Veni, vidi, vici: colunista sobrevive à maratona de Joinville

Antes de qualquer coisa, devo pedir minhas sinceras desculpas ao público leitor deste importante sítio virtual pela demora em re-estabelecer diálogo, especialmente depois de tamanho rebuliço em torno do imbróglio-xexéo, assunto de minha última coluna. Águas passadas?(!)

De volta ao Rio depois de minhas ocupações no 26º Festival de Dança de Joinville – como jurada do gênero dança contemporânea (assim o intitulam) da competição e como palestrante na segunda edição dos Seminários de Dança lá realizados – muita, muita coisa a pensar. Distanciamento histórico estratégico responderia pelas inúmeras modificações que este texto solicita e que certamente serão feitas, sobretudo em respeito à seriedade que qualquer material a ser produzido acerca deste festival exige hoje de nós. Diferente, aqui ensaiarei um testemunho en direct trazendo para a letra o gosto mais urgente das ferramentas virtuais com as quais ainda me acostumo. Vi, vivi e posso dizer que venci – é de superação física que se trata o festival, tamanha a quantidade de coisas acontecendo ao mesmo tempo; tamanha a genuína curiosidade de acompanhar tudo. Em diversos momentos e por variadas razões, o título do texto de David Lapoujade, “O corpo não agüenta mais” me ocorreu insistentemente.

Tentaria aqui tratar de alguns pontos em geral, quase à guisa de um jornalismo torto e não-especializado, mas me concentrarei na interface realizada entre os Seminários de Dança e o festival que lhe dá suporte. Neste ponto reside um centro possível – qual uma hélice – a partir do qual podemos circundar centrípeta e centrifugamente uma circunstância de dança que em Joinville tem lugar. Os Seminários compõem uma voz que estabelece curioso diálogo com seu ambiente, se tomarmos como corretas, teses da produção crítica brasileira em dança a nos falar da contaminação como índice mínimo das relações entre meio e informação.

Os Seminários de Dança são uma nova iniciativa de caráter formativo – sua primeira edição foi realizada ano passado, em 2007 – reunida ao rol de tantas outras integradas, com o passar do tempo, às ações deste festival em sua programação. Um festival competitivo que hoje investe massiva, séria e quase contraditoriamente na formação, compondo um outro quadro ao lado daquele já tão insistente e pertinentemente pintado da competição. De moldura, a formação tornou-se imagem e não à toa ela compõe o eixo temático já anunciado para os Seminários do ano que vem.

A história crítica do festival de Joinville ainda está por ser insistentemente visitada pela pesquisa séria deste país. Reunir 2.500.000 espectadores/26 anos de história; 4.000 espectadores/dia de festival; um quase incalculável capital de giro articulado sobre o tripé políticas públicas/mídia/empresariado em torno de dança é algo que merece atenção. Séria atenção. Outra história a ser tratada em novas investidas. Que venham outros pesquisadores!

Outra monta: aqui nos cabe perceber como as iniciativas realizadas pelo festival de Joinville perfazem um retrato – inquietante imagem – da formação em dança deste nosso imenso país: ponto que aqui me interessa tratar. Se olhar é escolher, recortar e inevitavelmente editar, tentarei então a audição com honestidade possível para ouvir aquela voz, em paralelo a confessa, porém inevitável, edição realizada pelas escolhas, talvez preconceituosas, de um olhar-estrangeiro como o meu. Criticamente sempre.

Tratar a histérica gritaria de torcida da platéia do festival, ou a curadoria do Conselho artístico, ainda os resultados aferidos pelos jurados na competição e os prêmios concedidos pelo júri especial como um discurso torna-se aqui provisoriamente estratégico. Dando-lhe ouvidos e não de ombros, talvez possamos interagir mais de perto, em diálogo, portanto, com aquela difícil e fascinante circunstância de dança. Chegar ao Centreventos – arena multiuso, espécie de ginásio-teatro (imenso), onde são apresentados os espetáculos de gala e realizadas as noites de cada um dos gêneros competitivos do festival – e lá permanecer pode significar incluir na paisagem de dança algumas outras novas figuras. Tratar o Centreventos ao mesmo tempo como arena e tribuna talvez nos ajude a expiar a culpa cristã do sacrifício aos leões e entrever, no panis et circenses, uma agenda que simultaneamente escreve e circunscreve um retrato desta dança-em-formação hoje.

