Uma entrevista imaginária | Uma entrevista imaginária

O que é o projeto DANÇAR O QUE É NOSSO? O que está na sua origem?

DANÇAR O QUE É NOSSO não é um projeto isolado, mas antes uma designação genérica que exprime o nosso desejo de conceber e experimentar a dança contemporânea para além da sua base histórica no mundo ocidental. Desde 1998 temos desenvolvido várias iniciativasconcretas para promover o intercâmbio e manter o relacionamento entre artistas e organizadores na África de expressão portuguesa, no Brasil e em Portugal.

Tudo começou de uma maneira muito simples. Na primavera de 1997, Mano Preto e Zezinho Semedo, da companhia de dança cabo verdiana Raiz di Polon, vieram ter conosco com uma proposta para colaborar num projecto que incluía formação, co-produção e a organização de um festival internacional de dança em Cabo Verde. Este convite não foi para nós uma total surpresa. Mónica Lapa, co-directora do Danças na Cidade, já tinha dançado com eles e com outros membros da companhia na produção Dançar Cabo Verde, uma criação de Clara Andermatt e Paulo Ribeiro para Lisboa 94 – Capital Europeia da Cultura. Um ano depois, voltou a Cabo Verde com a companhia de dança da Clara para uma residência de dois meses que incluiu a criação de um novo espectáculo e um programa intensivo de workshops e aulas para a comunidade local de dança.

A proposta da Raiz di Polon surgiu na hora certa. Poucos meses antes tínhamos organizado aquarta edição do festival Danças na Cidade, o primeiro a ser um festival internacional de dança e não apenas um acontecimento a nível nacional. Ao pensar nas implicações de organizar um festival internacional afigurou-se-nos logo desde o início que os nossos contactos e colaborações se faziam quase exclusivamente com artistas e organizadores do mundo ocidental. Se o nosso festival se destinava a ser um lugar de encontro e intercâmbio onde sepudessem confrontar idéias e partilhar experiências, pareceu-nos lamentavelmente empobrecedor deixar de lado a maior parte do mundo. Em particular no que se refere aos países de expressão portuguesa, tínhamos curiosidade em saber o que se passava nestaspartes do mundo com as quais partilhamos 500 anos de história, a nossa língua e boa parte da nossa cultura.

Quer dizer, o projeto nasceu de uma curiosidade?

Curiosidade parece-me um pouco leviano. Diria antes que nasceu de um interesse genuíno –que se tornou ainda mais intenso à medida que aprendíamos mais acerca das vidas e dotrabalho dos nossos colegas de Cabo Verde, Moçambique e Brasil. O interesse é um bomponto de partida porque é algo que temos em comum. Eles sabem muito pouco sobre o que sepassa em Portugal ou na Europa e nós não sabemos praticamente nada acerca do meio dadança nos seus países. Por isso, quando nos encontramos, todos partilhamos a mesmacuriosidade. A este nível estamos iguais – igualmente ignorantes.

Porquê os países de expressão portuguesa?

Devo admitir que sempre tivemos certas reticências em relação a isso. É fácil confundirem-noscom mais uma das muitas iniciativas suportadas pelo governo para promover relações políticase comerciais com as ex-colônias. A primeira vez que nos deslocamos a Moçambique, osartistas e organizadores com quem falamos eram muito críticos acerca do termo ‘Lusofonia’ –para eles tinha fortes conotações com o desejo português (real ou sentido) de manter uma influência direta em vários aspectos da vida e da política moçambicanas. Maisconcretamente, aos seus olhos o termo lusofonia estava viciado pelas muitas iniciativasculturais subsidiadas e unilateralmente organizadas pelos meios oficiais portugueses dacooperação. Por exemplo, um realizador Moçambicano disse-nos que a frágil indústriacinematográfica local tinha sido varrida quase por completo pela introdução do canal estatalportuguês RTP ÿfrica porque este começou a importar produtos estrangeiros baratos etecnicamente bem realizados (especialmente de Portugal e do Brasil) com os quais osrealizadores locais não podiam competir; queixou-se de que as poucas produções criadas emMoçambique estavam a ser feitas por equipes cujos membros eram quase todos importados.Mas, apesar das implicações políticas e econômicas freqüentemente questionáveis do conceitode mundo ‘Lusófono’ (e também da Francofonia ou da Commonwealth, já que falamos disso),este não deixa de ser uma realidade. As culturas moçambicana, angolana e cabo verdiana têmuma grande presença em Lisboa (apesar de estarem à margem da cultura ‘oficial’) pelapresença de grandes comunidades de imigrantes destes países. Quem viu a peça da PinaBausch Mazurka Fogo em Lisboa terá certamente reparado que a presença africana ebrasileira em Lisboa foi uma grande fonte de inspiração para a peça. Além disso, muitosportugueses – os chamados retornados – nasceram nesses países; Angola, Cabo Verde,Moçambique, São Tomé e Príncipe e a Guiné Bissau foram consideradas como provínciasportuguesas até muito recentemente, 1975, data em que se tornaram independentes noseguimento da revolução portuguesa de Abril de 1974. Assim, uma vez que tínhamos quecomeçar por algum lado a nossa descoberta da dança contemporânea não-ocidental, fezsentido começar pelos países de expressão portuguesa. Para além das razões culturais,também sentimos que, como organização portuguesa, tínhamos uma responsabilidadeespecial para com as ex-colônias.

Isso quer dizer que o DANÇAR O QUE É NOSSO também nasceu de considerações éticas?

Sim, pode-se dizer que sim. Como organizadores achamos que nos cabe a obrigação de fazerum esforço efetivo para ir ao encontro dos nossos colegas do Sul. Há um enorme fossogerado por uma história de exploração, desequilíbrios econômicos e políticos, falta de realinteresse e muitos preconceitos. Se nós, no nosso pequeno campo de trabalho, pudermoscomeçar a fazer alguma coisa nesse sentido, então acho que é importante que o façamos. Osprimeiros passos são naturalmente um bocado maljeitosos, mas se não nos mexermos, nadairá mudar. Somos nós – e não eles – quem tem os meios para começar a eliminar o fosso.No entanto, também há razões artísticas válidas: estamos convencidos de que osbailarinos e coreógrafos do continente africano têm muito para oferecer – o trabalho de artistascomo Salia Sanou e Seydou Boro, Vincent Matsoe, Raiz di Polon, Robin Orlyn e tantos outrosestá aí para o comprovar. Acreditamos que, tendo oportunidade e tempo, os artistas africanosda dança tornar-se-ão uma voz reconhecida e fonte de inspiração para toda a dançacontemporânea – tal como os músicos já o são nos meios da música internacional.

Isso também é verdade para a situação no Brasil?

