Uma proposta de atuação na rede pública

Apresentação

A capacidade de se expressar por meio do corpo é intrínseca ao ser humano, é uma característica que se aprimora continuamente, desde as civilizações mais antigas. Nessa medida o movimento se constitui em um dos principais meios de interação entre o homem e o mundo a sua volta, desde as ações mais simples até o conjunto de ações simbólicas e complexas que compõem a arte da dança.

Vivemos em uma sociedade que contribui para a formação de pessoas fragmentadas, as quais se especializam em determinadas atividades, em um tipo de raciocínio, hipertrofiam algumas funções cerebrais e partes do corpo em detrimento de outras. Pessoas condicionadas pelo bombardeio diário de informações provenientes dos meios de comunicação e da cultura de massa, as quais impõem modelos prontos e influenciam diretamente na capacidade de percepção e atuação na sociedade.

Neste sentido, a prática da dança é uma forma de resgatar e ampliar a percepção das pessoas, a partir da ampliação da consciência corporal, buscando favorecer a integração do corpo, mente e emoções por meio do contato com essa manifestação artística. Por isso, a capital importância de que o ensino da linguagem da dança realmente ocorra nas escolas públicas. O que nos parece a melhor alternativa para democratizar uma linguagem tão elitizada dentro da realidade sócio-econômica brasileira.

O Projeto Dançando na Escola

Pensando na possibilidade de acesso à cultura para as pessoas, elaboramos um projeto de ação que procurasse estabelecer redes de comunicação entre a escola que é um local de aquisição de conhecimentos, e à comunidade. Assim nasceu o Projeto Dançando na Escola, uma parceria entre o Instituto de Artes da Unesp e a Escola Estadual Alexandre de Gusmão. Ele se constituiu por um conjunto de ações que visaram ampliar o ingresso da arte nas comunidades mais carentes por meio da introdução da linguagem da dança no ambiente escolar.

O primeiro critério na escolha da escola na qual se desenvolveu o projeto foi a localização da instituição e o fato de ser uma escola pública que oferece o curso de magistério. Próxima a favela Heliópolis, a escola atende uma parcela significativa dos moradores desta comunidade. Além disso, em levantamento feito nas escolas públicas da região (ainda em 2002), foi constatada a inexistência de atividades que enfocassem a dança como manifestação artística.

No período de março a novembro/2003, o projeto promoveu por meio de um conjunto de ações artístico-pedagógicas, o contato efetivo dos alunos desta escola com a linguagem da dança.

Essas ações foram oferecidas à escola durante o ano letivo por meio da exibição de um vídeo-documentário do grupo Stomp, de uma oficina de dança e percussão corporal de nome Batuque no Corpo, de uma exposição de fotos sobre as danças da cultura popular tradicional brasileira, da apresentação do espetáculo do grupo de teatro didático da Unesp Atrás do Grito, e do curso Desenvolvendo a Dança no Magistério. As quatro primeiras ações foram abertas à totalidade dos alunos e à comunidade circunvizinha e o curso, foi dirigido apenas aos alunos do magistério dessa escola.

Com o intuito de ampliar o repertório cultural e potencialidades criativas e expressivas dos participantes, o projeto esforçou-se não só por favorecer a prática da dança, mas também, por promover debates nos âmbitos da arte, estética, cultura, filosofia, realidades históricas e sociais dos participantes por meio da apreciação estética das manifestações artísticas presentes na sociedade. Nessa medida, procuramos o envolvimento da comunidade nas atividades propostas pelo projeto.

As ações desenvolvidas pelo projeto, em contato com o conjunto de circunstâncias encontradas na escola, propiciou o recolhimento de informações, que mediante um olhar atento, permitiu identificar alguns fatores que impedem o desenvolvimento de atividades artísticas, mais especificamente a dança na escola, como também apontar caminhos para o repensar as práticas artísticas no ambiente escolar como uma possibilidade de ampliação do repertório cultural dessas pessoas.

