Uma estratégia para reelaboração do corpo | A strategy to reelaborate the body

Esse texto faz parte da dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (UFBA). Orientadora: Profa. Dra. Dulce Aquino. The paper published in the portuguese version of idança.net is the result of a research project developed at the master’s degree program of the PPGAC-UFBA. Its objective is the understanding of adolescents’ corporeality at the grade schools in Bahia’s public educational system. It analises the relationships established between the students and their creative processes in dance.

Nossas escolhas para pesquisar, na maioria da vezes, são passagens de nossas vidas que nos levam a privilegiar certos aspectos que, naturalmente, impõem-se às nossas escolhas acadêmicas. No caso deste trabalho, especificamente do seu tema, encontramos suas origens na nossa trajetória profissional com experiências no contexto da escola pública, percebendo a ação sensibilizadora da dança na formação dos educandos.

Atualmente, enquanto professora de Prática do Ensino da Dança na Universidade Federal da Bahia, verificamos a escassa inserção de ações que articulam a Prática do Ensino com esses espaços socioculturais. Assim, a temática apresentada é conseqüência do conhecimento acadêmico nesta área e de reflexões sobre nossa trajetória profissional.

O mundo muda, as coisas mudam em seus significados e necessitamos contextualizá-las em seu tempo presente. Assistimos a uma crescente preocupação da sociedade brasileira, especialmente, sobre as relações dialogais constituídas no interior das escolas públicas, e a questão recorrente, que vem se aprofundando, é sobre o comportamento social dos alunos nesse ambiente sociocultural. Vários estudos têm sido conduzidos na perspectiva de um desempenho de maior qualidade nesse contexto.

No entanto, através do nosso olhar, e da vasta literatura sobre educação escolar em nosso país, observamos que as escolas da rede pública de ensino não têm uma política voltada para o aluno, para as demandas de seus interesses e desejos, para o resgate de suas identidades individuais, desta forma não dando espaço para os adolescentes se envolverem em processos criativos, bloqueando a emergência de potenciais necessários às mudanças nesse ambiente e, como conseqüência, no contexto social mais amplo.

Nessa linha de pensamento, começamos a indagar qual a educação que é dirigida a esses educandos? Como se dá a construção da corporeidade nesse espaço socioeducativo? Qual a sua relação com esse ambiente? Qual a inserção da dança nesse espaço sociocultural? Essas indagações iniciais nos levaram à pesquisa, tendo como foco a corporeidade de um grupo de adolescentes do ensino público fundamental.

A escolha pela temática desta dissertação, surgiu justamente, de reflexões sobre o papel da dança e seu ensino na sociedade contemporânea. O que buscamos enfatizar é que, através da dança, abrem-se infinitas janelas, através das quais podem-se vislumbrar múltiplas paisagens e cenários. Por outro lado, a dança é um sistema aberto, abre um leque de possibilidades para outras linguagens.

A pesquisa tenta deslocar a dança da visão tradicional do velho discurso cartesiano, fora do dualismo das substâncias estabelecido por Descartes, recorrendo à corporeidade como unidade expressiva. Corporeidade que é presença/ação/interação/organização/participação/existência do homem no mundo, e, conseqüentemente, o movimento é a manifestação viva da corporeidade.

Sendo a dança a própria experiência dos corpos em ação, caracteriza-se pela sua estrutura e organização complexa, que usa o corpo e o movimento por processos de interações na relação dialética e dialógica entre interioridade e exterioridade. Tratamos a dança como resultante desse corpo que é totalmente biológico e totalmente cultural, possível de ser observado e verificado naquilo que ele próprio constrói, como artefato cultural. Partindo deste olhar, buscamos compreender as construções e representações do corpo na dança, no contexto da rede estadual de ensino. Ao vislumbrarmos as possibilidades que a dança, inserida nesse ambiente, permitiria trazer para esses jovens cidadãos e sua comunidade, motivaram significativamente esse trabalho no ensino público fundamental.