O Brasil é uma história completamente diferente. No Brasil a dança contemporânea está muito desenvolvida, particularmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. É claro que o Brasil é muito maior do que o Rio e São Paulo e que, para além destas e de algumas cidades mais, a dançacontemporânea está tão pouco desenvolvida como em muitos países africanos. Mas, por agora, achamos que fazia sentido começar a trabalhar a partir do que já existe. Foi muito fácil e bastante agradável contactar com o meio brasileiro da dança, o que nos fez estranhar aindamais por que razão há tão poucos intercâmbios acontecendo. Mesmo nós, vindo de Portugal,não fazíamos a menor idéia de que houvesse tantas coisas interessantes acontecendo. Poroutro lado, o público brasileiro que assistiu ao pequeno ciclo de espectáculos de dançacontemporânea portuguesa que organizamos em Novembro de 2000, em conjunto com ofestival Panorama RioArte e o SESC São Paulo foi completamente apanhado de surpresa peloque viu. Eles pura e simplesmente não sabiam que em Portugal existia uma criação regular einovadora na área da dança contemporânea.

Como funciona o DANÇAR O QUE É NOSSO?

Como disse, o projeto é muito flexível – como não podia deixar de ser, uma vez que estamoslidando com realidades muito diferentes. No Brasil estamos centrando-nos principalmente nointercâmbio e na colaboração. Ao fazer com que as pessoas se encontrem e trabalhem juntasa um nível básico e sobretudo humano, esperamos que depois as coisas comecem a crescer.Acreditamos profundamente que projetos em pequena escala e bem concebidos podemproporcionar resultados surpreendentes. Em países onde a dança contemporânea ainda nãoexiste não faz muito sentido começar a criar iniciativas de intercâmbio às cegas e esperarpelos resultados. Por isso, aí, teremos que começar de outra maneira…

…mas se a dança contemporânea ainda não existe, não se estará a dar uma coisa que ninguém pediu?

Acho que não. É verdade que fomos sempre nós a dar o primeiro passo; mesmo no caso da Raiz di Polon, foi o trabalho da Clara e do Paulo que despertou o interesse. Mas, uma vez estabelecido o contato, recebemos propostas de colaboração muito precisas e concretas – algumas delas, vindas de grupos de dança em Angola e São Tomé. Ainda não conseguimos dar resposta. É importante compreender que, nestes países, as pessoas que trabalham na dança se sentem muito isoladas. Estão perfeitamente conscientes de que a dança está evoluindo à escala mundial e o fato de não acompanhar esta evolução cria-lhes um sentimentode grande frustração. Percebi isto com a intervenção do David Abílio durante aconferência, quando ele referiu que está consciente de que os países e culturas africanosestão em risco de ser ‘globalizados’ pelo mundo ocidental sem que lhes seja dado o temponecessário para encontrarem a sua própria forma de expressão, o que nunca acontecerá seestiverem isolados pois só é possível através de um intercâmbio livre de opiniões eexperiências. Isto aplica-se também à dança contemporânea.

Por oposição à dança tradicional…

Não é tanto uma questão de oposição. Creio que os bailarinos e coreógrafos africanos sentema continuidade mais do que a ruptura. As danças tradicionais africanas não são algo deestático, têm a sua própria história e é um facto que evoluíram muito nas últimas décadas. Aseguir à independência, a liberdade recém-conquistada foi posta ao serviço da redescobertade formas de expressão artística da cultura africana que tinham sido votadas ao ostracismo oumesmo proibidas. Do ponto de vista dos movimentos de libertação e dos jovens governosafricanos, isto não era apenas uma forma para finalmente substituir a cultura do opressor mastambém um meio para criar uma nova identidade nacional depois da pavorosa táctica do”dividir para governar” que incendiou tantas guerras civis em ÿfrica. Por exemplo, até hoje atarefa mais importante (pelo menos oficialmente) da Companhia Nacional de Canto e Dança deMoçambique tem sido investigar e ensinar danças e cantares tradicionais de todo o país efazer deles um repertório consistente. Ironicamente, este admirável e árduo trabalho em defesada herança cultural representou a primeira introdução do conceito ocidental de arte na dançaafricana, sobrepondo-se à sua função tradicional de carácter social e ritual. Foi também ideia destes primeiros governos – na maior parte dos casos socialistas ou marxistas – utilizar a dança como meio de propaganda e educação do povo. Em países onde muitas vezes não existe uma língua nacional comum e onde, de qualquer forma, a maioria da população é analfabeta, a dança revelou-se uma excelente forma de veicular não só a celebração da vitória sobre o inimigo e a glorificação dos feitos do Estado como também a instrução das massas. Através deste trabalho tornou-se óbvio que as formas tradicionais de dança podiam não só ser transformadas em espectáculos artísticos de palco, mas também podiam transmitir conteúdos precisos e actuais.

Ainda hoje muitos organismos internacionais de cooperação encomendam espectáculos desta “nova dança” para ensinar higiene elementar, alertar as populações para o perigo da SIDA ou explicar como funcionam as eleições. À medida que se sentiam mais seguros e tinham mais ambições, por volta dos anos 70 e 80, os coreógrafos e bailarinos começaram a procurar no estrangeiro informação e novas formas de dança. É possível que também eles tenham sentido que a dança tradicional começava a ser demasiado limitada para satisfazer os gostos cada vez mais sofisticados do público das metrópoles africanas que se desenvolviam muito rapidamente. Na maioria dos estados comunistas, isto levou a que tivessem sido convidados professores e coreógrafos tanto do ballet russo como de grupos de dança moderna cubana (eles próprios fortemente influenciados pelo jazz e dança moderna americanos). Na ÿfrica Ocidental, o Mudra Afrique de Maurice Béjart desempenhou um papel semelhante. Apesar de os russos e cubanos já se terem ido embora há muito tempo e do Mudra Afrique estar coberto de poeira, permaneceu o ideal de criar uma fusão entre a dança tradicional africana e a dança ocidental de palco numa base essencialmente formal. No primeiro Encontro Internacional de DANÇAR O QUE É NOSSO em 1998 (que juntou 27 bailarinos de Portugal, Brasil, Angola, Moçambique e Cabo Verde durante uma residência de duas semanas em Lisboa), a maioria dos participantes africanos explicaram que tinham vindo a Lisboa “para aprender movimentos e passos contemporâneos para usar nas suas coreografias e assim tornar mais contemporâneas as suas adaptações de dançastradicionais”. Em consequência disto, passámos horas a discutir o que significa a palavra‘contemporâneo’ e a questão de saber o que faz da dança contemporânea uma forma de arte.

Essa discussão levou a alguma conclusão?

Todo o encontro foi muito confuso e ao mesmo tempo extremamente interessante. Ao fim dealguns dias tornou-se óbvio que os portugueses e os brasileiros não sentiam qualquerafinidade com os vídeos que os seus colegas africanos lhes estavam a mostrar nemencontraram grande interesse nas suas aulas de dança. Mas, evidentemente, não quiseramferir a sensibilidade nem deitar abaixo as formas de dança dos seus amigos africanos. Osbailarinos africanos estavam muito menos inibidos quanto a ter aulas de dança contemporâneaou aprender as danças tradicionais uns dos outros mas sentiram uma necessidade dedefender a sua dança tradicional. Caímos numa situação em que todos se sentiramdesconfortáveis, especialmente porque parecia reflectir todo o problema Norte-Sul. Portanto,um encontro que tinha sido inicialmente organizado para permitir às pessoas que dançassem eexperimentassem juntas tornou-se num fórum de discussão. Falámos sobre dança tradicional econtemporânea, pós e neocolonialismo, políticas mundiais, emigração e imigração, cooperaçãointernacional e assim por diante. Não encontrámos soluções nem chegámos a conclusões masfoi extremamente importante para todos nós ter tido a oportunidade para discutir tudo isto.Aprendemos todos muito e a nós, que organizámos, mostrou-nos o caminho a seguir para ofuturo desenvolvimento do DANÇAR O QUE É NOSSO.

