Variâncias: identidades provisórias | Variâncias: provisional identities

Apresentação:

Este artigo é resultado da pesquisa de doutorado chamada Variâncias: A Dança processando identidades provisórias, sob orientação da Profª. Dra. Christine Greiner no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC/SP defendida em 2003.

Do que se trata a pesquisa:

Este trabalho foi construído aos poucos. A cada passo surgiam possibilidades para diferentes direções, até a escolha pelos processos que compõem o espaço criativo e investigativo. Nesta ação, foi a dança que pontuou diferentes percursos. A partir do ato de dançar, a percepção do corpo em relação aos espaços que ocupa se transformou, ampliando entendimentos sobre outras possibilidades de relações do corpo com o espaço e vice-versa.

Assim, se impôs a necessidade de olhar em várias direções ao mesmo tempo e, a partir da dança, organizar estes olhares lado a lado. Neste procedimento, uma visão mais ampla tomou forma na medida em que não nos limitamos a reagir àquilo de que gostamos ou não gostamos e passamos a nos interessar por aquilo que podemos descobrir.

Uma das tarefas deste trabalho é, portanto, a de apontar que a dança é um processo de comunicação altamente especializado e que produz conhecimento através de ações que testam diferentes competências do corpo. Reconhece-se, neste caso, que o conhecimento se desenvolve a partir do fazer. Nesta abordagem, assume-se também que, no próprio fazer estão implícitos vários níveis de compreensão do corpo e que estes, sempre atuam de forma simultânea em relação ao que se pretende conhecer.

Nestes trajetos foi surgindo a idéia de uma prontidão cênica a partir do que chamamos como escuta do corpo. A idéia de uma escuta voltada para o corpo na relação com o espaço cênico é um conceito aqui criado para atender a necessidade de uma prontidão do artista do corpo na sua relação com os processos que envolvem a criação e o fazer cênico. Este conceito de escuta será aprofundado no decorrer deste trabalho, porém, é possível apontar neste momento, como esta idéia da escuta do corpo foi se configurando enquanto uma prontidão cênica.Temos hoje uma série de problemas onde a escuta está indisponível. Seja a escuta com o outro, a escuta com o próprio corpo ou a escuta com o espaço que nos cerca. A questão da escuta se complica numa sociedade performática, em que se priorizam determinados resultados ou estes se resumem a determinadas metas, abrindo mão de entender no percurso que outras relações estão implícitas neste contexto.

Acreditamos que ao nos disponibilizarmos para o que acontece no momento de cada ação e identificarmos qual a necessidade da intervenção daquele ambiente, colaboramos para uma configuração no espaço em que o corpo torna-se um agente modificador de toda a nossa percepção neste espaço. Neste sentido, o espaço se modifica a cada ação deste corpo.

Geralmente, o desconhecido são as fronteiras com outros conhecimentos. Por isso, idéias foram se formalizando na medida em que vivenciávamos com dança possibilidades de diálogos com outras áreas do conhecimento, tendo sempre como ponto de referência a escuta do corpo numa relação cênica. É importante esclarecer que este trabalho usa várias reflexões teóricas na feitura do trabalho artístico, mas a feitura desse trabalho também colabora na revisão de determinadas reflexões teóricas. Assim a escolha de teóricos como Thelen (1994), Varela (1987), Lakoff (1999) e Juarrero (1999) vem para confirmar que teoria só se faz praticando. Teoria não se faz só lendo livros, mas testando hipóteses. A arte não é diferente e nosso fazer artístico é um fazer na teoria.

Em decorrência de todos esses procedimentos, com o tempo foi surgindo a idéia do termo variâncias, em que uma razão está intrinsecamente ligada a possibilidades de combinações num determinado percurso. Como um catador que perambula entre diferentes ruas e nestas caminhadas vai recolhendo de diferentes espaços e, a partir de uma necessidade íntima, cria combinações de acordo com o que as estruturas dessas coisas e o que suas circunstâncias permitem. Existe um ciclo na estrutura deste trabalho, isto é, um processo de trocas em que diferentes espaços são testados a partir de um pensamento. No decorrer destas trocas, o pensamento proposto sofre variáveis em relação a um estado anterior e ao lugar em que o experimento acontece.