Para melhor esclarecer a questão, podemos providencialmente subdividir as relações entre educação e dança em dois campos distintos de ocupação: de um lado estaria a educação com dança ou pela dança – a assim chamada dança-educação – ocupada, nas escolas de ensino fundamental e médio, em trazer da dança, estratégias e conteúdos pedagógicos fundamentais à formação do sujeito; de outro, a educação em dança, ocupada da formação de futuros artistas da dança em seus variegados e múltiplos aportes na cena hoje. Objetivos distintos, mas até que ponto, princípios assim tão divergentes? Até que ponto pode a formação em dança nutrir-se dos estudos contemporâneos da educação? Como dialogar presencialmente com esta moçada jovem, hoje com pleno acesso às tecnologias de produção e de veiculação da informação? A quem interessa perpetuar, na sala de aula de dança, relações pedagógicas baseadas na sujeição? A que serve ainda hoje ensinar sem contar o segredo, interditando ao artista-em-formação, o acesso à origem, e assim ao sentido, de seu gesto dançado?

Isabelle Launay em seu belo texto intitulado Uma fábrica de anti-corpos afirma que há uma filosofia espontânea na sala de aula de dança. Seguindo sua sugestão, diria que ali está em negociação o que o professor entende que a dança seja e ainda o que ele acredita que ela deva ser – em pauta, o futuro da dança definido a partir do que seu conceito de dança ali praticado inclui e exclui. Pratica-se na aula – em qualquer aula – um pensamento de dança. Sempre.

Alceu Bett

Grupo Reticências, 1º colocado em solo / Foto: Alceu Bett

Técnica e estética (filosofia) se entrelaçam de modo inextrincável em qualquer ensino de arte. Está em jogo mais uma vez que grau de negociação é permitido na relação entre o que se ensina e o que se aprende e o quanto o professor está disposto ou não a educar, ou seja, a desenvolver expedientes para tornar-se pouco a pouco dispensável, ensinando ao aluno a prescindir dele, professor, e, me perdoem o neologismo, a imprescindir de si. Fomentar no aluno sua autonomia, correlata ao responsabilizar-se por si, significa aceitar como princípio a descontinuidade intrínseca ao ato de aprender implícita na máxima da educação contemporânea que afirma: – não é o professor que ensina, mas o aluno que aprende. Nesta descontinuidade, a possibilidade da formação de um criador em dança.

Até que ponto estamos dispostos a admitir o intérprete como um sujeito autônomo e responsável que escolhe e decide? Aceitar esta suposição poderia nos levar a pensar que, quando dança, o bailarino cria e não executa; indo mais longe – exatamente porque e quando não executa, torna-se criador. Ao dançar, o intérprete cria a partitura de movimentos previamente estabelecida na coreografia, na medida em que é ele quem arbitra acordos entre aquilo que o gesto dançado pretendia ser e o que ele pode vir a ser no aqui e agora da lida com o chão e com o tempo. Aqui dizemos que ele cria e não re-cria a coreografia (pensamento bastante usual), pois a escrita – aquela escrita específica – não existiria como dança nem antes nem para além dele. Criar em dança talvez pudesse então ser entendido como improvisar, se entendermos improvisar como medida de negociação do bailarino entre o já criado e o por-criar – medida de sua presença nas escolhas e decisões a serem tomadas em uma partitura de dança que escreve em seu corpo fortes tensões de uma luta travada entre algo que tenta permanecer (o já composto) e algo que tenta se instaurar (o inédito próprio da experiência). É neste sentido, então, que improvisar poderia aqui constituir o próprio sentido do dançar – qualquer dançar.

