Vida desnuda #3 | Naked Life #3

São Paulo, 8 de setembro de 2005. Estávamos todos, uns 50 e poucos, espalhados pela sala, esperando por Coco Fusco [1] (1960), que estava atrasada, quando o ruído forte de um apito nos assustou e chamou atenção: era a própria, vestida de comandante militar, que tinha acabado de adentrar! Estava dado, pois, o início do trabalho concentrado em torno da realização da performance “Bare Life Study #1” (Estudo da Vida Despida número1), proposta e coordenada pela artista e escritora nova-iorquina, com a produção do 15° Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil [2].

Durante as horas seguintes, Coco Fusco nos contou sobre suas motivações, questões e problemas envolvidos na intervenção urbano-artística, marcada para o dia seguinte. A performance – considerada uma espécie de protesto/alerta contra as torturas, abusos físicos e modos de degradação que sofrem os prisioneiros de guerra em cadeias militares americanas -, reproduziria em um ato coletivo, espetacular e público uma das inaceitáveis práticas de humilhação/submissão que se tem notícia, através de raros relatos. Executadas diante de câmeras ou não, essas “performances” dentro da prisão representam a subserviência do preso, constituindo-se como versões contemporâneas das cenas de repressão, como explica Fusco, em depoimento [3] recente.

O que poderia ser usado para, como ela diz, “provocar reflexões não somente sobre as implicações desse ‘estado de exceção’ (um desequilíbrio entre direito público e fato político, com diz Giorgio Agamben) como parte da vida política contemporânea”, serviu para revelar algumas questões acerca das relações que envolvem performance, ativismo e formas de poder. Entre elas estão as contradições entre discurso e prática, a postura de colonizado encarnada nos profissionais da produção cultural brasileira e a necessidade de re-posicionamento ético e profissional diante dessas circunstâncias.

9 de setembro de 2005. Vestidos com macacões laranjas numerados (símbolo da detenção), sapatos pretos sem cadarço e nenhum tipo de adereço, os agora menos de 50 voluntários, em sua maioria estudantes e profissionais das artes cênicas, se puseram em filas disciplinadamente. Sob um calor escaldante, na frente do Consulado dos Estados Unidos e diante de dezenas de câmeras de vídeo e de fotografia, os performers interromperam o trânsito da rua e, comandados por apitos e gritos da “militar” Coco Fusco, ajoelharam-se no meio da rua e simularam limpar o chão com escovas de dentes, durante 20 minutos.

Em seguida, Fusco ordenou que os “prisioneiros” se levantassem e marchassem em filas, na direção onde se encontrava o transporte que os levaria de volta. Dentro do ônibus, a intervenção foi finalizada com a presença e as palavras de Fusco, além de palmas e gritos. Nesse momento, fazia muito calor mas o pedido de ligar o ar condicionado só seria atendido quando Coco Fusco terminasse a entrevista do lado de fora. O motivo do constrangimento era o barulho do equipamento, que atrapalhava a captura do áudio pelo microfone. Deslocado (ou não) dos princípios contidos na performance, esse detalhe deixa clara a conexão entre a intervenção, a mídia e o culto à presença da artista. Como ironizou uma das participantes, “apesar de ser um protesto a favor dos direitos humanos, o que importa mesmo é o microfone da câmera”.

Aparentemente isolado, esse fato adquire outro significado no conjunto dos acontecimentos. Quando o ônibus retornou ao local que sediou a programação do festival, a responsável pela produção pediu a palavra e avisou que os voluntários/performers ganhariam como “souvenir” o macacão, justamente uma metáfora para submissão e falta de liberdade. (“nos deram espelhos…”) Tão preocupante quanto a infeliz expressão utilizada pela produtora foi a reação da maioria dos participantes: exaltados, pareciam receber um presente! O entusiasmo foi rapidamente contido para um novo anúncio: a artista norte-americana estaria disponível para “assinar” os regalos. Prontamente uma fila foi organizada e deu-se início a sessão de autógrafos.

