Verchinina, a moderna | Verchinina, the modern one

Este trecho saiu da dissertaçào de mestrado “Nina Verchinina e a danca moderna brasileira”, defendida pela pesauisadora Beatriz Cerbino no dia 12 de marco de 2003 no Departamento de Comunicaçàao e Semiotica da PUC SP.

Reconhecida como uma das principais figuras no desenvolvimento da dança moderna no Brasil, Nina Verchinina (1910-1995) foi uma referência para bailarinos e criadores nas décadas de 1960 e 1970. As propostas que apresentou para a construção de um corpo – formas, seqüências e possibilidades de deslocamento no espaço – marcaram fortemente a dança aqui produzida.

A singularidade de sua trajetória, desde sua infância nas plantações de chá da China, passando pela adolescência e vida adulta em países da Europa, das Américas e da Oceania, até sua chegada à cidade do Rio de Janeiro, em 1954, assim como as diferentes fases que aqui viveu e vivenciou, são reconhecíveis na técnica de dança que desenvolveu. O corpo por ela construído abriga informações advindas dos múltiplos ambientes que proporcionaram a diversidade de instruções a que teve acesso.

A partir de um corpo com formação eminentemente clássica – Verchinina estudou balé com Olga Preobrajenska (1871-1962) e Bronislava Nijinska (1891-1972) -, criou e instaurou novos códigos corporais, elaborando e refinando seu próprio vocabulário ao longo de décadas de experimentação e pesquisa. A técnica da dança moderna que elaborou atendeu suas necessidades de bailarina e criadora que não encontrava nas técnicas existentes da época formulações que se adequassem aos movimentos e formas que buscava imprimir no espaço.

Como, então, um corpo treinado na técnica clássica, como foi o de Verchinina, tornou-se capaz de idealizar e organizar uma técnica de dança moderna? Tal questão ganha relevância quando se compreende que suas idéias não estavam desconectadas temporal e espacialmente de seu ambiente, fazendo parte de um contexto mais amplo de criação, envolvendo a arte de um modo geral, a dança, e também as transformações sociais, políticas e intelectuais em curso. Assim como mudanças aconteciam no cotidiano das pessoas, afetando não só suas vidas diárias, mas também o modo como se relacionavam com o mundo, o corpo apresentado em cena também se modificava. A partir da primeira década do século XX, com as contribuições de Isadora Duncan (1877-1927), Loïe Fuller (1862-1928), Rudolf Laban (1879-1954), e Mary Wigman (1886-1973), entre outros, novas formas foram colocadas em prática na dança.

Uma companhia também teve papel fundamental na transformação do cenário da dança: os Balés Russos de Diaghilev, que abrigou criadores como Michel Fokine (1880-1942), Vaslav Nijinsky (1889-1950), Bronislava Nijinska (1891-1972), e George Balanchine (1903-1983). Dirigida por Serge Diaghilev (1872-1929), durante seus vinte anos de existência, de 1909 a 1929, a companhia estabeleceu ligações com o que havia de mais moderno em termos de música e artes plásticas, levando a idéia de modernidade não apenas para as obras produzidas, mas também para os corpos dos bailarinos. Coreografias, cenários, figurinos e partituras musicais apresentados transformaram a idéia de balé até então existente.

Apesar destas mudanças, o vocabulário do balé não deixou de ser o idioma comum da companhia, já que os bailarinos o praticavam diariamente em suas aulas. É preciso, porém, ter clareza do uso que os coreógrafos de Diaghilev fizeram da técnica de balé, percebendo como, em cena, uma outra organização foi apresentada. O vocabulário transformou-se, agregando àqueles corpos outras possibilidades de sintaxe. Ao descolar-se da técnica de balé, a estética apresentada pelos Balés Russos transformou não apenas a idéia de espetáculo, mas também abriu caminho para que uma outra percepção de corpo fosse levada ao público.