De que maneira?

Ajudou-nos a perceber mais precisamente em que devem assentar os nossos objectivos e qual a melhor forma de os atingir. Ficámos conscientes do beco sem saída para o qual a ideia defusão da dança tradicional africana com a dança ocidental moderna e contemporânea seestava a dirigir. Ao ir para ÿfrica para ensinar formatos e estilos de dança estabelecidos –como ballet, jazz, Graham ou Cunningham – os professores estrangeiros, ainda que nãointencionalmente, criaram e muitas vezes ainda criam um dilema para os bailarinos africanos:ou assimilam inteiramente os exemplos, correndo o risco de perder o contacto com as suasraízes e com a sua audiência local, ou investem numa fusão destes estilos completamentediferentes com as suas próprias formas de dança tradicional, arriscando-se a ser vistos apenascomo os segundos melhores no mundo da dança ocidental com o qual tanto querem contactar.Porque, por muito honesto ou inteligente que seja o esforço, o resultado só pode ser artificial.Nos poucos anos em que temos estado a trabalhar com os nossos parceiros em Cabo Verde eMoçambique, ficámos convictos de que o desenvolvimento da dança contemporânea em ÿfricasó pode vir de ÿfrica e, mais precisamente, dos esforços conscientes dos bailarinos ecoreógrafos africanos para desenvolver as suas danças. Esta convicção prevalece em todasas iniciativas do projecto DANÇAR O QUE É NOSSO. Nos vários workshops que organizamosnunca procuramos ensinar uma dada técnica ou estilo; pedimos aos nossos professores parase centrarem nas noções básicas de movimento e dança e para transmitirem conhecimentosque possam servir como um instrumento para questionar e desenvolver a sua própria dança.Também insistimos em mandar artistas profissionais para dirigir os workshops ou trabalharcom os bailarinos porque é o confronto com os processos criativos de artistas com experiênciaque abre a mente dos participantes e rompe com as ideias frequentemente rígidas da dança.Nos últimos anos foram muitas vezes as coisas mais simples que fizeram com que as pessoasdessem grandes saltos no progresso. Por exemplo, um bailarino moçambicano descobriu queera possível dançar sem música e um bailarino Cabo Verdiano, ao ver um solo da VeraMantero – executado na mais humilde das condições na noite de encerramento de uma dasnossas residências – exclamou no fim do espectáculo: “Fabuloso! Nunca pensei que uma sópessoa pudesse fazer um espectáculo de dança.” Outro exemplo é o modo como a companhiaRaiz di Polon mudou a sua visão sobre a criação nos poucos anos em que trabalhámos juntos:um espectáculo de dança deles normalmente consistia numa série de danças tradicionaisligadas por uma narrativa básica e adaptadas unicamente à perspectiva do palco. Nas suascriações mais recentes, Pêtu e CV Matrix 25, há uma liberdade muito maior do artista/autor para seleccionar material e transformá-lo num espectáculo. Ainda usam muito a dançatradicional mas não têm medo de fazer experiências com ela e moldar os seus contornosrígidos às suas necessidades e conceitos artísticos – e o resultado é convincente porque éhonesto e autêntico.

Estes workshops, como é que funcionam?

Os workshops que organizamos são agrupados num conjunto a que chamamos residências. Cada residência dura duas a três semanas e tem três ou quatro cursos, maioritariamente de dança mas também de produção e marketing, música ou mesmo luminotecnia. Desde 1998 organizámos duas residências em Moçambique e seis em Cabo Verde, envolvendo mais de 25 professores portugueses e centenas de participantes. A continuidade é um conceito central das residências. Não podemos oferecer uma formação de dança em duas semanas, mas através da oferta regular de cursos, dirigidos por professores diferentes, conseguimos criar algumacontinuidade e oferecer uma visão alargada do que existe na dança contemporânea. Encaramos estes workshops mais como sessões de informação do que verdadeiros cursos deformação profissional. Devo dizer que, agora, começamos a sentir a necessidade de algo maisprofundo, especialmente para os vários bailarinos que têm seguido as aulas nos últimos anos.Contamos organizar um projecto de formação mais contínuo em Cabo Verde e Moçambiquemas ainda nos faltam os fundos necessários para prosseguir. Também queremos convidarmais bailarinos e coreógrafos não portugueses para ensinar nas nossas residências. Isto, porum lado vai alargar a perspectiva e por outro vai diversificar o intercâmbio. Um aspectoimportante das residências é que as pessoas estabelecem contactos, descobrem afinidades ecriam amizades. Lentamente, uma pequena rede informal está a tomar forma e nósgostaríamos muito que esta fosse internacional e não apenas ‘lusófona’. Uma vez por ano organizamos ainda um grande encontro internacional em Lisboa. Nestes encontros fazemos com que bailarinos e organizadores de ÿfrica e do Brasil contactem com os seus colegas de Portugal e do resto do mundo, num contexto de intercâmbio, experimentação e debate. O primeiro encontro, em 1998, juntou 27 bailarinos e coreógrafos de Angola, Brasil, Cabo Verde, Moçambique e Portugal e foi designado como um laboratório artístico com um amplo espaço para a experimentação e colaboração em projectos de pequena dimensão. Já falei um pouco sobre esta experiência e sobre como ela se transformou num intenso debate. O segundo, em 1999, coincidiu com o festival Danças na Cidade 99, para o qual convidámos uma série de organizadores e produtores de dança destes mesmos países a assistirem aos espectáculos do festival, conhecer os seus colegas europeus e participar na conferência internacional sobre multiculturalismo, da qual esta publicação é o resultado. Para os nossos parceiros do projecto DANÇAR O QUE É NOSSO foi também uma boa ocasião para conhecer o nosso trabalho e aprender algo sobre o contexto artístico em que nós nos movemos. A reciprocidade é importante nas colaborações internacionais. Em Agosto de 2000 juntámos 45 bailarinos e coreógrafos de Angola, Brasil, Cabo Verde, Holanda, Rússia, Tunísia, Grécia, Itália, Moçambique, Alemanha, Reino Unido, Estados Unidos, França, Hungria, Espanha e Portugal num encontro de três semanas muito bem sucedido. O corpo do programa consistiu numa série de workshops dirigidos por Vera Mantero, Margarita Guergue, Elsa Wolliaston, Frans Poeltra, Francisco Camacho, Reggie Wilson e Meg Stuart. Simultaneamente houve um programa paralelo com debates, apresentações informais dos trabalhos dos participantes e dos resultados dos Workshopss, visionamento de filmes e espectáculos, jantares de confraternização no ponto de encontro, um dia na praia, etc. Foi uma experiência única para todas as pessoas envolvidas, especialmente, acho eu, porque estava mesmo a funcionar para todos: para bailarinos vindos de sítios tão diferentes era possível viver e trabalhar juntos durante três semanas e aprender alguma coisa durante o processo – não só nos Workshopss mas também uns com os outros. Isto é um conceito que nós certamente gostaríamos de desenvolver futuramente. O próximo encontro também vai ser em Lisboa, mas o nosso sonho é poder organizar um no Brasil ou em ÿfrica em conjunto com os nossos colegas de lá.