Para a pergunta “onde termina o ativismo e começa o fetichismo?”, Coco Fusco não tem resposta que valha, no entanto, caberia imaginar quando o sonho brasileiro de ser “backing vocal de arethas franklins” vai, enfim, desaparecer.

Notas:

[1] http://www.thing.net/%7Ecocofusco/index.html
[2] http://www.sescsp.org.br/sesc/videobrasil/15festival/galeria/galeria09.asp
[3] http://www.sescsp.org.br/sesc/videobrasil/15festival/galeria/galeria09.aspSão Paulo, September 8th 2005. All of us were there, 50 and a few, spread in the room, waiting for Coco Fusco (1960), who was late, when the strong noise of a whistle scared us and called for attention: that was the artist herself, dressed as military commander, who had just entered! It was therefore the beginning of the workshop concentrated around the making of “Bare Life Study # 1”, proposed and coordinated by this New York artist and writer, produced at 15º International festival of Electronic Art Videobrasil.

During the following hours, Coco Fusco told us about her motivations, questions and problems involved in the urban-artistic intervention scheduled for the next day. The performance – considered a kind of protest/alert against the physical tortures, abuses and ways of degradation that war prisoners suffer in American military cells -, would reproduce in a collective, spectacular and public act one of the unacceptable humiliation/submission pratices we know about, through rare confessions. Executed in front of cameras or not, these “performances” inside prisons represent the prisoner’s subservience, consisting as contemporary versions of repression scenes, as Fusco explains, in a recent commentary.

What could be used for, as she says, “not only provoke reflections on the implications of this state of exception (an unbalance between public law and politician fact, as says Giorgio Agamben) as part of contemporary political life”, served to disclose some questions concerning relations between performance, activism and power models. Among them, contradictions between speech and practice, colonized positions embodied in professionals at Brazilian cultural production scene and the necessity of ethical and professional re-positioning facing these circumstances.

September 9th 2005. Dressed with numbered orange overalls (a symbol of detention), shoes without ribbon and no accessories, the now less than 50 volunteers – mostly students and performing arts professionals, put themselves in lines with discipline. Under a terrible heat, in front of United States of America’s Consulate and followed by dozens of photographers and video cameras, performers interrupted the traffic and, commanded by whistles and shouts of “military man” Coco Fusco, then knee down in the street and clean the ground with tooth brushes, during 20 minutes.

After that, Fusco commanded the “prisoners” to raise and marche in lines, towards where was the transport that would take them back. Inside the bus, the intervention was finished with the presence and words of Fusco, followed by ovation and shouts. At this moment, it was very hot inside, but the order turn on the air conditioning would only be taken care of after Coco Fusco finished the talk outside. The reason given was the equipment’s noise, that would confuse the audio capture. Dislocated (or not) of the principles contained in the performance, this detail makes clear the connection between intervention, media and the artist’s presence cult. As one of the participants said in irony, “although it is a protest in favor of human rights, what matters most is the camera microphone”.

Apparently isolated, this fact acquires another meaning in the set of events. When the bus returned to the place that hosted the programming of festival, the responsible for the production informed that volunteers/performers would win the overalls as souvenir, precisely a metaphor for submission and lack of freedom (“they gave us mirrors…”) As preoccupying as the unhappy choice of words by the producer was the reaction of the majority of participants: exalted, looked like they received a gift! The enthusiasm was quickly contained by a new announcement: the North American artist would be available “to sign” the gifts. Instantly a line was organized and the autographs session began.

To the question “where does activism finish and fetishism starts?”, Coco Fusco does not have a valid reply. However, it makes sense to imagine when will the Brazilian dream of becaming “backing vocal for arethas franklins”, at last, disappear.

Notes:

[1] http://www.thing.net/%7Ecocofusco/index.html
[2] http://www.sescsp.org.br/sesc/videobrasil/15festival/galeria/galeria09.asp
[3] http://www.sescsp.org.br/sesc/videobrasil/15festival/galeria/galeria09.asp