar-se às celebrações do seu 30º aniversário e eu agradeço o convite para conduzir esta conversa, que pretende ter a participação de todos. Nos próximos dias 5, 6, 7 e 8 de Abril apresentar-se-á neste teatro (Camões) o espetáculo Para as Crianças de Ontem, Hoje e Amanhã, pelo Tanztheater Wuppertal, que Pina Bausch dirige há mais de 30 anos. A peça estreou em Março de 2002, no rescaldo do ataque terrorista em Nova Iorque. Pelas críticas publicadas um pouco por todo o mundo, salienta-se um ambiente de tensão e densidade emocional em torno da idéia de inocência perdida. A coreógrafa evoca ainda uma lenda ameríndia sobre o nascimento do primeiro morcego, que conta que um esquilo foi audaz ao ponto de salvar o sol, que se havia enrolado nos ramos de uma árvore. Roendo a madeira, e ficando chamuscado pelo calor, o esquilo mostrou bravura e foi recompensado pelo sol com o dom de voar, fazendo-lhe crescer asas. A noção de gratidão, da pureza das crianças, serão esses os tópicos do espetáculo? Pergunto-lhe se poderá partilhar conosco as suas motivações para esta peça?

Estou muito impressionada com o que acabou de dizer. Para mim é sempre muito difícil dizer em palavras realmente o que ali está. Seria muito melhor se tivéssemos esta conversa depois de terem visto o espetáculo, tornaria tudo muito mais fácil. Se eu pudesse dizer tudo isso, de forma direta, dado que tem tantas camadas de sentidos, então não precisaria de fazer coreografias. Para mim é mais importante que, quando uma pessoa vê um espectáculo, se relacione com aquilo que pensa, com o que sente. Não quero ter de dizer para onde é que a pessoa deve olhar nem o que deve procurar. Para mim é importante que cada um seja confrontado com a peça e veja o que acontece. Como sempre no meu trabalho, creio, há muitos humores diferentes, o que é ainda mais verdade quando se vê a peça várias vezes, porque ela provoca idéias diferentes, fantasias diferentes… Ela própria também muda. Eu sei que a resposta não é muito boa, mas o que posso dizer (risos)? É muito difícil para mim. Mas é verdade que há essa história, como disse, e foi um espectáculo nascido numa época muito difícil, foram tempos difíceis, e surge depois de muitos outros trabalhos… E como tem muitas coisas dentro dela, eu não diria diretamente que é sobre um aspecto, como esse que referiu.

Tem sido referido muito comumente, desde que deixou de coreografar para uma música específica e a abordagem dança-teatro se tornou prioritária, que a dança já não é para si uma preocupação, mas que resulta de uma combinação de elementos: movimento, teatro, cenografia, música e humor, tal como acabou de dizer. Vê as suas Stücke como estando “entaladas” entre teatro e dança?

Quando recuo e observo os muitos trabalhos que já fiz, houve várias mudanças. Claro que houve um período em que havia sempre dança, acho, mas em que nos perguntávamos muito o que era a dança, até onde ia a dança e se queríamos só uma dança “estética”, se era isso que importava. Estão sempre presentes muitas formas e imagens diferentes… Para mim foi importante perceber o que eu queria dizer, o que precisava dizer, no sempre curto período de tempo de criação da peça, encontrar a forma que dissesse isso, a melhor maneira de impressionar, ver o que eu era capaz de fazer. Então já não importava se era através disto ou daquilo, desde que me ajudasse a expressar o que eu queria. Mesmo isso que diz, que as peças têm menos dança, isso já vem de há muito tempo! Já estive num período em que havia imensa dança, e agora está a mudar outra vez. Vem e vai como em grandes ondas, olho para as peças dentro do período temporal em que elas foram feitas. E não sei para onde vou. Nunca planejo que vou agora fazer mais ou menos dança, isso não importa. A pergunta é: como nos sentimos neste momento? Eu e a companhia? As peças são feitas numa determinada altura, e isso tem muito a ver como o que dali sai.

Há, portanto, pouca margem para a teoria, para a análise…

Oh, agrada-me muito não te de me preocupar com a análise (risos), não gosto de categorias, quero sempre escapar disso.

Mas tentemos agora pensar nos críticos que, esses sim, não podem escapar à escrita e à análise. Considera que há diferenças de abordagem entre um crítico de dança e um crítico de teatro? Lê as críticas, sequer?

Li, em tempos (risos). Deixei de ler há muito tempo, porque tem uma grande influência no trabalho de uma pessoa. Não tanto porque pode ser muito depressivo, e pode, mas principalmente quando há muitos elogios, quando se diz que algo é absolutamente maravilhoso… É um grande prazer, sim, mas torna-se complicado. Fico contente se sinto que alguém fala da peça e questiona porque é que é assim, porque é que se fez assim… Mas os elogios são contraproducentes, de certa maneira. É pela mesma razão que os meus bailarinos muitas vezes se queixam: não lhes estou sempre a dizer que a dança é muito bonita, ou que eles dançam bem, ou o que seja. Não. Falamos sempre de como é que se poderia fazer melhor. Da minha experiência, é verdade que já fiz elogios, algumas vezes – também, depende da pessoa, devo dizer – mas tenho a experiência de trabalhar com pessoas que querem fazer sempre melhor. E, às vezes, melhor do que uma coisa que já é absolutamente maravilhosa, que não tem melhor. Sinto que, quando lhe dizemos que está muito bonito e bem feito, é como se perdessem a inocência, como se não fosse possível recuperar essa sensação de algo tão bonito que é intocável, que não se chega lá. Porque passaram a saber que conseguem fazer, que são impressionantes. É fabuloso ter críticas ótimas, sim, mas pode ter este efeito perverso… O bom é bom, pronto. Para mim é muito importante manter essa linha, muito tênue, essa fronteira, para lá da qual as pessoas já sabem demasiado. No nosso trabalho sinto que é assim. Pode ser completamente diferente noutros trabalhos.