Por falar de continuidade, para onde caminha tudo isto?

Pensar a longo termo é crucial. Ainda mais importante do que o que se faz é a determinaçãoem continuar. Há tantos projectos toca-e-foge por aí e, de uma maneira ou de outra, acabamsempre em frustração. O nosso ideal é continuar a estimular um intercâmbio regular até que acolaboração entre Norte e Sul seja tão normal que um projecto como o DANÇAR O QUE É NOSSOdeixe de ser necessário. Mas ainda há um longo caminho a percorrer…

O que falta ainda?

Para além de informação e formação, ainda há muito para ser feito a nível da criação. Osespectáculos africanos ou sul-americanos começam lentamente a aparecer nos palcoseuropeus, mas ainda estamos a uma grande distância de poder desfrutar da sua presençaregular. Não me parece que haja uma falta de interesse por parte dos programadoreseuropeus mas há pouca informação, muito pouca oferta e quase nenhuma paciência parainvestir no futuro. O nosso projecto também intervém a este nível. Após três anos de trabalhoem conjunto com a Raiz di Polon na organização das residências em Cabo Verde, decidimosencomendar-lhes uma nova criação para o nosso festival Danças na Cidade 99. O resultado, Pêtu, foi tão encorajador que encomendámos outra produção, em co-produção com o Centro Cultural de Belém, que se estreou em Dezembro de 2000: CV Matrix 25. Em 2001 ambas as produções vão estar em digressão e uma terceira vai ainda ser criada. Estamos também a preparar uma co-produção com a Companhia Nacional de Canto e Dança de Maputo para 2001. Para a Raiz di Polon estas co-produções são um passo importante não só artística mastambém politicamente. Pela primeira vez podem viver da sua profissão como bailarinos emCabo Verde, embora ainda com muitas dificuldades e privações, e a sua presença nos palcosportugueses trouxe-lhes um grande reconhecimento no seu próprio país – embora as coisasevoluam muito lentamente e ainda não possam contar com um apoio financeiro do Ministérioda Cultura de Cabo Verde. O facto de poderem trabalhar nestas produções e ganhar respeito ealgum dinheiro com esta actividade artística, muito provavelmente evitou que a maior parte dosmembros da Raiz di Polon emigrassem. Para mim é muito triste ver como, repetidamente,bailarinos e músicos de Cabo Verde com talento são convidados a entrar em produções oucompanhias portuguesas e acabam por deixar o seu país para vir viver em Portugal. Apesar deacontecer pela melhor das intenções, este ciclo está a sangrar artisticamente o país.

Mas não é natural que queiram ficar, uma vez que é impossível ser um artistaprofissional no seu próprio país?

É perfeitamente compreensível e eu nunca condenarei ninguém por fazer essa escolha, mastenho de facto uma admiração especial pelos poucos artistas que resistem à atracção materialdo ocidente e continuam a lutar pela existência da dança no seu próprio país. Neste momento,e provavelmente por mais cinco ou dez anos, quase todas as companhias de dança africanasestão condenadas a passar parte do seu tempo na Europa, de tal modo estão dependentes decontratos e digressões europeias para assegurar a sua sobrevivência artística e económica.Mas acho que é possível encontrar um equilíbrio entre realismo e idealismo, entre trabalharcom boas condições na Europa e continuar a tentar construir algo no seu país natal em ÿfrica.Não se trata apenas de agir eticamente, também acredito que para a maioria dos artistas ocontacto directo com a sua própria cultura é uma fonte de inspiração insubstituível.

Mas isso significa que também há muito trabalho a fazer para criar as condiçõesnecessárias para desenvolver alguma coisa em países como Cabo Verde ouMoçambique.

Exactamente. É importante criar uma segurança económica básica e uma infra-estruturaminimamente aceitável. E, provavelmente, também uma presença mais ou menos regular decompanhias estrangeiras nos seus palcos.

Mas isso não é um luxo excessivo num país onde a comida e a água potável são ainda um problema para uma grande parte da população?

Com esses mesmos fundamentos poderíamos também condenar os subsídios para as artes na Europa. Há sempre problemas sociais e de saúde mais urgentes. É tão importante financiar edesenvolver as artes em ÿfrica como aqui. Não só por razões culturais mas também do pontode vista económico e do desenvolvimento. Em primeiro lugar, com um investimentorelativamente pequeno, podem ser criadas oportunidades de trabalho que facilmente setransformarão em empregos estáveis. Em países com poucos recursos naturais e umaindústria sub-desenvolvida, a arte pode ser um produto de baixo custo e grande emprego compotencial de exportação. Também se torna cada vez mais necessário criar conteúdos culturaispara a crescente actividade turística e diversificar a oferta para além do tão batido caminho doartesanato.

Também consideramos que uma das tarefas do DANÇAR O QUE É NOSSO é ajudar os nossosparceiros a convencer as suas autoridades locais, governos nacionais e cooperaçãointernacional (uma das maiores fontes de subsídios) da importância de financiar o seu trabalho.Dentro das nossas possibilidades, também os ajudamos a criar melhores condições detrabalho. Em Cabo Verde, a Raiz di Polon conseguiu reclamar um armazém antigo, situado noprincipal parque da cidade, para servir -lhes de sede e de centro para todas as companhias dedança locais. Tem um estúdio de dança, um pequeno escritório e capacidade para mais.Agora, estamos a apoiá-los na sua luta para encontrar financiamento para trabalhos deconstrução urgentes. Temos alguns resultados: se tudo correr bem, Cabo Verde poderá ter oseu próprio centro de dança num futuro próximo. Em Maputo também há muitas faltas. Um dosnossos parceiros, Panaibra Gabriel, organiza as aulas da sua escola CulturArte num ‘estúdio’de dança de 5 metros por 7. Foi atribuída a David Abílio, da Companhia Nacional de Canto eDança, a gestão de um esplêndido cinema da época colonial, que ele já conseguiu transformarnum teatro a funcionar mas que ainda necessita de muito trabalho e investimento para que setorne no palco principal que poderia ser. Não estou a sugerir que as Danças na Cidade possam ou devam resolver todos estes problemas e necessidades, estou apenas a dizer que são uma parte integrante de todo o cenário e deveriam sempre ser consideradas como tal. Formação,criação e boas condições de trabalho: nenhuma destas três questões pode ser consideradapor si só sem dar alguma atenção às outras duas.O que é o projecto DANÇAR O QUE É NOSSO? O que está na sua origem?

