Uma videoinstalação chamada dança | A videoinstallation called dance

Uma cama de casal de mais de 2 metros de altura onde se projeta uma imagem de um corpo sobre o do fruidor que ali acaba de se deitar. Videoinstalações disponibilizadas em um amplo salão de arte, em um museu, ou ainda, em um foyer de teatro. Objetos como aquário, mesa, olho mágico como suportes dessas instalações. Cordões que atravessam o salão, conectando vasos que, com câmeras de segurança, exibem imagens em tempo real dos próprios fruidores. Seria esse um espetáculo de dança?

Pode parecer estranho, mas em Um Alemão Chamado Severino é assim. Trata-se de um espetáculo-instalação produzido pelo Quitanda, formado por artistas de Salvador que transitam pela dança contemporânea, vídeo, performance, instalação, fotografia. Desde sua estreia, em 2009, Um Alemão chamado Severino, contemplado pelo edital de montagem da Fundação Cultural do Estado da Bahia, vem se destacando na cena da dança contemporânea nacional. Em apenas 7 meses, passou por teatros como o ICBA – Goethe Institut (Salvador-BA), museus como o Palácio da Aclamação (Salvador-BA), galerias de arte como o SESC Itaquera (São Paulo-SP) e eventos como Bienal do SESC de Dança (Santos-SP), projeto Mudanças – Dança no Museu e o evento Outras Danças, os dois últimos realizados na Bahia.

Essa mobilidade que o trabalho possui de realizar-se não somente em teatros, mas em espaços como museus e galerias, parece estar diretamente ligada ao seu formato, pois, ao investigar uma linguagem híbrida imbricada ao campo das artes visuais, propõe diretamente a presença de um público ativo, que vai não somente traçar seus próprios trajetos e percursos no modo como decidem experimentar a obra-instalação, como também vão decidir o momento que querem assistir/interagir com o trabalho.

O fruidor decide quanto tempo quer observar as videoinstalações, em quais se sente mais instigado a permanecer, se quer ficar cinco minutos ou duas horas. Pode optar também, em algum momento, não se envolver com nenhum vídeo especificamente, mas assistir à própria composição cênica do trabalho que envolve os corpos dos outros fruidores. Por entre estruturas espaciais, iluminações, instalações e imagens audiovisuais, pode-se ver esses corpos dos visitantes deitados, sentados, de pé, agachados, com as cabeças dentro de determinadas estruturas, pernas sobre a cama…

Mas talvez o leitor ainda esteja se perguntando: o que teria de dança nesse trabalho?

Faz sentido tal estranhamento, principalmente, se levarmos em consideração o fato de não existir, presencialmente, nenhum bailarino pronto para realizar, naquele momento, uma dança neste espetáculo. Entrentanto, os discursos do corpo colocados ali vão além da mera materialidade física, biológica de um corpo, pois estamos no campo da videodança, das imagens digitais, das telas e projeções audiovisuais. Tais vídeos se instalam num espaço específico e emergem enquanto videodanças, propondo uma inversão nas relações espaço-temporais entre artista e fruidor, entre corpo e contexto.

“Ao entender que um espetáculo de dança pode ser configurado a partir de um conjunto de videoinstalações, proponho refletir sobre a maneira como os sujeitos se relacionam numa sociedade que admite sexo virtual, reuniões por videoconferência, localizadores do corpo através de GPS, dentre outras tecnologias que propõem espaços-tempos diferenciados, aproximando sujeitos e contextos. Neste sentido, a concepção do corpo não está mais pautada numa materialidade física, palpável, biológica, mas compreende a existência de outras formas de corpo (gráficas, eletrônicas, digitais), e que, nessas configurações diversificadas, não deixam de ser sujeitos propondo discursos sobre o corpo e pelo corpo”, pontua Giltanei Amorim, diretor do espetáculo e do Quitanda.

Muito longe de ser um espetáculo com hora para começar e terminar, Um Alemão chamado Severino, mesmo sendo um trabalho focado em questões do corpo e da dança, pode ser considerado também uma instalação plástica – ali estão suas instalações disponíveis para a apreciação do público, como numa galeria ou num museu de arte. Nesse contexto, emergem outros parâmetros para se pensar a dança, a relação com a obra artística, a proposição de discursos do corpo na contemporaneidade, as novas possibilidades de estratégias compositivas e de criação em dança, contaminadas pelas artes visuais.