Seguindo estes pressupostos, educar em dança significaria formar um criador desenvolvendo no artista-em-formação este sentido do improvisar – negociar e escolher a partir de si. A medida de sua negociação estética, também ela em formação, será direta ou inversamente proporcional à medida de negociação entre o que seu professor-formador entende que a dança seja e o que a própria dança vai historicamente decidindo que ela vai ser. Tudo depende da filosofia de ensino ali vigente – do quanto ela é propulsora ou exterminadora de futuro. A assunção de que o futuro da dança em geral não coincide necessariamente com o que o professor acha que ele deva ser; a assunção de que o futuro daquela dança em particular não coincide exatamente com o que foi ensinado responderiam por novos gestos pedagógicos – necessariamente mais honestos – e novos acordos professor-aluno – necessariamente mais maduros. Neste jogo, a possibilidade da formação do intérprete como autor de seu próprio gesto, pensada a partir do acesso à origem e ao sentido de seu gesto dançado.

Estes são apenas alguns dos itens de uma nova pauta que talvez gostássemos de ver em exercício na educação em dança brasileira. Sabemos que estamos bastante longe desta circunstância e que a magnitude de qualquer intento relacionado a este setor da dança torna a tarefa quase impensável. Se levarmos em conta, entretanto, que a larga maioria dos intérpretes e grupos participantes em Joinville é proveniente das escolas e academias espalhadas pelo Brasil, lugares em que a formação em dança – seja ela formalizada ou não formalizada – se dá, não poderia ser o festival lugar e oportunidade para fomentar lenta e insistentemente mudanças nesta paisagem? Antes ou conjuntamente, Joinville me pareceu um lugar estratégico de onde podem partir dados para uma séria e urgente reflexão acerca da educação em dança praticada nas salas de aula brasileiras. E é aí que a porca torce o rabo.

Curiosa iniciativa foi incluída na programação do festival há cinco anos: nas manhãs subseqüentes às noites de competição, os jurados se reúnem com os responsáveis pelos trabalhos para uma conversa. Dependendo obviamente do grupo que integre o júri, há oportunidade ali para um debate crítico atento de ambos os lados da mesa. Estimulados, os artistas em formação respondem com acolhimento, gratidão e – o que mais me impressionou – sede de troca de informação qualificada, um desejo análogo ao desejo do aprender-criativo apresentado acima. Chamá-los de artistas em formação é também um posicionamento – um olhar que se desloca do velho binômio amador/profissional cuja dicotomia já não dá mais conta da circunstância que lá percebi. Trata-se de uma atualização da linguagem, sobretudo de um re-posicionamento do lugar de onde se olha, pois me parece que em muitos casos, também para minha surpresa, é deste lugar que alguns daqueles corpos/sujeitos se colocam para serem olhados. E alguns já é índice, mesmo que pequeno.

É inegável que a perversa lógica da virtuose técnica como termômetro – falso termômetro – da qualificação artística, sobretudo nos outros gêneros competitivos talvez ainda esteja presente nas mesas de discussão, negociação e avaliação como moeda de troca. Parece-me, entretanto, que esta árvore está caindo de madura. Percebo ainda enevoada, uma mudança que engendra e é engendrada por novas relações que estão começando a se estabelecer na sala de aula de dança. Se levarmos em consideração que a pedagogia que se pratica em sala estrutura a escrita dos corpos em cena, as relações que lá se estabelecem passam ao palco e de lá rebatem novamente à sala. Tudo depende da moeda de troca vigente. Neste sentido, investir na qualificação pedagógica do discurso do júri, seja nas conversas, seja na concessão de notas e subseqüentes premiações – tudo isso é discurso – repercute na compreensão do discurso do festival por parte de seus potenciais participantes que preparam seus trabalhos ao longo do ano subseqüente, baseando-se em (novos) critérios. Isto é formação. Lenta, gradual, quase imperceptível vai o sentido da mudança.