DANÇAR O QUE É NOSSO não é um projecto isolado, mas antes uma designação genérica que exprime o nosso desejo de conceber e experimentar a dança contemporânea para além da sua base histórica no mundo ocidental. Desde 1998 temos desenvolvido várias iniciativasconcretas para promover o intercâmbio e manter o relacionamento entre artistas e organizadores na ÿfrica de expressão portuguesa, no Brasil e em Portugal.

Tudo começou de uma maneira muito simples. Na primavera de 1997, Mano Preto e Zezinho Semedo, da companhia de dança cabo verdiana Raiz di Polon, vieram ter connosco com uma proposta para colaborar num projecto que incluía formação, co-produção e a organização de um festival internacional de dança em Cabo Verde. Este convite não foi para nós uma total surpresa. Mónica Lapa, co-directora das Danças na Cidade, já tinha dançado com eles e com outros membros da companhia na produção Dançar Cabo Verde, uma criação de Clara Andermatt e Paulo Ribeiro para Lisboa 94 – Capital Europeia da Cultura. Um ano depois, voltou a Cabo Verde com a companhia de dança da Clara para uma residência de dois meses que incluiu a criação de um novo espectáculo e um programa intensivo de workshops e aulas para a comunidade local de dança.

A proposta da Raiz di Polon surgiu na hora certa. Poucos meses antes tínhamos organizado aquarta edição do festival Danças na Cidade, o primeiro a ser um festival internacional de dança e não apenas um acontecimento a nível nacional. Ao pensar nas implicações de organizar um festival internacional afigurou-se-nos logo desde o início que os nossos contactos ecolaborações se faziam quase exclusivamente com artistas e organizadores do mundoocidental. Se o nosso festival se destinava a ser um lugar de encontro e intercâmbio onde sepudessem confrontar ideias e partilhar experiências, pareceu-nos lamentavelmenteempobrecedor deixar de lado a maior parte do mundo. Em particular no que se refere aospaíses de expressão portuguesa, tínhamos curiosidade em saber o que se passava nestaspartes do mundo com as quais partilhamos 500 anos de história, a nossa língua e boa parte danossa cultura.

Quer dizer, o projecto nasceu de uma curiosidade?

Curiosidade parece-me um pouco leviano. Diria antes que nasceu de um interesse genuíno –que se tornou ainda mais intenso à medida que aprendíamos mais acerca das vidas e dotrabalho dos nossos colegas de Cabo Verde, Moçambique e Brasil. O interesse é um bomponto de partida porque é algo que temos em comum. Eles sabem muito pouco sobre o que sepassa em Portugal ou na Europa e nós não sabemos praticamente nada acerca do meio dadança nos seus países. Por isso, quando nos encontramos, todos partilhamos a mesmacuriosidade. A este nível estamos iguais – igualmente ignorantes.

Porquê os países de expressão portuguesa?

Devo admitir que sempre tivemos certas reticências em relação a isso. É fácil confundirem-noscom mais uma das muitas iniciativas suportadas pelo governo para promover relações políticase comerciais com as ex-colónias. A primeira vez que nos deslocámos a Moçambique, osartistas e organizadores com quem falámos eram muito críticos acerca do termo ‘Lusofonia’ –para eles tinha fortes conotações com o desejo português (real ou sentido) de manter umainfluência directa em vários aspectos da vida e da política moçambicanas. Maisconcretamente, aos seus olhos o termo lusofonia estava viciado pelas muitas iniciativasculturais subsidiadas e unilateralmente organizadas pelos meios oficiais portugueses dacooperação. Por exemplo, um realizador Moçambicano disse-nos que a frágil indústriacinematográfica local tinha sido varrida quase por completo pela introdução do canal estatalportuguês RTP ÿfrica porque este começou a importar produtos estrangeiros baratos etecnicamente bem realizados (especialmente de Portugal e do Brasil) com os quais osrealizadores locais não podiam competir; queixou-se de que as poucas produções criadas emMoçambique estavam a ser feitas por equipas cujos membros eram quase todos importados.Mas, apesar das implicações políticas e económicas frequentemente questionáveis do conceitode mundo ‘Lusófono’ (e também da Francofonia ou da Commonwealth, já que falamos disso),este não deixa de ser uma realidade. As culturas moçambicana, angolana e cabo verdiana têmuma grande presença em Lisboa (apesar de estarem à margem da cultura ‘oficial’) pelapresença de grandes comunidades de imigrantes destes países. Quem viu a peça da PinaBausch Mazurka Fogo em Lisboa terá certamente reparado que a presença africana ebrasileira em Lisboa foi uma grande fonte de inspiração para a peça. Além disso, muitosportugueses – os chamados retornados – nasceram nesses países; Angola, Cabo Verde,Moçambique, São Tomé e Príncipe e a Guiné Bissau foram consideradas como provínciasportuguesas até muito recentemente, 1975, data em que se tornaram independentes noseguimento da revolução portuguesa de Abril de 1974. Assim, uma vez que tínhamos quecomeçar por algum lado a nossa descoberta da dança contemporânea não-ocidental, fezsentido começar pelos países de expressão portuguesa. Para além das razões culturais,também sentimos que, como organização portuguesa, tínhamos uma responsabilidadeespecial para com as ex-colónias.

Isso quer dizer que o DANÇAR O QUE É NOSSO também nasceu de considerações éticas?

Sim, pode-se dizer que sim. Como organizadores achamos que nos cabe a obrigação de fazerum esforço efectivo para ir ao encontro dos nossos colegas do Sul. Há um enorme fossogerado por uma história de exploração, desequilíbrios económicos e políticos, falta de realinteresse e muitos preconceitos. Se nós, no nosso pequeno campo de trabalho, pudermoscomeçar a fazer alguma coisa nesse sentido, então acho que é importante que o façamos. Osprimeiros passos são naturalmente um bocado maljeitosos, mas se não nos mexermos, nadairá mudar. Somos nós – e não eles – quem tem os meios para começar a eliminar o fosso.No entanto, também há razões artísticas válidas: estamos convencidos de que osbailarinos e coreógrafos do continente africano têm muito para oferecer – o trabalho de artistascomo Salia Sanou e Seydou Boro, Vincent Matsoe, Raiz di Polon, Robin Orlyn e tantos outrosestá aí para o comprovar. Acreditamos que, tendo oportunidade e tempo, os artistas africanosda dança tornaR -se-ão uma voz reconhecida e fonte de inspiração para toda a dançacontemporânea – tal como os músicos já o são nos meios da música internacional.

Isso também é verdade para a situação no Brasil?