Neste ciclo de variâncias a primeira é a Escuta do Corpo, um projeto artístico cujo centro é a prontidão do corpo em relação ao espaço que o cerca. O silêncio aqui, se torna um exercício fundamental de auto-percepção das interações desse corpo com o ambiente que o invade. Persegue-se esta escuta como um modo de perceber estados e caminhos no corpo no momento em que se processam e precisamos criar. Este silêncio está ligado a uma percepção que dialoga entre variáveis de tempos e espaços. Essas variações invadem nossa percepção no instante em que o corpo precisa criar soluções no espaço. Estas soluções são entendidas como ações. Ações que nos levam a descobrir outras possibilidades de organizar o corpo no espaço.

A fim de estabelecer outras relações neste fazer artístico a partir de uma escuta do corpo surgem as variâncias n° 2 com aplicação pedagógica a partir da convivência universitária.

A variância n°3 relata o processo de produção artística do grupo Musicanoar e as contaminações que a convivência universitária provocaram em suas criações.

A variância n° 4 é uma reflexão final sobre todo este processo investigativo.

Finalizando este ciclo, a variância n°5 surge como cartas.

Na verdade, são comunicações para alunos que vêm sublinhar de outros modos as idéias desenvolvidas nesta tese.

Os objetivos desta pesquisa são:

-Apontar através de experiências práticas de dança contemporânea, relações cênicas que se produzem a partir das diferentes possibilidades interativas com o ambiente, tendo como ponto de partida a diversidade dos corpos;
-Atuar em diferentes espaços, a fim de estabelecer dados comparativos e, conseqüentemente, averiguar a sustentação e permanência destas propostas;
-Demonstrar que a prática artística em dança na vida universitária é estratégia conectiva entre diferentes saberes;
-Propiciar um instrumental prático-teórico para a formação dos alunos, a partir do qual eles terão condições de inventar um projeto artístico, adequado às questões do mundo em que cada um deles percebe-se inserido.

A hipótese principal:

Como foi dito anteriormente, todo este procedimento requer uma atitude estética em relação ao mundo que é central para a educação de nós mesmos, dos outros e para a educação do próprio mundo. A hipótese principal deste trabalho é a de que dança produz conhecimento a partir do fazer, isto é, a dança na sua ação estimula conexões entre as estruturas de atividades corporais e operações cognitivas superiores (raciocínio, concentração, etc).

É através da projeção empática que passamos a conhecer o nosso meio ambiente, entender que somos parte dele e como ele é parte de nós. Esse é o mecanismo corporal pelo qual participamos da natureza como parte de uma realidade mais ampla na qual há muito, estamos envolvidos.

Este pensamento está ancorado nas possibilidades de trocas, somas e avanços obtidos a partir de vivências práticas. No caso de um artista do corpo que atua no universo da dança, a escolha de criar interações entre diferentes grades teóricas e suas novas tendências, colabora na expansão de um fazer artístico. Este fazer elege contaminações proporcionadas por novos entendimentos de mundo. Nesta construção, o pensamento artístico estruturado em redes integra diferentes universos.

A partir deste panorama, a proposta é que o indivíduo construa um fazer a partir de suas relações com o mundo. Estas geram condutas coerentes no mundo entre o ser e a prática do ser. Na verdade, não existe separação. O ser e o fazer estão indissoluvelmente entrelaçados.

Como e onde esta hipótese está sendo testada:

No período dos quatro anos deste doutorado, a hipótese foi testada em três ambientes onde, de alguma forma, a dança vem sendo vivenciada como produtora de conhecimento.

I)ambiente: Ensino Universitário
Escola de Comunicação e Artes, na ECA/USP, a partir de 2002.O vínculo se estabelece através da coordenação das disciplinas de Técnica de Dança I e Técnica de Dança II.
II)ambiente: Produção Artística
O vínculo se estabelece a partir de estudos cênicos com colegas coreógrafos, além de novas criações coreográficas com o Grupo Musicanoar.

