Zdenek Hampl em constante movimento | Zdenek Hampl in constant movement

Esta resenha foi publicada na edição 93 da revista Continente, de Pernambuco. O texto integra a série de resenhas que o idança começou a publicar no final de 2008 aproveitando a boa fase editorial na área de dança. A primeira resenha foi feita pela bailarina e pesquisadora Nirvana Marinho sobre o livro Dança Cênica – pesquisas em dança volume 1′, organizado por Jussara Xavier, Sandra Meyer e Vera Torres. Quer ler? Clique aqui.

Quem transita no universo da dança, já deve ter ouvido falar em Zdenek Hampl, bailarino e coreógrafo que na década de 70 trocou a Tchecoslováquia, seu país natal, pelo Brasil e, de 1982 até sua morte em março do ano passado fixou residência no Recife, para o bem dos artistas locais, que muito aprenderam com ele. Dono de um humor irônico e mestre na arte de surpreender, Zdenek se apresenta agora em palavras, pois deixou algumas das suas reflexões e inquietações sobre a dança registradas em um manuscrito, que se transformou no livro Constante Movimento lançado recentemente pela editora Associação Reviva.

Segundo informações do pesquisador e crítico Roberto Pereira, em 2007, a lista de publicações de dança de autores brasileiros já acumulava mais de 170 títulos. Uma particularidade desse segmento crescente é a diversidade de estilos: biografias e autobiografias, registros de pesquisa artística ou acadêmica, história, material didático sobre determinada técnica; entre outros, aumentam a cada ano a bibliografia brasileira de dança. Mas Zdenek avisa logo nas primeiras páginas, que o seu livro não se encaixa em nenhuma dessas categorias, até mesmo porque ele próprio diz que “não tem estilo até hoje e está bom assim”, em uma clara tentativa de preservar a liberdade de expressão. Se por um lado as gavetas determinadas pelo mercado literário não lhe servem, por outro temos a certeza de que se trata de um livro de dança. Em uma escrita informal, Zdenek constrói vários caminhos e, mesmo os aparentemente alheios, falam sobre dança e transpiram a paixão avassaladora que ele sentia por esta arte e seus tantos ofícios. Contado em primeira pessoa, o Constante Movimento nos apresenta várias faces de Zdenek e também muitos lados da dança no desenrolar do que poderíamos chamar de uma bem-humorada e produtiva conversa com um amigo. Até mesmo porque ficamos muito propensos a acreditar, como ele, que não há nenhuma outra atividade que proporcione as condições e um clima tão favorável para surgirem amizades, como a dança consegue”.

Sem preocupar-se com a cronologia, o bailarino-escritor vai deixando aparecer trechos significativos da história da dança, como o episódio em que ele, liderando um grupo de amigos, monta o ousado espetáculo Festa da Pedra (1989), encenado no ateliê do artista plástico Francisco Brennand, feito inédito, que inaugurou um outro jeito de se pensar e fazer dança contemporânea no Recife, abrindo novas possibilidades de criação e de diálogo entre as artes também. Zdenek foi um pioneiro, que acreditava, acima de tudo, no poder transformador da dança, na força comunicativa do gesto. Para ele, o movimento sempre é muito mais poderoso e eficaz do que a palavra, e é essa afirmação que conduz todas as narrativas do seu livro. Apesar de não ter a pretensão de falar sobre história, as memórias do autor funcionam como janelas que se abrem e, assim, podemos ver como era, por exemplo, o panorama da dança e da realidade do Brasil na década de 70, através do olhar de um ‘gringo’ assumido que, encantado com as belezas naturais (e especificamente as belezas humanas femininas) da praia de Copacabana, decidiu não voltar para o seu país após a turnê pela América do Sul da companhia Lanterna Mágica, onde atuava como primeiro solista. Se o “historiador lida com uma temporalidade escoada, com o não visto, o não vivido, que só se torna possível acessar através de registros e sinais do passado que chegam até ele” como definiu Pesavento, o livro de Zdenek Hampl segue exatamente a direção contrária, pois é feito essencialmente de falas do que foi vivido. E, nesse caso, parece que ele não conseguia nem queria separar o pessoal e o profissional. As experiências de dança e de vida se misturam em todas as linhas de Constante Movimento, e desse cruzamento brotam muitas lições. E ainda que o autor não considerasse sua obra material didático, ela tem muito a ensinar.