Referiu há pouco que ao longo da sua carreira, que é longa e muito preenchida, houve muitas vezes alterações. Nesse movimento evolutivo, onde é que se encontra agora? Como é agora o seu processo, o seu método de criação?

Neste longo processo, há momentos muito importantes. Um deles, sem dúvida, foi quando comecei a trabalhar em Wuppertal: nunca tinha tido uma companhia grande, fizera apenas pequenas coreografias, e estava aterrorizada, tinha medo dos bailarinos, que estavam ali, à espera que eu os orientasse, a perguntar-me o que fazer. Tinha medo de prometer coisas que não fosse capaz de fazer. Foi um período difícil, no qual eu preparava tudo, tinha sempre tudo pronto para o caso de, se me perguntarem, eu não ser apanhada a dizer que não sabia. Depois, durante o trabalho, aconteciam coisinhas pequenas, laterais, que de repente me pareceram interessantes, por alguma razão. Então tornou-se uma hesitação entre seguir o meu plano à risca, ou ir atrás destes pequenos detalhes que, por alguma razão, me chamaram a atenção e que eu não faço idéia para onde me vão levar. Escolho esta última forma. Deixei de saber exatamente para onde vou. Isso é muito complicado e difícil, porque ali está uma companhia, há uma data de estréia, e não há música, não há espetáculo; só existe a vida. Essa é a minha situação. E muitas vezes penso que não o voltarei a fazer. Todas as vezes, penso que se acabou, que foi a última vez… E fico deprimida porque não encontro o que quero, mas antes que me dê conta, já estou a começar outra vez. Claro que ainda espero um dia encontrar aquilo que quero fazer…
Mas, bom, depois houve outro momento determinante: uma co-produção com um teatro perto de Wuppertal, em Bochum. Pediram-me para fazer um trabalho sobre uma peça de Shakespeare, que encenasse um espetáculo teatral, o que para mim seria impossível. Chegamos enfim à conclusão de pegar uma peça de Shakespeare apenas como base para o trabalho, e escolhemos Macbeth. A peça tem um título muito longo: Er nimmt sie an der Hand und führt sie in das Schloß, die anderen folgen – Ela pega-lhe na mão, leva-o para o castelo, os outros seguem [1978]. Nesta peça, não tinha tanta gente, mas tinha alguns bailarinos, atores, um cantor e um maestro. Esta combinação impediu-me de trabalhar da maneira a que estava habituada. Então pensei como é que deveria fazer para encontrarmos juntos as coisas que queríamos. Comecei a fazer-lhes perguntas sobre partes da história, para que todos pudessem responder e participar. Descobrir este processo de trabalho foi muito importante: é incrível a quantidade de coisas que podem acontecer por esta via. E ainda trabalho assim. Na verdade, isso não quer dizer que queira sempre trabalhar assim, só quer dizer que ainda não encontrei um processo melhor. É fazer as perguntas, mas também trazer idéias e histórias, experiências, criar os materiais, porque ainda não se está a fazer a peça, depois só se vão usar dez ou quinze por cento desses materiais. Depois tentamos perceber, dessas coisas, quais é que a nossa sensibilidade nos diz que pertencem ali, de alguma forma.
Outro momento importante foi quando me convidaram pela primeira vez para fazer uma co-produção. Isso voltou a mudar tudo. Quero dizer, há coisas que se mantêm… O Teatro Argentina, em Roma, pediu-me para fazer uma peça sobre a cidade. Claro que isso é impossível, posso lá fazer uma peça sobre Roma, com toda a história, tudo… Então aceitei fazer um trabalho em que, talvez, me deixasse influenciar por Roma e o que lá encontrasse. Então criámos um plano e fomos com os bailarinos três semanas para Roma, para simplesmente estar lá, aprender com as pessoas que conhecemos, com os filmes, com a música… E fizemos Viktor. Foi a primeira vez que isto aconteceu e foi muito importante porque abriu tantas portas novas, tantas possibilidades que eu nunca teria imaginado. Todas as coisas que eu gostaria de saber, aprender, conhecer, cheirar… Foi inacreditável. Depois de Roma seguiram-se muitas outras, muitas cidades ou países. E tem sido uma experiência interminável, maravilhosa e inesquecível, uma dádiva, mesmo, para mim e para a companhia. E tivemos a mesma experiência belíssima aqui em Lisboa, com Masurca Fogo. Sinto-me muito grata, porque nos permite uma sensação de intimidade com um lugar, com um país, com tudo aquilo que se experimenta, com a confiança que depositam em nós. As pessoas querem mostrar-nos coisas sobre elas, sobre o país que amam, não as coisas turísticas, mas as coisas especiais, bonitas, difíceis… Fica algo tão forte em nós deste sítios que passa a fazer parte da companhia. As peças ficam no nosso reportório e nascem de períodos muito intensos e experiências de enorme beleza. Já o fazemos há vinte anos, começámos a fazer co-produções em 1986. Mas não fazemos só isso: esta peça que trazemos agora não é resultado de uma co-produção.