Assim, o corpo treinado na técnica de balé também sofreu alterações, apontando a possibilidade de outras construções corporais. Obras como Petrushka (1911), de Fokine; Sagração da Primavera (1913), de Nijinsky; Les Noces (1923), de Nijinska, e Apollo (1928), de Balanchine, instauraram inovações cênicas que ganharam permanência ao longo dos anos. A elaboração da técnica de Verchinina, e a conseqüente construção de um corpo que vai ser nomeado de moderno, pode ser entendida a partir deste contexto. Um contexto que apresentará não apenas a elaboração de um novo repertório visual, mas também a transformação do modo de pensar a dança.

Se o grupo de Diaghilev inovou, os Balés Russos de Monte Carlo(1), companhia fundada pelo Coronel Wassily de Basil (1888-1951) e por René Blum (1878-1942), em 1932, em que Verchinina tornou-se primeira bailarina e alcançou fama e reconhecimento internacionais, buscou preservar esta herança. Apesar de muito mais comedidas, as investidas do grupo de Monte Carlo em projetos mais arrojados existiram, como os três balés sinfônicos (2) que Léonid Massine (1895-1979) montou na companhia, durante a década de 1930.

Os Presságios, de 1933, foi o primeiro dos balés sinfônicos de Massine, e também o primeiro em que Nina Verchinina dançou um dos papéis principais, sendo considerado o ponto de virada de sua carreira. A participação de Verchinina foi fundamental no processo de criação da obra, já que foi em seu corpo, e com sua ajuda, que o coreógrafo realizou e refinou suas pesquisas por uma movimentação distinta da que vinha apresentando até então, aproximando-se do vocabulário moderno. Por sua forte presença cênica nos balés de Massine recebeu o titulo de “Primeira Bailarina Sinfônica”, tornando-se mundialmente reconhecida por sua técnica única e forca interpretativa.

De Michel Fokine a Léonid Massine, passando por Vaslav Nijinsky, Bronislava Nijinska e George Balanchine, as obras coreográficas apresentadas por estes criadores evidenciaram combinações de elementos que, de um modo ou de outro, transformaram o balé. A contaminação com diferentes meios e estudos sobre o movimento permitiu que distintas informações fossem impregnadas, resultando em novos arranjos de formas e fórmulas disponibilizados nas criações que surgiam.

Em 1935, após já ter dançado nos dois primeiros balés sinfônicos de Massine, Os Presságios e Choreartium(3), ambos de 1933, Nina Verchinina passou um ano pesquisando e trabalhando em Nova York, onde entrou em contato com a técnica de dança de Martha Graham (1894-1991) e fez aulas com um discípulo de Laban. Assim, com as informações que recebeu, passou a experimentar outras maneiras de organizar o movimento no corpo e no espaço.

Qual seria então o estado do corpo verchiniano? Que qualidades são ali reconhecíveis? Estas são questões chaves para se entender as idéias que Nina Verchinina materializou em suas criações.

Apesar de sua formação clássica e de usar elementos do balé em suas aulas, como as posições básicas dos pés os grands battements, os ronds-de-jambes e até mesmo os pas de bourrés, Verchinina tinha clareza da necessidade de um outro tipo de corpo para um outro entendimento do movimento, para que as pessoas pudessem dançar o que ela elaborava coreograficamente. Assim, desenvolveu sua técnica, elaborando e organizando suas pesquisas em busca de uma formulação que permitisse entender o corpo não decomposto em partes, como ela identificava o corpo construído pelo balé, mas apresentando-se como um todo capaz de se mover em bloco pelo espaço. Ou seja, o corpo não entraria e se deslocaria no espaço de maneira sucessiva, com uma parte após a outra em movimentos quebrados, mas sim simultaneamente, criando momentos de total conjunção entre cabeça, tronco e membros.