Parece-me que para corroborar este movimento, Cristiane Wosniak, Roberto Pereira, Sandra Meyer e Sigrid Nora, organizadores dos Seminários de Dança, escolheram reunir em Joinville, participantes e palestrantes sob o providencial e provocativo eixo temático da técnica. Parte dos conteúdos de minha palestra lá proferida foi aqui apresentada já como tentativa de demonstração do potencial que têm os Seminários de funcionarem como hélice de propulsão centrífuga e centrípeta de (in)formação. Qual uma picape, nos Seminários os novos discursos produzidos pelo festival são sampleados com as falas-expertise compondo música nem sempre consonante com o seu entorno. Para surpresa de todos, em Joinville, lotação esgotada não é privilégio das noites de gala ou de competição. 160 inscritos participaram ativa e diariamente dos vários formatos de atividades pensados para os Seminários, com inesperada disposição de colocar em discussão, e assim necessariamente em dúvida, a técnica. Se os Seminários são uma das atividades formativas do festival, isto significa que também o festival está pondo em discussão, e assim necessariamente em dúvida: “o que quer e o que pode (ess)a técnica?”.

De minha parte, empenhei-me em desenvolver a paráfrase da assertiva de Rudolf von Laban  “improvisar é esquecer” presente no título de minha palestra – dançar é esquecer. Cheguei a Joinville munida de uma pauta de quinze provocações já desenvolvidas como texto que procurava inquirir a técnica com a pergunta: – Se dançar é esquecer e o corpo não esquece jamais onde, então, a dança se produz? Este discurso investia meu olhar-estrangeiro em suas primeiras incursões naquele ambiente. Eu de fato não sabia o que iria encontrar. Marinheiro de primeira viagem no festival, cada dia acabou significando exaustiva investida de me refazer a partir das experiências vividas. Como cheguei a Joinville para dupla função e os Seminários só começavam uma semana depois do início do festival, foi impossível resistir ao convite que a convivência me fazia: deixar o texto de minha palestra contaminar-se com a experiência (trans)formadora daqueles dias. Foi inevitável. A mudança recaiu menos no “o que dizer” – isto era inegociável. Antes, a ênfase recaiu no “como-dizer”: como constituir uma ponte de diálogo entre o que eu tinha a dizer e o que aquele ambiente me dizia? Resolvi ser fiel ao tema de minha palestra e, depois de várias noites pós-competição mudando o texto, decidi improvisar, esquecendo sobretudo a soberba do lugar de quem fala para falar do lugar de quem ouve. Na verdade, estendi ao momento da palestra a atitude que já vinha norteando minha passagem pelo festival uma vez que me deixava interessar pela discrepância entre o quadro que via e aquele que meus preconceitos esperavam encontrar. Deixei-me interessar pelas frestas, pelas delicadezas dos sinais, pequenas ranhuras da paisagem por onde o Conselho Artístico do festival vem há alguns anos abrindo espaço para mudanças da única maneira que ela hoje parece fazer sentido: sem tomadas de bastilha, sem cabeças rolando, sem inquisição, sem colonização.

Tarefa de todo e qualquer promotor de cultura, seja ele diretor de festival, curador, crítico, palestrante, organizador de seminário, político etc, é pensar séria e consequentemente que suas ações cortam um determinado fluxo interferindo no curso de acontecimentos que vêm vindo. Se há uma circunstância em curso, há valores culturais em seu jogo sempre paradoxal entre perpetuação e mudança, entre algo que tenta permanecer e algo que tenta se instaurar. No caso de Joinville, há muito em jogo. Investir no “como fazer” e não exatamente no “o que fazer”, me parece, também tem sido opção do festival propondo iniciativas que interferem sem intervir, incluindo as vozes que lhe constituem neste processo. Não estaria o festival, ele também a improvisar?

Algumas teses bem fundamentadas da história do teatro contam que a arena grega punha em cena uma luta – nos entremeios da trajetória do herói se decidia simbolicamente os destinos da cidade. Outras tantas teses gostam de afirmar que a cena carrega desde sempre, portanto até hoje, esta potência – valores de uma cultura-que-vai rivalizam com aqueles de uma outra-que-vem. Em Joinville uma circunstância de dança tem lugar: em sua arena o passado e o presente de uma história da educação em dança estão em franca batalha, em (trans)formação. Vá e veja.