O corpo e o diálogo com a estética surrealista

Não parece ser a intenção do Quitanda investigar um tipo de composição em dança que acontece a partir de sequências de passos e deslocamentos dentro do que comumente é entendido como coreografia – pelo menos não nesse trabalho. Valoriza-se mais as possibilidades de movimento e deslocamento enquanto ação física que altera os estados corporais e propõe diferentes relações com os contextos nos quais os corpos transitam.

A cama de 2 metros de altura / Foto divulgação

A cama de 2 metros de altura / Foto divulgação

O corpo em relação ao seu cotidiano aparece em todas as videodanças. Os intérpretes parecem executar hábitos aparentemente corriqueiros como tomar um café, sentar-se diante de uma mesa de jantar, andar pela cidade, olhar-se no espelho, aguardar o semáforo abrir… Entretanto, essas experiências tão comuns e habituais vão se tornando extremamente estranhas e nada familiares a partir das relações estabelecidas entre os sujeitos ali presentes, e que se potencializam à medida que imagens de outros contextos vão se entrecruzando nos vídeos, compondo um amplo emaranhado de informações.

Uma espécie de estética surrealista parece dialogar com as imagens audiovisuais de Um Alemão chamado Severino, evidenciando a proposição de associações provocativas e imagens bizarras que, às vezes, chegam a parecer até mesmo irreais. Segundo Giltanei, o surrealismo sempre influenciou seus trabalhos justamente pela possibilidade de aproximações de imagens de contextos diferentes e a possibilidade de gerarem estranhamentos. Em um dos vídeos, há a presença de um texto surrealista de Antonin Artaud, interpretado por uma das artistas em um cenário repleto de espelhos que refletem a imagem dela sob vários ângulos. Revela-se ali um corpo que, em sua instabilidade, parece um tanto atordoado que beira o desespero, polemizando a impossibilidade de fixidez de uma identidade e a dificuldade de reconhecer a si mesmo.

Outros vídeos, como a cena de um casal numa mesa de jantar – o que poderia resultar numa simples ação de comer – vai se configurando de modo tão surreal que chega a ser inóspito, não havendo mais possibilidade de qualquer reconhecimento de familiaridade. Aqui, a casa parece tão ameaçadora como um espaço público (no fim do texto, assista a um trecho do espetáculo). As ações que se passam na rua também se desdobram num mesmo tom de mistério e suspense, dando a impressão de relações frágeis que podem surpreender a todo momento.

Entretanto, todos esses efeitos só foram possíveis a partir da edição das imagens. Nesse sentido, pode-se compreender o quanto as potencialidades do vídeo são acentuadas quando colocadas enquanto estratégias de criação em dança, à medida que, somente por meio delas, é possível alterar as relações espaço-temporais de uma cena. “Para nós, a edição de imagens digitais torna-se uma estratégia coreográfica, sendo que o entendimento de videodança que trazemos parte da relação do corpo com a câmera. O trabalho do editor torna-se também de coreógrafo, a partir da maneira como o vídeo é editado”, pondera o diretor.

As imagens audiovisuais em suas estruturas-instalações ganham uma dimensão ainda mais estranha pela sonoplastia e pela penumbra provocada pela iluminação, provocando deslocamentos e alternando o estado corporal dos fruidores. O espetáculo provoca o público o todo tempo ao permitir que este vivencie situações onde a cinestesia acontece não somente através daquilo que é visto, mas também pela experiência corporal que se dá na interação desses fruidores com as estruturas instaladas, suscitando formas diferenciadas de apreciação estética.

Esses níveis de estranheza são acessados a depender da disponibilidade, do interesse e do limite de cada fruidor. Parece existir a intenção de provocar e tencionar as relações presentes nos “entre-lugares” que conectam os sujeitos nos contextos artísticos e culturais diversos. O estranho torna-se a possibilidade de encontrar caminhos de reelaboração de paradigmas fixos, provocando o trânsito entre ambientes co-existentes e co-dependentes numa complexa rede de informações. É nesse lugar do estranhamento que emergem outras possibilidades de visões de mundo, e que, no campo da dança, está diretamente relacionado à percepção do corpo em relação a si mesmo, ao outro, à cultura, ao mundo. Aqui, dualidades como o público e o privado, o dentro e o fora, casa e mundo, são completamente perturbados e borrados, sendo o único lugar possível de se ocupar o próprio lugar do trânsito e dos deslimites da cultura e da arte.