Portanto, mesmo utilizando certos movimentos e determinadas posições do balé além de lançar mão de sua nomenclatura, Verchinina elaborou um novo vocabulário, independente daquele da dança clássica, criando semântica e sintaxe próprias. O conjunto de aulas por ela elaborado – chão, centro, barra e joelho, além das seqüências de caídas – continha as informações necessárias para que o corpo ali formado fosse capaz de dançar suas coreografias.

Nina Verchinina expôs uma concepção de dança que foi capaz de solucionar as questões coreográficas e conceituais que surgiam, apresentando uma integração de movimentos e significados que, segundo o entendimento da própria coreógrafa, não estavam desassociados. Ao situar sua técnica na esfera do que nomeou como “dança moderna expressionista”, Verchinina conectou-a não só à sua percepção espacial, mas principalmente àquilo que entendia como a expressão do corpo em movimento. Sua técnica, de acordo com seu entendimento, possibilitava ao bailarino atuar como um conjunto integrado de músculos e sentimentos, usando em cena toda sua capacidade motora para assim explicitar as idéias ali apresentadas.

É importante perceber que o mesmo tipo de construção que buscou, o do corpo atuando como um grande todo, foi utilizado como um elemento organizador em suas coreografias, isto é, ela trabalhou suas formações de bailarinos como se estivesse esculpindo formas no espaço, armando composições não de pessoas, mas de movimentos para assim criar seus quadros.

Construir um corpo que fosse capaz de lidar com as questões que elaborou foi o grande desafio enfrentado por Nina Verchinina. A prática corporal que instaurou colocou em evidência aspectos como força, controle e sustentação, expondo, ao mesmo tempo, qualidades de um corpo que buscava se expandir e ganhar volume no espaço.

O movimento, para Verchinina, não era executado em fluxo livre, sem nenhum tipo de apoio espacial, mas de maneira sempre controlada. O corpo verchiniano não está solto no ar, ao contrário, atua em um espaço de alta densidade que molda sua tonicidade muscular, gerando movimentos acentuadamente marcados e contidos que, ao mesmo tempo, se opõem em ações contínuas e opostas de contração e expansão.

Estas são algumas das características do corpo elaborado por Verchinina. Um corpo que tem no desenvolvimento do tônus muscular, a fim de adquirir a força necessária para realizar as seqüências e os movimentos desejados, um de seus principais aspectos.

Assim, a partir de uma formação em dança essencialmente clássica, Verchinina alcançou um outro patamar em sua trajetória: além da mestra que ensinava, como aquelas com quem estudou, tornou-se também uma mestra que inventou, elaborando um corpo para dançar com características e formas independentes daquelas apresentadas pelo balé.

Nina Verchinina foi capaz, antes de tudo, de imprimir em suas coreografias e nos corpos de seus bailarinos uma assinatura; criando, dessa maneira, uma fonte de permanência para seu pensamento, para suas idéias acerca de sua dança. Idéias que ganham concretude em movimentos e gestos, criando e reinventando paisagens que se materializam no tempo, no espaço e no corpo.

(1) Em 1934, o Cel. de Basil agregou seu nome ao da companhia, apresentando-a como Balés Russos do Col. W. de Basil, causando desentendimentos que culminaram com a partida de René Blum. O grupo dirigido por De Basil passou então a exibir o nome Monte Carlo Balé Russo, mas perdeu na justiça o direito de usá-lo. Em 1938, De Basil foi afastado da direção da companhia e o grupo, com o nome de Convent Garden Balé Russo, passou a ser dirigido por Victor Dandré, W.G. Perkins e G. Sebastianov. No ano seguinte, em agosto de 1939, De Basil retomou a direção da companhia que, a partir da excursão à Austrália, passou a se chamar Original Balé Russo, nome que permaneceu até sua última apresentação na Espanha, em 1948. Blum, em 1936, fundou seu próprio grupo o Balé Russo de Monte Carlo.

