Panorama 2008 – Uma nova territorialidade | Panorama 2008 – A new territoriality

No Rio de Janeiro a convite do Panorama de Dança, o colunista do idança Tiago Bartolomeu Costa vai manter os nossos leitores informados sobre o que anda rolando no festival. Em seu segundo texto, ele faz uma crítica do espetáculo H3, do coreógrafo Bruno Beltrão com o Grupo de Rua de Niterói. Apresentado no Teatro Villa-Lobos a 31 Outubro e 1 Novembro, H3 não permite que o hip-hop, só porque se apresenta num palco tradicional, se transforme em retórica contemporânea.

Talvez seja uma vantagem daquilo que se chama o acesso democrático à arte, a ideia de que todos os discursos coreográficos, seja qual for a sua proveniência – mas sobretudo aqueles que vêm de outros contextos -, alargam a noção que temos de dança contemporânea. Mas o trabalho de Bruno Beltrão não se inscreve, de forma simples, numa ideia de democratização do movimento contemporâneo que permita aceitar, como parte do grande discurso sobre a dança, outros discursos coreográficos que não resultem de um enquadramento formal e conceptualmente performático.

Com H3, o coreógrafo brasileiro trabalha as características do hip-hop – entendido não enquanto expressão individual mas como experiência colectiva -, a partir de um outro paradigma, aparentemente rizomático. As sequências, organizadas em grandes grupos, não necessariamente temáticos mas com lógicas coreográficas aproximadas (jogos de um para um e colectivos) permitem que a um movimento dramaturgicamente arbitrário, eminentemente individualista e habitando contextos urbanos e para-coreográficos como é o do hip-hop, corresponda um desejo de, sem ceder nas especificidades desta linguagem e trabalhando uma representação do corpo contemporâneo, se alargue a liberdade do movimentos dentro de uma grelha formal e estruturada.

Cada intérprete estabelece uma sequência de movimentos que, uma vez executados, são ampliados por um outro intérprete, num jogo dialéctico permanentemente em ascensão. Dessa forma, esta reorganização do movimento enquanto espaço de diálogo permite que a lógica do hip-hop ganhe em substância dramatúrgica criativa (ousando mesmo fundamentá-la) e a fórmula alegadamente democrática da dança contemporânea recupere uma margem de risco concreta.

Outros aspectos concorrem para esta leitura do hip-hop como dança agremiadora. Nomeadamente os jogos de luzes e a utilização do espaço cénico. A uma primeira parte exposta na boca de cena, com os intérpretes a verem substituídos os rituais de luta e exibição marialva característicos do hip-hop por elegantes sequências de movimentos competitivos que vão para lá da gratuitidade do gesto, segue-se uma outra, mais na penumbra, na qual são desenhadas linhas que ocupam toda a retaguarda do palco vazio, e ampliam as potencialidades de cada corpo, agora numa base de complementaridade com os outros intérpretes, formando, sem que disso nos apercebamos com antecedência, corpos unos que partilham o mesmo rigor e exigência que qualquer corpo de baile clássico. Adequados a cada intérprete, rudes nas suas expressões e precisos nos seus movimentos bruscos, secos e breves, os gestos ultrapassam o espaço individual de cada um abraçando um discurso colectivo, tão contrária ao individualismo e identificação da criação contemporânea.

Esta dramatização do hip-hop obriga-nos a perguntar se não estará o coreógrafo, precisamente por partir de movimentos alegadamente livres, a operar nos mesmos princípios utilizados pelas narrativas clássicas. Particulamente porque, nessa dramatização, não só Bruno Beltrão torna mais distante o hip-hop, como o coloca num território que, mesmo sendo acessível, explora novas territorialidades (ou alarga o território já existente). A submissão do hip-hop à construção dramatúrgica contemporânea não se faz à custa de perda de território linguístico do hip-hop, mas antes sugere a exploração de uma outra noção de representação do corpo contemporâneo. Precisamente um que sobrevive à regra disciplinar e garante que aqueles corpos possam permanecer tão etéreos como o dos bailarinos clássicos.

O autor viajou a convite do Festival Panorama de Dança 2008

Um excerto de H3 pode ser visto no canal do festival no you tube

Textos anteriores:
Um gesto que seja nosso (Crítica do espetáculo Umwelt da Cie. Maguy Marin)

In Rio de Janeiro as a guest of Panorama de Dança, idança columnist Tiago Bartolomeu Costa will keep our readers informed about all that is happening in the festival. In his second text, he makes a review of H3, by choreographer Bruno Beltrão with Grupo de Rua de Niterói. Presented in Villa-Lobos Theater on October 31 and November 1, H3 doesn’t allow hip-hop to be transformed in contemporary rhetoric only because it is performed on a traditional stage.

The idea that all choreographic discourses, whatever their origin may be – but above all those that come from other contexts -, widens the notion we have of contemporary dance, maybe that´s an advantage of what is regarded as democratic access to art. However, the work of Bruno Beltrão does not inscribe itself, in a simple way, in an idea of contemporary movement democratization that allows, as part of the broad discourse about dance, other choreographic discourses that don´t result from a formal and conceptually performing framing.

With H3, the Brazilian choreographer works the characteristics of hip-hop – understood not as individual expression but as a collective experience -, from a different paradigm, apparently rhizomatic. The sequences organized in large groups that are not necessarily thematic, but have close choreographic logics (one-on-one and collective games) allow a desire to widen the movement freedom within a formal and structured grid, without giving in to the specificity of that language and working a representation of the contemporary body, to correspond to a dramaturgically arbitrary movement, eminently individualistic and inhabiting urban and para-choreographic contexts, like hip-hop is.

Each performer establishes a movement sequence that, once executed, is amplified by another performer, in a dialectic game in permanentl ascension. Thus, this reorganization of movement as a dialogue space allows the logic of hip-hop to gain creative dramaturgic substance (daring even to ground it) and the allegedly democratic recipe of contemporary dance to regain a concrete risk margin.

Other aspects compete for the understanding of hip-hop as a gregarious dance. Specifically the light scheme and the usage of the scenic space. A first part performed at the up-stage, with the performers seeing fight rituals and chivalrous exhibition substituted by elegant competitive movement sequences that go beyond the gratuitous gesture. That is followed by another one, in half-light, in which lines that occupies the whole rear of the empty stage are drawn, amplifying each body’s potencies, now based on complementarity with other performers, forming unified bodies that share the same rigour and demand as any classic ballet cast. Fitted to each performer, tough in their expression and precise in the abrupt, dry and brief movements, the gestures go beyond the each one’s individual space, embracing a collective discourse, so contrary to the individualism and identification of contemporary creation.

This dramatization of hip-hop forces us to wonder if the choreographer wouldn´t be operating in the same principles used by the classic narratives, precisely for using allegedly free movements. Particularly because in this dramatization not only Bruno Beltrão becomes more distant from hip-hop, he also places it in a territory that explores new territoriality (or he widens the existing territory), even if it accessible. The submission of hip-hop to contemporary dramaturgic construction doesn´t happen at the expense of the hip-hop linguistic territory, but rather suggests the exploration of another representational notion of the contemporary body. Precisely one that survives the disciplinary rule and guarantees that those bodies can remain as ethereal as those of classic dancers.

The author travelled as a guest of Festival Panorama de Dança

An excerpt of H3 can be watched at the festival’s youtube channel

Previous articles:

Panorama 2008 – A gesture that is ours