Sobre o Quitanda

Criado em 2006 nos corredores da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o Quitanda é uma reunião de artistas interessados em discutir o corpo. Na materialização de suas obras, buscam transversalizar a relação entre a dança e outras linguagens artísticas como a fotografia, o vídeo, a performance, o teatro. Em seu repertório, destacam-se os seguintes trabalhos: As Bruxinhas (2006), Inbox (2008), A Vácuo (2009) e Um Alemão Chamado Severino (2009), entre espetáculos, performances e intervenções urbanas que participaram de eventos importantes no cenário baiano e nacional como o Quarta que Dança da FUNCEB, Plataforma Internacional de Dança (PID), Bienal SESC de Dança, World Dance Alliance, Dimenti Interação e Conectividade. Agora em 2010, o Quitanda começa a investigar seu novo espetáculo intitulado Autólise e a produzir um videodança que ainda não possui título.

Laura Pacheco é jornalista, artista da dança e mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia.

Abaixo, veja um trecho de Um Alemão Chamado Severino:

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=I3dh0j2QlCo[/youtube]

A double bed more than 2 meters high in which an image of a body is projected over the spectator who just laid down. Videoinstallations made available in an ample art lounge, in a museum or at a theater’s foyer. Objects such as a fishbowl, a table or a peephole are used as basis for these installations. Cords that cut through the lounge, connecting vases that show real-time images of the spectators themselves, captured with surveillance cameras. Could this be a dance show?

It may seem strange, but Um Alemão Chamado Severino is one. It´s a show-installation produced by Quitanda, a group of artists from Salvador that work with contemporary dance, video, performance, installation, photography. Since its premiere last year, Um Alemão Chamado Severino has been standing out in the Brazilian contemporary dance scene. In only seven months, it went through theatres like ICBA – Goethe Institut (Salvador-BA), museums like Palácio da Aclamação (Salvador-BA), art galleries like SESC Itaquera (São Paulo-SP) and events like SESC’s Dance Biennial (Santos-SP), the Mudanças – Dança no Museu project and Outras Danças event, the latter took place in Bahia.

The piece’s mobility to take place not only in theaters, but also in spaces like museums and galleries, seems to be directly connected to its format. Since it investigates a hybrid language embedded in visual arts, it directly proposes the presence of an active audience, who will not only trace their own paths as they decide how to experience the piece, but also decide the moment they wish to watch/interact with the performance.

The spectators decide how long they want to observe the videoinstallations, in which they feel most compelled to remain, if they want to stay five minutes or two hours. They can also choose, at some point, not to get involved with video specifically, but to watch the piece’s scenic composition, which involves the body of other spectators. Amidst spatial structures, lighting, installations and audiovisual images, it´s possible to see the bodies of spectators lying down, sitting, standing up, crouching, with their heads stuck inside some structure, with their legs over the bed…

But maybe the reader is still wondering: how is this piece related to dance?

Such strange feeling makes sense, especially if we take into account the fact that there are no dancers physically present to perform at that time. However, the discourses of the body placed there go beyond the mere physical, biological materiality of a body, since we are in the realm of videodance, digital image, screen and audiovisual projections. Those videos are installed in a specific space and emerge as videodances, proposing an inversion in space-time relationships between artist and spectator, between body and context.

“By understanding that a dance show can be configured from a set of videoinstallations, I propose to reflect upon the way individuals relate to each other in a society that allows virtual sex, videoconference meetings, GPS body locators, among other technologies that propose different space-times, bringing together individuals and contexts. Thus, the conception of the body is no longer based on physical, palpable, biological materiality, but understands other body forms (graphic, electronic, digital), and, in such diversified configurations, these are still individuals proposing discourses about the body and through the body”, says Giltanei Amorim, director of the show and of Quitanda.