O Brasil é uma história completamente diferente. No Brasil a dança contemporânea está muitodesenvolvida, particularmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. É claro que o Brasil é muitomaior do que o Rio e São Paulo e que para além destas e de algumas cidades mais, a dançacontemporânea está tão pouco desenvolvida como em muitos países africanos. Mas, poragora, achámos que fazia sentido começar a trabalhar a partir do que já existe. Foi muito fácile bastante agradável contactar com o meio brasileiro da dança, o que nos fez estranhar aindamais por que razão há tão poucos intercâmbios a acontecer. Mesmo nós, vindo de Portugal,não fazíamos a menor ideia de que houvesse tantas coisas interessantes a acontecer. Poroutro lado, o público brasileiro que assistiu ao pequeno ciclo de espectáculos de dançacontemporânea portuguesa que organizámos em Novembro de 2000, em conjunto com ofestival Panorama RioArte e o SESC São Paulo foi completamente apanhado de surpresa peloque viu. Eles pura e simplesmente não sabiam que em Portugal existia uma criação regular einovadora na área da dança contemporânea.

Como funciona o DANÇAR O QUE É NOSSO?

Como disse, o projecto é muito flexível – como não podia deixar de ser, uma vez que estamosa lidar com realidades muito diferentes. No Brasil estamos a centrar -nos principalmente nointercâmbio e na colaboração. Ao fazer com que as pessoas se encontrem e trabalhem juntasa um nível básico e sobretudo humano, esperamos que depois as coisas comecem a crescer.Acreditamos profundamente que projectos em pequena escala e bem concebidos podemproporcionar resultados surpreendentes. Em países onde a dança contemporânea ainda nãoexiste não faz muito sentido começar a criar iniciativas de intercâmbio às cegas e esperarpelos resultados. Por isso, aí, teremos que começar de outra maneira…

…mas se a dança contemporânea ainda não existe, não se estará a dar uma coisa que ninguém pediu?

Acho que não. É verdade que fomos sempre nós a dar o primeiro passo; mesmo no caso daRaiz di Polon, foi o trabalho da Clara e do Paulo que despertou o interesse. Mas, uma vezestabelecido o contacto, recebemos propostas de colaboração muito precisas e concretas – aalgumas delas, vindas de grupos de dança em Angola e São Tomé, ainda não conseguimosdar resposta. É importante compreender que, nestes países, as pessoas que trabalham nadança se sentem muito isoladas. Estão perfeitamente conscientes de que a dança está aevoluir à escala mundial e o facto de não acompanhar esta evolução cria-lhes um sentimentode grande frustração. Apercebi-me disto com a intervenção do David Abílio durante aconferência, quando ele referiu que está consciente de que os países e culturas africanosestão em risco de ser ‘globalizados’ pelo mundo ocidental sem que lhes seja dado o temponecessário para encontrarem a sua própria forma de expressão, o que nunca acontecerá seestiverem isolados pois só é possível através de um intercâmbio livre de opiniões eexperiências. Isto aplica-se também à dança contemporânea.

Por oposição à dança tradicional…

Não é tanto uma questão de oposição. Creio que os bailarinos e coreógrafos africanos sentema continuidade mais do que a ruptura. As danças tradicionais africanas não são algo deestático, têm a sua própria história e é um facto que evoluíram muito nas últimas décadas. Aseguir à independência, a liberdade recém-conquistada foi posta ao serviço da redescobertade formas de expressão artística da cultura africana que tinham sido votadas ao ostracismo oumesmo proibidas. Do ponto de vista dos movimentos de libertação e dos jovens governosafricanos, isto não era apenas uma forma para finalmente substituir a cultura do opressor mastambém um meio para criar uma nova identidade nacional depois da pavorosa táctica do”dividir para governar” que incendiou tantas guerras civis em ÿfrica. Por exemplo, até hoje atarefa mais importante (pelo menos oficialmente) da Companhia Nacional de Canto e Dança deMoçambique tem sido investigar e ensinar danças e cantares tradicionais de todo o país efazer deles um repertório consistente. Ironicamente, este admirável e árduo trabalho em defesada herança cultural representou a primeira introdução do conceito ocidental de arte na dançaafricana, sobrepondo-se à sua função tradicional de carácter social e ritual. Foi também ideia destes primeiros governos – na maior parte dos casos socialistas ou marxistas – utilizar a dança como meio de propaganda e educação do povo. Em países onde muitas vezes não existe uma língua nacional comum e onde, de qualquer forma, a maioria da população é analfabeta, a dança revelou-se uma excelente forma de veicular não só a celebração da vitória sobre o inimigo e a glorificação dos feitos do Estado como também a instrução das massas. Através deste trabalho tornou-se óbvio que as formas tradicionais de dança podiam não só ser transformadas em espectáculos artísticos de palco, mas também podiam transmitir conteúdos precisos e actuais.

Ainda hoje muitos organismos internacionais de cooperação encomendam espectáculos desta “nova dança” para ensinar higiene elementar, alertar as populações para o perigo da SIDA ou explicar como funcionam as eleições. À medida que se sentiam mais seguros e tinham mais ambições, por volta dos anos 70 e 80, os coreógrafos e bailarinos começaram a procurar no estrangeiro informação e novas formas de dança. É possível que também eles tenham sentido que a dança tradicional começava a ser demasiado limitada para satisfazer os gostos cada vez mais sofisticados do público das metrópoles africanas que se desenvolviam muito rapidamente. Na maioria dos estados comunistas, isto levou a que tivessem sido convidados professores e coreógrafos tanto do ballet russo como de grupos de dança moderna cubana (eles próprios fortemente influenciados pelo jazz e dança moderna americanos). Na ÿfrica Ocidental, o Mudra Afrique de Maurice Béjart desempenhou um papel semelhante. Apesar de os russos e cubanos já se terem ido embora há muito tempo e do Mudra Afrique estar coberto de poeira, permaneceu o ideal de criar uma fusão entre a dança tradicional africana e a dança ocidental de palco numa base essencialmente formal. No primeiro Encontro Internacional de DANÇAR O QUE É NOSSO em 1998 (que juntou 27 bailarinos de Portugal, Brasil, Angola, Moçambique e Cabo Verde durante uma residência de duas semanas em Lisboa), a maioria dos participantes africanos explicaram que tinham vindo a Lisboa “para aprender movimentos e passos contemporâneos para usar nas suas coreografias e assim tornar mais contemporâneas as suas adaptações de dançastradicionais”. Em consequência disto, passámos horas a discutir o que significa a palavra‘contemporâneo’ e a questão de saber o que faz da dança contemporânea uma forma de arte.

Essa discussão levou a alguma conclusão?

Todo o encontro foi muito confuso e ao mesmo tempo extremamente interessante. Ao fim dealguns dias tornou-se óbvio que os portugueses e os brasileiros não sentiam qualquerafinidade com os vídeos que os seus colegas africanos lhes estavam a mostrar nemencontraram grande interesse nas suas aulas de dança. Mas, evidentemente, não quiseramferir a sensibilidade nem deitar abaixo as formas de dança dos seus amigos africanos. Osbailarinos africanos estavam muito menos inibidos quanto a ter aulas de dança contemporâneaou aprender as danças tradicionais uns dos outros mas sentiram uma necessidade dedefender a sua dança tradicional. Caímos numa situação em que todos se sentiramdesconfortáveis, especialmente porque parecia reflectir todo o problema Norte-Sul. Portanto,um encontro que tinha sido inicialmente organizado para permitir às pessoas que dançassem eexperimentassem juntas tornou-se num fórum de discussão. Falámos sobre dança tradicional econtemporânea, pós e neocolonialismo, políticas mundiais, emigração e imigração, cooperaçãointernacional e assim por diante. Não encontrámos soluções nem chegámos a conclusões masfoi extremamente importante para todos nós ter tido a oportunidade para discutir tudo isto.Aprendemos todos muito e a nós, que organizámos, mostrou-nos o caminho a seguir para ofuturo desenvolvimento do DANÇAR O QUE É NOSSO.