O tom crítico que pontua toda a conversa não esconde a preocupação pedagógica de um zeloso e dedicado professor Zdenek, como revelam alguns trechos: “Para a dança ser tão rica e eficiente como desejamos, não basta só aprender uma, ou mesmo as várias técnicas. Temos que aprender tudo que esteja ao nosso alcance, estudar ou ao menos observar tudo possível. Afirmo com toda certeza: mesmo o que não tem aparentemente nada em comum com a dança agora, algum dia vai ter”. Dito isto, e com tal veemência, fica difícil não acreditar. Alinhado ao pensamento contemporâneo, Zdenek traz reflexões pertinentes a quem trabalha com dança, e que podem também ajudar a desmistificar algumas questões e servir para aproximar as pessoas do universo da dança. “Para começar, ‘bonito’ é uma palavra de significado dúbio. Quantas vezes já ouvi, quando alguém faz uma asneira, destruindo algo: Bonito, né? Agora vai ter que limpar tudo! Tempos atrás fumar era bonito, e agora é nojento. Os valores são relativos, eles mudam. Então, o espetáculo foi bonito… Agradou o público? Legal para quem acha. Porém eu fiz o espetáculo para comunicar algo, o que não necessariamente vai agradar a todos. Celular comprado há um ano atrás já é ultrapassado, e assim acontece com todas as áreas imagináveis. Porque somente em se tratando de dança, o público quase que exige ver aquilo que se acostumou de ver?” – provoca Zdenek. Essa é só uma das muitas discussões instigantes que Constante Movimento nos oferece. Ao mesmo tempo que não pode ser classificado como autobiografia, manual didático ou narrativa histórica da dança, o livro de Zdenek consegue ser um pouco de tudo isso. Aqui cabe, então, a explicação de Roberto Pereira sobre a natureza desse tipo de escrita, felizmente frequente na bibliografia brasileira de dança: trata-se de uma “narrativa pouco instrumentalizada e banhada por uma imensidão vivida, apaixonada, construída no cotidiano do ofício de bailarino, coreógrafo e professor de dança”.

Por que ler Zdenek Hampl? Talvez para entender o que fez dele o coreógrafo que mudou o conceito de dança contemporânea em Pernambuco; ou para aprofundar os conhecimentos e reflexões sobre tais assuntos. Para quem estuda, trabalha ou simplesmente gosta de dança, Constante Movimento pode ser um bom ponto de partida. E o que é melhor é que o leitor já está previamente autorizado (pelo autor) a escolher qualquer dos caminhos oferecidos no variado cardápio de possibilidades dessa leitura. E para aqueles que ainda se sentem alienígenas no universo da dança, deixar-se levar pela emoção que conduziu obra e vida de Zdenek Hampl pode ser uma boa sugestão, senão para tornar-se bailarino profissional, pelo menos para experimentar a dança, de alguma maneira. Constante Movimento é um desabafo, uma carta que relata os desafios, as estratégias, as dificuldades e benefícios dessa arte, porém é antes de tudo, um convite aberto à dança, para todas as pessoas de todas as idades e sem contraindicações.

“Tudo que mexe com o corpo é positivo, sem exageros, é claro. Só quero apontar o fato de que a dança exige muito mais do que o simples suor. A compensação durante e depois também é infinitamente maior, superior. Nenhuma coreografia é igual à outra, nenhum espetáculo será igual ao outro e assim a gente vive aprendendo, sempre se reciclando. Nem se a gente se esforçasse para fazer os espetáculos rigorosamente iguais, a platéia seria sempre diferente. É aquela mágica relação palco-platéia que dá tanta emoção. (…)Eu pessoalmente não acredito que a pessoa pudesse passar pela vida sem nunca ter dançado. (…)Essa sensação de felicidade, de plenitude, aqueles que não experimentaram a dança não conhecem.” (ZDENEK HAMPL)

Christianne Galdino é jornalista.

This review was published in the 93rd edition of Continente magazine, from Pernambuco. The text is part of a series of reviews Idança started to published in the end of 2008, on the occasion of the good editorial phase in the dance area. The first review was written by dancer and researcher Nirvana Marinho about the book Dança Cênica – pesquisas em dança volume 1′, organized by Jussara Xavier, Sandra Meyer e Vera Torres. Want to read it? Click here.

Those who circulate in the dance universe, must have already heard about Zdenek Hampl, dancer and choreographer who, in the 70’s, left Czechoslovakia, his homeland, for Brazil. From 1982 until his death, last March, he lived in Recife, for the benefit of local artists, who learned a great deal from him. Possessing an ironic humor and master in the art of surprising, Zdenek now presents himself in words, for he left some of his reflections and unrests about dance registered in a manuscript, which became the book Constante Movimento, released by publisher Associação Reviva.