(2) Este termo começou a ser empregado a partir de 1933, com o primeiro dos balés sinfônicos de Massine, que recebeu esta denominação por utilizar sinfonias como trilha sonora, e também por manter a divisão musical (primeiro movimento, segundo movimento, etc.) como separação dos atos dos balés. Porém, antes dele outros coreógrafos já haviam utilizado partes de sinfonias em seus trabalhos, como Isadora Duncan, a Sétima Sinfonia de Beethoven, em 1908; Alexander Gorski (1871-1924), a Quinta Sinfonia de Glazunov, em 1915; e Fiodor Lopokov (1886-1973), Quarta Sinfonia de Beethoven, em 1923. Ao longo de vinte e um anos, de 1933 até 1954, Massine criou dez balés sinfônicos: Os Presságios, música de P.I. Tchaikovsky, 1933; Choreartium, Johannes Brahms, 1933; Sinfonia Fantástica, Hector Belioz, 1936 (estes três primeiros para os Balés Russos de Monte Carlo); Sétima Sinfonia, Ludwig Van Beethoven, 1938; Vermelho e Preto, Dmitri Shostakovich, 1939; Labirinto, Franz Schubert, 1941; Antar, Nikolai Rimsky-Korsakov, 1945; Sinfonia Leningrado, Dmitri Shostakovich, 1945; Sinfonia do Relógio, Franz J. Haydn, 1948; Haroldo na Itália, Hector Berlioz, 1954.

(3) Ao voltar para a Europa e para a companhia, em 1936, Verchinina dançou em Sinfonia Fantástica, terceiro e último balé sinfônico de Massine para a companhia do Cel. De Basil

Bibliografia básica

BAER, Nancy Van Norman (1986). Bronislava Nijinska: a dancer’s legacy. São Francisco: The Fine Arts Museuns of San Francisco.

CERBINO, Beatriz (2001). Nina Verchinina: um pensamento em movimento. Rio de Janeiro: Funart: Fundação Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

COPELAND, Roger e MARSHALL, Cohen (eds.) (1983). What is dance? Readings in theory and criticism. Oxford/Nova York: Oxford University Press.

GARAFOLA, Lynn (1998). Diaghlev’s Ballets Russes. Nova York: Da Capo Press.

GARCÿA-MÿRQUEZ, Vicente (1990). The Ballets Russes: Colonel de Basil’s Ballets Russes de Monte Carlo, 1932-1952. Nova York: Alfred A. Knopf.

_______ (1995). Massine: a biography. Nova York: Alfred A. Knopf.

KOEGLER, Horst (1991). The concise Oxford dictionary of ballet. Oxford: Oxford University Press.

LOUPPE, Laurence (2000). “Corpos híbridos”. In: PEREIRA, R e SOTER, S. (orgs.). Lições de Dança, 2, pp. 55-80. Rio de Janeiro: Editora UniverCidade.

SUCENA, Eduardo (1988). Dança teatral no Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura: Fundação Nacional de Artes Cênicas.

WALKER, Kathrine Sorley (1983). De Basil’s Ballets Russes. Nova York: Atheneum.The excerpt published in the portuguese version of idanca.net is from “Nina Verchinina e a danca moderna brasileira (Nina Verchinina and brazilian modern dance)”. This dissertation was presented at the Comunications and Semiotics Department, Post-Graduate Program in PUC/SP at March 12 ,2003.

The main goal of this project is to show the body elaborated by Nina Verchinina, discribing not her modern dance technique, but the the bodies formulations that made possible to her students and dancers to execute steps and dance sequencies. In this way, the goal is to sketch the qualities of the verchinian body and how it inscribes itself in the time-space relationship. A view that takes in account not the choreographic aspects of her work, but the conditions that allowed Verchinina to elaborate her thoughts in the way that was shown. In order to better analyse and understand this process, five choreographies were selected (four of Diaghilev’s Ballets Russes and one of Original Ballet Russe), works that represent a panel of the transformations that occurred along the years that they were presented. To understand these modifications is also to realize how a dancer with classical background, as Nina Verchinina was, created a modern vocabulary of perform through space.