De que maneira?

Ajudou-nos a perceber mais precisamente em que devem assentar os nossos objectivos e qual a melhor forma de os atingir. Ficámos conscientes do beco sem saída para o qual a ideia defusão da dança tradicional africana com a dança ocidental moderna e contemporânea seestava a dirigir. Ao ir para ÿfrica para ensinar formatos e estilos de dança estabelecidos –como ballet, jazz, Graham ou Cunningham – os professores estrangeiros, ainda que nãointencionalmente, criaram e muitas vezes ainda criam um dilema para os bailarinos africanos:ou assimilam inteiramente os exemplos, correndo o risco de perder o contacto com as suasraízes e com a sua audiência local, ou investem numa fusão destes estilos completamentediferentes com as suas próprias formas de dança tradicional, arriscando-se a ser vistos apenascomo os segundos melhores no mundo da dança ocidental com o qual tanto querem contactar.Porque, por muito honesto ou inteligente que seja o esforço, o resultado só pode ser artificial.Nos poucos anos em que temos estado a trabalhar com os nossos parceiros em Cabo Verde eMoçambique, ficámos convictos de que o desenvolvimento da dança contemporânea em ÿfricasó pode vir de ÿfrica e, mais precisamente, dos esforços conscientes dos bailarinos ecoreógrafos africanos para desenvolver as suas danças. Esta convicção prevalece em todasas iniciativas do projecto DANÇAR O QUE É NOSSO. Nos vários workshops que organizamosnunca procuramos ensinar uma dada técnica ou estilo; pedimos aos nossos professores parase centrarem nas noções básicas de movimento e dança e para transmitirem conhecimentosque possam servir como um instrumento para questionar e desenvolver a sua própria dança.Também insistimos em mandar artistas profissionais para dirigir os workshops ou trabalharcom os bailarinos porque é o confronto com os processos criativos de artistas com experiênciaque abre a mente dos participantes e rompe com as ideias frequentemente rígidas da dança.Nos últimos anos foram muitas vezes as coisas mais simples que fizeram com que as pessoasdessem grandes saltos no progresso. Por exemplo, um bailarino moçambicano descobriu queera possível dançar sem música e um bailarino Cabo Verdiano, ao ver um solo da VeraMantero – executado na mais humilde das condições na noite de encerramento de uma dasnossas residências – exclamou no fim do espectáculo: “Fabuloso! Nunca pensei que uma sópessoa pudesse fazer um espectáculo de dança.” Outro exemplo é o modo como a companhiaRaiz di Polon mudou a sua visão sobre a criação nos poucos anos em que trabalhámos juntos:um espectáculo de dança deles normalmente consistia numa série de danças tradicionaisligadas por uma narrativa básica e adaptadas unicamente à perspectiva do palco. Nas suascriações mais recentes, Pêtu e CV Matrix 25, há uma liberdade muito maior do artista/autor para seleccionar material e transformá-lo num espectáculo. Ainda usam muito a dançatradicional mas não têm medo de fazer experiências com ela e moldar os seus contornosrígidos às suas necessidades e conceitos artísticos – e o resultado é convincente porque éhonesto e autêntico.

Estes workshops, como é que funcionam?

Os workshops que organizamos são agrupados num conjunto a que chamamos residências. Cada residência dura duas a três semanas e tem três ou quatro cursos, maioritariamente de dança mas também de produção e marketing, música ou mesmo luminotecnia. Desde 1998 organizámos duas residências em Moçambique e seis em Cabo Verde, envolvendo mais de 25 professores portugueses e centenas de participantes. A continuidade é um conceito central das residências. Não podemos oferecer uma formação de dança em duas semanas, mas através da oferta regular de cursos, dirigidos por professores diferentes, conseguimos criar algumacontinuidade e oferecer uma visão alargada do que existe na dança contemporânea. Encaramos estes workshops mais como sessões de informação do que verdadeiros cursos deformação profissional. Devo dizer que, agora, começamos a sentir a necessidade de algo maisprofundo, especialmente para os vários bailarinos que têm seguido as aulas nos últimos anos.Contamos organizar um projecto de formação mais contínuo em Cabo Verde e Moçambiquemas ainda nos faltam os fundos necessários para prosseguir. Também queremos convidarmais bailarinos e coreógrafos não portugueses para ensinar nas nossas residências. Isto, porum lado vai alargar a perspectiva e por outro vai diversificar o intercâmbio. Um aspectoimportante das residências é que as pessoas estabelecem contactos, descobrem afinidades ecriam amizades. Lentamente, uma pequena rede informal está a tomar forma e nósgostaríamos muito que esta fosse internacional e não apenas ‘lusófona’. Uma vez por ano organizamos ainda um grande encontro internacional em Lisboa. Nestes encontros fazemos com que bailarinos e organizadores de ÿfrica e do Brasil contactem com os seus colegas de Portugal e do resto do mundo, num contexto de intercâmbio, experimentação e debate. O primeiro encontro, em 1998, juntou 27 bailarinos e coreógrafos de Angola, Brasil, Cabo Verde, Moçambique e Portugal e foi designado como um laboratório artístico com um amplo espaço para a experimentação e colaboração em projectos de pequena dimensão. Já falei um pouco sobre esta experiência e sobre como ela se transformou num intenso debate. O segundo, em 1999, coincidiu com o festival Danças na Cidade 99, para o qual convidámos uma série de organizadores e produtores de dança destes mesmos países a assistirem aos espectáculos do festival, conhecer os seus colegas europeus e participar na conferência internacional sobre multiculturalismo, da qual esta publicação é o resultado. Para os nossos parceiros do projecto DANÇAR O QUE É NOSSO foi também uma boa ocasião para conhecer o nosso trabalho e aprender algo sobre o contexto artístico em que nós nos movemos. A reciprocidade é importante nas colaborações internacionais. Em Agosto de 2000 juntámos 45 bailarinos e coreógrafos de Angola, Brasil, Cabo Verde, Holanda, Rússia, Tunísia, Grécia, Itália, Moçambique, Alemanha, Reino Unido, Estados Unidos, França, Hungria, Espanha e Portugal num encontro de três semanas muito bem sucedido. O corpo do programa consistiu numa série de workshops dirigidos por Vera Mantero, Margarita Guergue, Elsa Wolliaston, Frans Poeltra, Francisco Camacho, Reggie Wilson e Meg Stuart. Simultaneamente houve um programa paralelo com debates, apresentações informais dos trabalhos dos participantes e dos resultados dos Workshopss, visionamento de filmes e espectáculos, jantares de confraternização no ponto de encontro, um dia na praia, etc. Foi uma experiência única para todas as pessoas envolvidas, especialmente, acho eu, porque estava mesmo a funcionar para todos: para bailarinos vindos de sítios tão diferentes era possível viver e trabalhar juntos durante três semanas e aprender alguma coisa durante o processo – não só nos Workshopss mas também uns com os outros. Isto é um conceito que nós certamente gostaríamos de desenvolver futuramente. O próximo encontro também vai ser em Lisboa, mas o nosso sonho é poder organizar um no Brasil ou em ÿfrica em conjunto com os nossos colegas de lá.