Fechamento do Artigo:

Este trabalho da escuta do corpo enquanto um procedimento artístico, nesta construção, desaguou em ambientes coreográficos gerados por interlocuções interativas em modos de pensar arte a partir de determinados acordos no espaço. Neste mover dançante, ciência e educação foram contaminações preciosas. Nossa arte como aquilo que escolhemos enquanto intervenção neste mundo. Na ciência buscamos outros entendimentos do espaço – seja aquele que invade nossos corpos ou aqueles que nos invadem entre outros corpos. Com a educação, nosso desejo era provocar nos outros, ignições que os levassem a criar.

Criação: eis aí algo que nos ensina a lidar com diferentes etapas de um conhecimento. Nestas empreitadas aprendemos a configurar algo entre ordens e vertigens. O ambiente criativo é um reino permeado sempre de muitas dúvidas. Não sabemos ao certo aonde iremos chegar e muito menos se estamos fazendo as melhores escolhas no processo. O importante é experimentar um caminho. O ato de criar nos leva a entender melhor o que está a nossa volta e colabora para que percebamos melhor o outro. Criar nos ensina a amar. Amar também é um ato de resistência e tolerância. O amor nos obriga a sair de nós mesmos e olhar o que acontece a nossa volta. Ensina sobre convivência. Por isso amor é construído o tempo inteiro. O amor é o entre. Este entre cria trânsitos provisórios. É nesta paisagem híbrida que a dança se faz. Em instantes a dança se torna ela mesma e em sopros se transforma, em novas e breves paisagens.

Helena Bastos é coreógrafa, dançarina e professora. Desde 93, trabalha de forma sistemática na área de dança, como criadora-intérprete com Grupo Musicanoar. Atualmente, é professora do Departamento de Artes Cênicas/USP-SP.

Referências Bibliográficas:

GREINER, Christine e AMORIN, Cláudia (2003). Leituras do Corpo. Organizadoras. São Paulo: Annablume.
KATZ, Helena e GREINER, Christine (2002). Lições de Dança – 3 – A natureza cultural do corpo. UniverCidade Editora.
KATZ, Helena (1994). Um Dois Três – A Dança é o pensamento do Corpo. Tese de Doutorado, São Paulo: PUC/SP.
LAKOFF, G e MARK, Johnson (1999). Philosophy in the Flesh: The Embodied Mind and its Challenge to Western Thought. New York: Basic Books.
LOUPPE, Laurence (2000). Lições de Dança – 2 – Corpos Híbridos. Tradução Gustavo Ciríaco. Rio de Janeiro: UniverCidade.
THELEN, Esther e SMITH, Linda B (1994). A Dynamic Systems Approach to Development:Aplications . Massachusetts: MIT Press/ Bradford Books Series Cogniyive Psychology.
VARELA, Francisco; THOMPSON, Evan e ROSH, Eleanor (2003). A Mente Incorporada. Ciências Cognitivas e Experiência Humana. Tradução: Maria Rita Secco Hofmeister. Porto alegre: Artmed.
From studies and researches about the body and its movements, this thesis proposes dancing as a communication process highly specialized and able to produce knowledge through testing different motor skills.

It is recognized, in this case, that cognition and communication processes are developed through practical action. The theoretical and practical researches demonstrate that, in artistic and educational processes as well, every procedure demands an esthetical attitude towards the various spaces and locations in which we move and in relation to people with whom we share these territories. Therefore, the central hypothesis of this work is that the act of dancing produces cognition through practice. It is only the action that stimulates the connections between the structures of the physical activities and the superior cognitive operations (inner thought, reasoning, concentration, etc.). Such hypothesis is subsidized by the recent scientific investigations about body communication, sensorimotor system and elaboration of metaphor (Lakoff and Johnson, 1999; Thelen and Smith, 1997; Katz and Greiner, 2002).

Dancing provokes in our bodies symbolic net organizational processes through its intervention in the environment. This environment cannot be defined as the other or the outside or even the passive place. We do not exist outside of it. Communication takes place in a continuous flow and builds new possibilities of existence.