Nesta pesquisa abordamos a dança numa visão evolutiva, ou seja, a complexidade do corpo na dança entre a natureza que herdamos enquanto conjunto de adaptações geneticamente estabelecidas ao longo do processo evolutivo e a que adquirimos por via do desenvolvimento individual através das interações com o meio ambiente, quer de forma consciente e voluntária, quer de forma inconsciente e involuntária, (aspectos filogenéticos e ontogenéticos) (DAMÿSIO, 1996).

Buscando compreender os sujeitos dentro da realidade complexa na qual estâo inseridos, a pesquisa de campo configurou-se em oficinas de dança, realizadas na escola pública, em consonância com o pensamento de Morin, de que “é preciso situar as informações, as realidades e os dados em seu contexto para que adquiram sentido, o qual determinará as condições de sua inserção e os limites de sua validade” (1).

Os sujeitos deste estudo, como amostragem dessa população, foram estudantes adolescentes, da rede estadual de ensino, que nunca tinham vivenciado a dança enquanto processo organizador de suas próprias características referenciais e identidade. Então, não seria a dança uma estratégia possível para revelação e reelaboração do corpo no ensino público fundamental?

Esta hipótese indicou que compreender a relação das construções do corpo, em conexão com as informações do ambiente, resultou no conhecimento do corpo/sujeito, do modo e características próprias que lhe dão formas de ser, se movimentar, se comportar e se relacionar. Por outro lado, estava evidente no contorno de nossas suposições que conhecendo a dinâmica dessa relação, possibilitaria, como efeito retroativo (Morin,1986), identificar as possíveis reelaborações desse corpo nos seus processos criativos em dança, as quais estão diretamente ligadas á subjetividade, ao seu universo simbólico.

Assumimos, nesse trabalho, a posição de que dança é uma estratégia do organismo humano. Contém aspectos referentes ao seu próprio sistema/organização: o corpo. “(…) Há uma instância anterior ao afetivo, ao psicológico e ao social, que permite ao meu corpo ser um centro físico de movimento” (2), torna-se, portanto, necessário perceber o contexto desse corpo. Nesse sentido, a dança configurou-se em um espaço possível, para os sujeitos vivenciarem os seus processos de singularização e subjetivação. Tomamos, aqui, o termo usado por Guattari (1993), para designar “processos desruptores de codificações preestabelecidas, de manipulação e de telecomando: recusá-los para construir, de certa forma, modos de sensibilidade, de relações com o outro, de criatividade, que produzem uma subjetividade singular, impulsionando-os para um mundo mais ético, criativo e humanizador” (3).

Acerca de tal aspecto, nos reportamos a Foucault, que em sua obra “Vigiar e Punir”, (1987), nos mostra um poder disciplinar do corpo, ou seja, mecanismos de controle que atua sobre o corpo dos outros”, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer” (4). Abordagem que nos permite compreender as práticas em relação ao corpo e a partir dessa ideologia entender a dificuldade de espaço físico para os trabalhos de corpo e da inserção da dança nos espaços das escolas públicas. O que vem confirmar a relação direta com a ideologia ocidental cartesiana, que privilegia mais a objetividade que a própria subjetividade do sujeito, considerando o homem como uma dualidade, tratamento ainda hoje presente no imaginário do senso comum e reafirmado nesses espaços educativos, propiciando, dessa maneira, ambiente favorável para a sobrevivência de tal padrão de pensamento.

Convencidas que o corpo é uma estrutura dinâmica não linear, encontra-se em mutação constante, procuramos identificar como esse corpo se organiza através da complexificação da informação, as qualidades do seu movimento, as que aparecem nas diversas posturas/atitudes, na medida em que apresentam elementos e conexões com as informações obtidas do contexto e buscar o que emerge como efeito retroativo, em seus processos criativos em dança.

Na verdade, identificar a estrutura de “pensamento” desse corpo é o que estava em jogo. Para analisarmos a dinâmica desse discurso do corpo, escolhemos as qualidades presentes e inscritas no corpo, na relação com o ambiente e o que é formulado na construção e atuação desse corpo na dança, articulando esses extratos ao quadro teórico escolhido.