Por falar de continuidade, para onde caminha tudo isto?

Pensar a longo termo é crucial. Ainda mais importante do que o que se faz é a determinaçãoem continuar. Há tantos projectos toca-e-foge por aí e, de uma maneira ou de outra, acabamsempre em frustração. O nosso ideal é continuar a estimular um intercâmbio regular até que acolaboração entre Norte e Sul seja tão normal que um projecto como o DANÇAR O QUE É NOSSOdeixe de ser necessário. Mas ainda há um longo caminho a percorrer…

O que falta ainda?

Para além de informação e formação, ainda há muito para ser feito a nível da criação. Osespectáculos africanos ou sul-americanos começam lentamente a aparecer nos palcoseuropeus, mas ainda estamos a uma grande distância de poder desfrutar da sua presençaregular. Não me parece que haja uma falta de interesse por parte dos programadoreseuropeus mas há pouca informação, muito pouca oferta e quase nenhuma paciência parainvestir no futuro. O nosso projecto também intervém a este nível. Após três anos de trabalhoem conjunto com a Raiz di Polon na organização das residências em Cabo Verde, decidimosencomendar-lhes uma nova criação para o nosso festival Danças na Cidade 99. O resultado, Pêtu, foi tão encorajador que encomendámos outra produção, em co-produção com o Centro Cultural de Belém, que se estreou em Dezembro de 2000: CV Matrix 25. Em 2001 ambas as produções vão estar em digressão e uma terceira vai ainda ser criada. Estamos também a preparar uma co-produção com a Companhia Nacional de Canto e Dança de Maputo para 2001. Para a Raiz di Polon estas co-produções são um passo importante não só artística mastambém politicamente. Pela primeira vez podem viver da sua profissão como bailarinos emCabo Verde, embora ainda com muitas dificuldades e privações, e a sua presença nos palcosportugueses trouxe-lhes um grande reconhecimento no seu próprio país – embora as coisasevoluam muito lentamente e ainda não possam contar com um apoio financeiro do Ministérioda Cultura de Cabo Verde. O facto de poderem trabalhar nestas produções e ganhar respeito ealgum dinheiro com esta actividade artística, muito provavelmente evitou que a maior parte dosmembros da Raiz di Polon emigrassem. Para mim é muito triste ver como, repetidamente,bailarinos e músicos de Cabo Verde com talento são convidados a entrar em produções oucompanhias portuguesas e acabam por deixar o seu país para vir viver em Portugal. Apesar deacontecer pela melhor das intenções, este ciclo está a sangrar artisticamente o país.

Mas não é natural que queiram ficar, uma vez que é impossível ser um artistaprofissional no seu próprio país?

É perfeitamente compreensível e eu nunca condenarei ninguém por fazer essa escolha, mastenho de facto uma admiração especial pelos poucos artistas que resistem à atracção materialdo ocidente e continuam a lutar pela existência da dança no seu próprio país. Neste momento,e provavelmente por mais cinco ou dez anos, quase todas as companhias de dança africanasestão condenadas a passar parte do seu tempo na Europa, de tal modo estão dependentes decontratos e digressões europeias para assegurar a sua sobrevivência artística e económica.Mas acho que é possível encontrar um equilíbrio entre realismo e idealismo, entre trabalharcom boas condições na Europa e continuar a tentar construir algo no seu país natal em ÿfrica.Não se trata apenas de agir eticamente, também acredito que para a maioria dos artistas ocontacto directo com a sua própria cultura é uma fonte de inspiração insubstituível.

Mas isso significa que também há muito trabalho a fazer para criar as condiçõesnecessárias para desenvolver alguma coisa em países como Cabo Verde ouMoçambique.

Exactamente. É importante criar uma segurança económica básica e uma infra-estruturaminimamente aceitável. E, provavelmente, também uma presença mais ou menos regular decompanhias estrangeiras nos seus palcos.

Mas isso não é um luxo excessivo num país onde a comida e a água potável são ainda um problema para uma grande parte da população?

Com esses mesmos fundamentos poderíamos também condenar os subsídios para as artes na Europa. Há sempre problemas sociais e de saúde mais urgentes. É tão importante financiar edesenvolver as artes em ÿfrica como aqui. Não só por razões culturais mas também do pontode vista económico e do desenvolvimento. Em primeiro lugar, com um investimentorelativamente pequeno, podem ser criadas oportunidades de trabalho que facilmente setransformarão em empregos estáveis. Em países com poucos recursos naturais e umaindústria sub-desenvolvida, a arte pode ser um produto de baixo custo e grande emprego compotencial de exportação. Também se torna cada vez mais necessário criar conteúdos culturaispara a crescente actividade turística e diversificar a oferta para além do tão batido caminho doartesanato.

Também consideramos que uma das tarefas do DANÇAR O QUE É NOSSO é ajudar os nossosparceiros a convencer as suas autoridades locais, governos nacionais e cooperaçãointernacional (uma das maiores fontes de subsídios) da importância de financiar o seu trabalho.Dentro das nossas possibilidades, também os ajudamos a criar melhores condições detrabalho. Em Cabo Verde, a Raiz di Polon conseguiu reclamar um armazém antigo, situado noprincipal parque da cidade, para servir -lhes de sede e de centro para todas as companhias dedança locais. Tem um estúdio de dança, um pequeno escritório e capacidade para mais.Agora, estamos a apoiá-los na sua luta para encontrar financiamento para trabalhos deconstrução urgentes. Temos alguns resultados: se tudo correr bem, Cabo Verde poderá ter oseu próprio centro de dança num futuro próximo. Em Maputo também há muitas faltas. Um dosnossos parceiros, Panaibra Gabriel, organiza as aulas da sua escola CulturArte num ‘estúdio’de dança de 5 metros por 7. Foi atribuída a David Abílio, da Companhia Nacional de Canto eDança, a gestão de um esplêndido cinema da época colonial, que ele já conseguiu transformarnum teatro a funcionar mas que ainda necessita de muito trabalho e investimento para que setorne no palco principal que poderia ser. Não estou a sugerir que as Danças na Cidade possam ou devam resolver todos estes problemas e necessidades, estou apenas a dizer que são uma parte integrante de todo o cenário e deveriam sempre ser consideradas como tal. Formação,criação e boas condições de trabalho: nenhuma destas três questões pode ser consideradapor si só sem dar alguma atenção às outras duas.