Objetivos

O objetivo primeiro do projeto: levar a cultura da dança para a escola, decorreu da convicção de que o movimento constitui um dos principais meios de interação entre o homem e o mundo a sua volta, desde as ações mais simples até o conjunto de ações simbólicas e complexas que compõem esta linguagem artística.

Tendo em vista esse objetivo maior, foi preciso criar condições para que a linguagem da dança pudesse no ambiente escolar, ser vivenciada como fator de desenvolvimento e de ampliação da consciência corporal, por meio de experiências diversas de expressão e comunicação do corpo.

Dessa forma procuramos oferecer um conjunto de ações artístico-pedagógicas que desenvolvessem nos estudantes uma percepção do caráter coletivo da dança, da importância desta linguagem na integração entre as pessoas e que estabelecessem o diálogo para troca de experiências possibilitando um contato maior com o aspecto cultural e estético da dança. E ainda, ações que promovessem a relação entre a dança, o movimento em si e a educação.

No decorrer do projeto procuramos colher informações por meio de um questionário aplicado no início e no final do curso oferecido aos alunos do magistério. Essas informações possibilitaram uma primeira identificação de alguns aspectos que norteiam o universo cultural dos alunos que freqüentam o curso magistério dessa escola, e que serão futuros educadores. Essa análise não se limitou a apontar os problemas enfrentados pelos profissionais dispostos a trabalhar a linguagem da dança na escola, mas em apontar caminhos capazes de minimizar as chances de um projeto de dança idealizado para uma escola da rede pública de ensino fracassar.

Ações desenvolvidas no Projeto Desenvolvendo a Dança no Magistério

A primeira atividade que promovemos foi a exibição do filme Stomp, em duas sessões, que receberam um público de 40 pessoas. Esse vídeo-documentário apresentou uma colagem de performances do grupo norte-americano – que dá nome ao filme – o qual trabalha com técnicas diversificadas de percussão, montando coreografias a partir de situações do cotidiano. Como eles utilizam bases de ritmos contagiantes (funk, samba, ritmos latinos), e a movimentação é muito dinâmica, existiu uma grande identificação das pessoas presentes em sua maioria adolescentes da comunidade e do ensino médio da escola.

Além disso, ao produzir sons de objetos de uso cotidiano, que é a proposta do grupo Stomp, o público se sentiu estimulado a experimentar e criar. Portanto, ao final de cada sessão, após as discussões, divulgamos o próximo evento, que seria a oficina de dança e percussão corporal Batuque no Corpo, a grande oportunidade de colocar em prática um pouco do que foi visto no vídeo.

No entanto, a oficina foi prejudicada, por um problema de comunicação na escola, pois ocorreu no dia 16 de outubro, logo após o ponto facultativo do dia dos professores. Por isso, recebemos apenas 08 participantes. Mesmo assim, o objetivo de estimular a criatividade aliando a dança e a percepção rítmica, foi alcançado.

Como terceira ação realizamos a abertura da exposição Danças Populares Brasileiras, na qual organizamos um mural no pátio da escola, com fotos e informações sobre as principais danças populares. Essas fotos permaneceram expostas durante um mês com visitação aberta aos alunos, funcionários, corpo docente e à comunidade.

A apresentação do grupo de teatro didático da Unesp Atrás do Grito foi um momento importante no cotidiano escolar, pois a escola “parou” para assistir o Festeatro para saudar a povoaria … Esse espetáculo de folguedos e danças regionais fez muito sucesso entre o corpo escolar e a comunidade, que nos comentários disseram nunca ter visto uma manifestação artística dessa natureza.