Considerando a dança como uma estratégia evolutiva do homem e este resultado de acordos ambientais, procuramos, através das Teorias Evolutivas, (na atualidade um importante e consistente viés do pensamento científico está sendo configurado dentro dessa perspectiva evolucionária), da compreensão do pensamento complexo, cruzando dança e biologia, buscar conexões entre dança e ciência que permitissem entendê-la como um fenômeno que é parte da natureza humana, resultante do processo co-evolutivo.

Assim, este estudo considerou como instrumento e orientação teórica, ancoradas na visão do Sociólogo/Antropólogo/Hstoriador Edgard Morin, reconhecido como um dos maiores reformadores do pensamento moderno, do teórico Neurocientista Antonio Damásio, do Etólogo Evolucionário Richard Dawkins, do Cientista Cognitivo Daniel Dennett, do Biólogo e Psicólogo Vigotski, entre outros, que se entrelaçam em suas idéias de co-evolução, norteando os campos conceitual e metodológico deste estudo. Trabalhamos com idéias sobre mecanismos de evolução e princípios de organização da vida, que são os princípios da complexidade, em busca do ser em um contexto sociocultural.

Essas novas abordagens científicas abrem um importante espaço para a dança. Reabilitam a unidade do ser humano, estabelecendo as relações estreita e complexa entre os processos cerebrais e o corpo. Acentuam a íntima conexão entre o homem e o mundo e a permanente evolução e complexidade desse processo. Mostram-nos que o processo evolutivo acontece, principalmente, através da interatividade complexa do corpo e o ambiente. A relação entre corpo e ambiente ganha uma nova configuração. É sob esse novo olhar que vislumbramos discutir as possibilidades da dança no cenário da escola pública e as experiências vividas com o grupo de estudantes na rede estadual de ensino, são a base para essa discussão.

* Virgínia Maria Rocha Chaves é professora da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, chefe do Departamento de Teoria e Criação Coreográfica, com Mestrado em Artes-Cênicas (UFBA) e Especialização em Coreografia, também pela UFBA.

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Notas:

(1) MORIN, Edgard. Os sete saberes necessários à educação, 2001, p. 36.

(2) KATZ, Helena. A dança é o pensamento do corpo. São Paulo: PUC, 1994. Tese doutorado em Comunicação e semiótica, 1994, p.75.

(3) GUATARRI, Félix e RONILK, Suely. Micropolítica: cartografia do desejo. Petrópolis, RJ: Vozes,1993:17.

(4) IBID, p.127.

The data were collected at state public schools in the city of Salvador where the students attended dance workshop that lasted eight months, and focused on artistic processes in education. In these workshops, connections were then established between the student’personal universe and their sociocultural contexts in these workshops. These connections were established through informal interviews with the students and teachers, films and daily observation. A mainly qualitative approach of the data was done in the perspectives of the evolutive and complexity theories, dialoguing with such authors as: Edgar Morin, anthropologist/historian/sociologist; the neurocientists Antonio Damásio, Richard Dawkins, the philosopher and cientist cognitive Daniel Dennett and the psycologist and biologist L.S. Vigotiski, among others. The discussion of the data indicated a restructure concerning today’s thoughts and practices about the understanding of teenagers’corporealities in the public school environment, revealing and reelaborating teenagers’ ways of experimenting, conceiving their body, relating and expressing themselves artistically in dance.

* Virgínia Maria Rocha Chaves is a teatcher at the Dance School of Universidade Federal da Bahia, chefe of the Departament of Theory and Coreographic Creation, has a Master in Scenic Arts (UFBA) and Specialization in Coreography, also in UFBA.

Bibliography:

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Notes:

(1) MORIN, Edgard. Os sete saberes necessários à educação, 2001, p. 36.

(2) KATZ, Helena. A dança é o pensamento do corpo. São Paulo: PUC, 1994. Tese doutorado em Comunicação e semiótica, 1994, p.75.

(3) GUATARRI, Félix e RONILK, Suely. Micropolítica: cartografia do desejo. Petrópolis, RJ: Vozes,1993:17.

(4) IBID, p.127.