Far from being a show with start and finish schedule, Um Alemão chamado Severino, can also be considered a plastic-art installation, even though it focus on body and dance issues. Its installations are available for audience appreciation, as in an art gallery or museum. In this context, other parameters to think about dance emerge, as well as the relationship with art-pieces, the proposal of body discourses in the contemporary, the new compositional and creative strategies for dance, contaminated by visual arts.

The body and the dialogue with the surrealist aesthetic

It doesn´t seem to be Quitanda’s intention to investigate a kind of dance composition that takes place upon a sequence of steps and shifts of what is commonly understood as choreography – at least not in this piece. The focus is more on movement and displacement possibilities as physical actions that alter body states and propose different relationships with the contexts in which the body acts.

The body in relation to its daily life appears in all of the videodances. The performers seem to carry out apparently trivial habits, such as drinking coffee, sitting at a dinner table, walking through the city, looking at the mirror, waiting for a traffic light to go green… However, such common and usual experiences become extremely strange and unfamiliar through the relationships established between the subjects present and are potentiated as images from other contexts are juxtaposed in the videos, composing a broad entanglement of information.

A kind of surrealistic aesthetics seems to dialogue with the audiovisual images of Um Alemão chamado Severino, expressing the proposal of provocative associations and bizarre images which seem unreal at times. According to Giltanei, surrealism always had an influence in his work precisely because of the possibilities for bringing together images from different contexts and the possibility of creating uneasiness. In one of the videos, there is a surrealist text by Antonin Artaud, read by one of the artists in a setting filled with mirrors that reflect her images from different angles. That scene reveals an unstable body that seems quite disturbed, almost in despair, thus questioning the impossibility of fixating an identity and the difficulty of recognizing oneself.

Other videos, like the scene in which a couple sitting at a dinner table – which could result in a simple act of eating – becomes so surreally configured that it seems weird, there is no longer any possibility of familiarity. In this case, the house seems as threatening as a public space. The actions that take place in the street also unfold in the same mysterious atmosphere, giving an impression of frail relationships that could bring surprises at any moment.

However, all of these effects are only possible through image editing. Thus, it can be understood how much the video potentialities are highlighted when used as dance creative strategies, as it is only through them that it´s possible to change the space-time relationships of a scene. “For us, the editing of digital images becomes a choreographic strategy, since our understanding of videodance comes from the relationship between the body and the camera. The editor’s work also becomes that of a choreographer through the way the video is edited”, ponders the director.

The audiovisual images in the installation- structures get an even stranger dimension with the soundtrack and the half-light created by the lighting design, causing displacements and shifting the spectator’s body state. The show provokes the audience all the time by allowing them to experience situations in which kinesthesia happens not only through what is seen, but also through the bodily experiences that take place in the interactions between the spectators and the structures, evoking different forms of aesthetic fruition.

These levels of strangeness are accessed depending on each spectator’s availability, interest and limitations. There seems to be an intention to provoke and strain the relationships present in “between-places” that connect individuals in different artistic and cultural contexts. The weird becomes the possibility to find paths for re-elaborating fixed paradigms, provoking the transit between co-existing and co-dependent environments in a complex network of information. It is from this place of strangeness that other world-view possibilities emerge and in the dance field, it is directly related to the perception of the body regarding itself, the other, culture and the world. In this case, the dualities like public and private, inside and outside, home and world are completely disturbed and blurred, becoming the only possible place to occupy the very space of transit and limits of culture and art.

About Quitanda

The group was created in 2006, in the hallways of the Dance School of Bahia Federal University. Quitanda is a gathering of artists interested in discussing the body. They seek to explore the relationship between dance and other artistic languages like photography, video, performance, theater. Its repertory includes: As Bruxinhas (2006), InboxA Vácuo (2009), Um Alemão Chamado Severino (2009), among other shows, performances and urban interventions that participated in important events in Bahia and the rest of the country such as Quarta que Dança da FUNCEB, Plataforma Internacional de Dança (PID), Bienal SESC de Dança, World Dance Alliance, Dimenti Interação e Conectividade. In 2010, Quitanda is beginning to investigate its new show called Autólise and to produce a yet untitled videodance. (2008),

Laura Pacheco is a journalist, dance artist and master’s candidate at Bahia Federal University.

Watch an excerpt of  Um Alemão Chamado Severino:

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=I3dh0j2QlCo[/youtube]