According to information provided by researcher and critic Roberto Pereira, in 2007 the list of publications about dance by Brazilian authors already counted over 170 titles. One specificity of this growing segment is the diversity of styles: biographies and autobiographies, artistic and academic research records, history, didactic material about a given technique; among others, each year add to the Brazilian dance bibliography. But Zdenek lets us know in the first pages that his book does not fit into any of these categories, because he states that he “doesn´t have a style until now and it´s good that way”, in a clear attempt to preserve his freedom of expression. If, on one hand, the categories established by the literary market do not accommodate him, on the other hand, we can be sure this is a book about dance. In an informal writing, Zdenek builds many paths and even the apparently disconnected ones deal with dance and exude the overwhelming passion he felt about this art and his many occupations. Written in first person, Constante Movimento shows us many aspects of Zdenek and also many aspects of dance in the development of something we could regard as a good-humored and productive chat with a friend. Exactly because we tend to believe, as he does, that “there is no other activity that offers such favorable conditions and atmosphere for friendships to emerge, as dance does”.

Without worrying about chronology, the dancer-writer reveals significant episodes of the history of dance, like the time when, leading a group of friends, he staged the daring show Festa da Pedra (1989), enacted at plastic artist Francisco Brennand’s atelier, an unprecedented feat, which inaugurated a different way to think about and make contemporary dance in Recife, opening new possibilities of creation and also dialogue among art forms. Zdenek was a pioneer who believed, above all, in the transforming power of dance, in the communicative force of gesture. For him, movement is always more powerful and effective than words and this statement conducts all the narratives of the book. Although he does not intend to talk about history, the author’s memories work as windows that open and we can thus see, for example, how was the dance panorama and the reality in Brazil in the 70’s, through the eyes of a “gringo” who, enchanted by the natural beauties (specifically the female human beauty) of the Copacabana beach, decided not to return to his homeland after the South American tour of the company in which he acted as soloist. If the “historian deals with a drained temporality, with what is not seen or lived, that is only accessible through signs of the past that reach him, as Pesavento defined, Zdenek Hampl’s book follows exactly the opposite direction, since it is essentially made of words of what was experienced. And, in this case, it seems he could not and did not want to separate the professional from the personal. The dance and the life experiences mingle in every line of Constante Movimento, and from this mixture many lessons emerge. And even if the author didn´t consider his book to be didactic, he does has a lot to teach.

The critical tone that punctuates the whole conversation does not hide the pedagogical worry of zealous and dedicated teacher Zdenek, as is revealed is some parts: “For dance to be as rich and efficient as we wish, it´s not enough to learn only one, or even many techniques. We must learn everything within our reach, study or at least observe everything possible. I assert with confidence: even what apparently doesn´t have anything in common with dance now, one day will”. Having said that, and with such vehemence , it is hard not to believe. Aligned with contemporary thought, Zdenek brings pertinent reflections for those who work with dance and that also helps to demystify some issues and brings people closer to the universe of dance. “To begin with, ‘beautiful’ is a word with dubious meaning. How many times have I heard, when someone does something stupid, destroying something: Beautiful, eh? Now you have to clean everything! Some time ago, smoking was beautiful, now it´s disgusting. Values are relative, they change. So, the show was beautiful… It pleased the audience? Good for those who think so. However, I made the show to communicate something that will not necessarily please everyone. A cell phone bought a year ago is already outdated and that´s what happens in every imaginable area. Why is it that only in dance the audience almost demands to see what it´s used to seeing?” – Zdenek provokes. This is only one of many instigating discussions Constante Movimento offers. At the same time it cannot be considered an autobiography, didactic manual or historical dance narrative, Zdenek’s book manages to be a little of each. Therefore, it is appropriate to cite here Roberto Pereira’s explanation about the nature of this kind of writing, fortunately frequent in the Brazilian bibliography about dance: it is a “little instrumentalized narrative, bathed by a lived, passionate immensity, built upon the every day work of the dancer, choreographer and dance teacher”.

Why read Zdenek Hampl? Maybe to understand what made him the choreographer that changed the concept of contemporary dance in Pernambuco; or to deepen the knowledge and reflections about such subjects. For those who study, work or simply appreciate dance, Constante Movimento can be a good starting point. And the better part is that the reader is previously authorized (by the author) to choose any of the paths offered in the varied menu of possibilities in this reading. And for those who feel alien to the dance universe, to be carried away by the emotion that conducted that work and life of Zdenek Hampl may be a good suggestion, if not to become a professional dancer, at least to experiment dance, in some way. Constante Movimento is an opening of the heart, a letter that describes the challenges, the strategies, the difficulties and benefits of this art, but it is, above all, an open invitation to dance, for all the people of all ages and with no side effects.

“Everything that deals with the body is positive, with so excesses, of course. I just want to point out the fact that dance demands a lot more than just sweat. The compensation during and after is also infinitely larger, superior. No choreography is like the other, no show will be the same as the next one and thus we keep learning, always recycling ourselves. Not even if made an effort to make the shows exactly the same, the audience would always be different. It’s the magical relationship stage-audience that brings so much emotion. (…) I personally don´t believe the person could go through life without having ever danced. (…) This feeling of happiness, of plenitude, those who haven´t experienced dance don´t know it.” (ZDENEK HAMPL)

Christianne Galdino is a journalist