Outra ação artístico-pedagógica desenvolvida pelo projeto, foi o oferecimento do curso Desenvolvendo a Dança no Magistério. O curso aconteceu durante o ano letivo, com a participação de 14 alunos da escola pertencentes ao ensino médio. Abordamos elementos técnicos voltados para aquisição de repertório motriz, ampliação da consciência corporal, apreciação estética, desenvolvimento da criatividade e expressão corporal. Nesse sentido procuramos estabelecer uma interface entre a linguagem da dança e a educação, uma vez que os participantes serão futuros educadores do ensino fundamental.

O encerramento do projeto deu-se por meio de uma festa na escola, na qual os alunos do curso apresentaram uma coreografia e receberam certificados de participação. Este grande evento aconteceu no dia 13 de novembro, e recebeu um público de mais ou menos 200 pessoas.

Todos os segmentos da escola estavam representados, havia alunos do ensino médio regular e do magistério, professores, funcionários, direção e parentes e amigos. O evento foi muito aplaudido e elogiado e, segundo depoimentos de professores e alunos, apresentou algo inovador dentre as diversas apresentações que já ocorreram na instituição.

Além dos depoimentos que registramos no decorrer do projeto, no qual procuramos identificar o impacto da implantação do projeto na escola, elaboramos dois questionários que aplicamos nos alunos do curso Desenvolvendo a Dança no Magistério, com o objetivo de traçarmos um perfil dos participantes e vislumbrarmos nossa atuação. A análise mostrou que essas pessoas, futuros educadores, do sexo feminino, possuem uma visão em relação à arte e a linguagem da dança voltada ao senso comum, e que foi se alterando no processo, mas que necessita ainda de muitas informações para uma mudança mais expressiva. Houve transformação no discurso, mas sem dúvida, para uma apreciação contextualizada e um possível desdobramento dos conceitos abordados para uma atuação na escola, é necessário um leque maior de informações, reflexão e discussão que contemple os diferentes significados atribuídos a essas manifestações socioculturais.

Resultados

Acreditamos que o objetivo inicial do projeto, levar a cultura da dança para a escola, foi atingido, mas o interessante foi que obtivemos resultados complementares.

A parceria estabelecida entre a universidade e a escola se deu de fato. A escola se mobilizou e “comprou” o projeto, incorporando nossas ações ao seu cotidiano. É claro que enfrentamos problemas operacionais, como por exemplo no dia da oficina, seguinte ao ponto facultativo dos professores, ou momentos em que necessitamos do aparelho de som e o mesmo estava trancado em um armário que não tínhamos chave, e tantas outras pequenas coisas do dia-a-dia.

A comunidade circunvizinha também desempenhou um papel interessante, pois nas primeiras ações compareceu timidamente, e aos poucos foi se envolvendo, a ponto de na apresentação do grupo Atrás do Grito, participar se integrando aos atores em uma grande ciranda. E ainda, sugeriu várias propostas de atuação para o próximo ano.

As alunas bolsistas participantes do projeto Claudia Tarsitano e Denise Pereira Raquel disseram: a contribuição deste projeto para a nossa formação como arte-educadoras, foi de grande importância para o nosso crescimento. Este amadurecimento profissional, ocorreu por conta das dificuldades que tivemos de enfrentar, ao concretizarmos um projeto ideal, ao nos depararmos com a dura realidade de uma escola pública, com todos os seus problemas e limitações. Mesmo assim, conseguimos comprovar que é possível desenvolver de maneira satisfatória, experiências muitas vezes consideradas utópicas em relação ao contexto de uma escola pública. Esse depoimento mostra que a implantação de um projeto dessa natureza atua no desenvolvimento profissional de nossos alunos, despertando o interesse por ações educativas e sociais, fundamentais para a construção de uma sociedade transformadora.

*Kathya Godoy é professora da Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes e Coordenadora do Projeto Dançando na Escola.** Claudia Isabel da Silva Tarsitano e Denise Pereira Raquel são alunas do 4° ano do curso de licenciatura em Educação Artística com habilitação em Artes Cênicas do Instituto de Artes da Unesp.

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