Para que serve um festival de dança?

No dicionário Aurélio, festa é reunião alegre para fim de divertimento. Festival é uma grande festa. Também reunião artística para fins de competição.

Diversão e competição parecem atributos pequenos para a dimensão artística da dança. Entendendo o papel da arte em redimensionar a condição humana e, desse modo, capaz de “colocar o conhecido em risco”, proponho a revisão do significado da festa em nossas vidas e ir ao encontro do seu sentido mais ancestral e mítico, lugar onde a festa se dá como espaço de troca e re-significacão do cotidiano e do sentido da existência. Lugar onde a dança, em sua gênese, é parte constitutiva.

Pensar um festival de dança nesses termos significa pensar a troca entre sujeitos/agentes desse contexto como objeto norteador do seu sentido de existir. Até porque é a necessidade de comunicação a razão de ser da dança. Em um festival de dança, essa troca pode se dar em diferentes instâncias, a começar pela própria formulação do festival, isto é, pela sua concepção. Se um festival se diz fomentador da dança, como é o caso do Festival Nacional Dança em Cena, que acontece em Alagoas desde 2002, seu ponto de partida deveria ser o saber daqueles que fazem dança. Nesse sentido, tivemos um avanço na edição 2004, quando foi designado um curador para o Festival. Acredito, porém, que algumas considerações devem ser feitas acerca do seu papel para um melhor entendimento da importância de sua função e do respeito à sua autonomia.

É preciso pensar o papel do curador de um festival como daquele que, ao diagnosticar uma realidade, procura organizar ações em busca de uma coerência – com o quê, esta realidade diagnosticada solicita para alcançar determinado objetivo, o qual deve ser delineado de modo imparcial na direção que o diagnóstico aponta. Aqui se dá uma das primeiras instâncias de troca de um festival: O curador dialogando com a realidade local, estabelecendo caminhos que apontem para a solução de problemas de uma coletividade, sem estar preso a estéticas de linhagens (Bravi, 2002), isto é, sem vincular as escolhas a seu gosto e interesse pessoal.

Quando me refiro a escolhas, não estou me limitando apenas à seleção dos grupos de dança que se apresentam no festival, mas de todas as ações elencadas para integrar o evento. É preciso que as atividades que o constituam estejam interligadas e se retroalimentem no sentido de atingir os objetivos gerais estabelecidos pela curadoria. O papel de um curador na organização de um festival de dança é fundamental e, para que ele se cumpra, é necessário que sua autonomia seja compreendida e respeitada.

Fomentar a criação, facilitar a circulação de idéias e os debates de pensamento, promover o intercâmbio e, principalmente, garantir a diversidade de linguagens de movimentos, sem qualquer tipo de preconceito, são objetivos de um festival de dança.

Os objetivos da arte, infelizmente, não são os das instituições; daí, mais uma vez, ser preciso chamar a atenção para a necessidade do diálogo, pois, se as posições defendidas pelo curador estão referendadas pelos interesses de uma comunidade, sua força em ganhar espaço junto a essas instituições se torna muito maior – haja vista que o discurso institucional é sempre o de servir ao desenvolvimento da dança e aqui tomamos como exemplo, mais especificamente, a realidade alagoana.

Muito tem-se argumentado sobre a necessidade de contar com o patrocínio da iniciativa privada, uma vez que o governo do estado destina uma verba muito pequena à Secretaria de Cultura. Sendo assim, é necessário atender aos interesses desses patrocinadores. Uma dessas exigências seria ter, no Festival, grupos de renome do Sudeste do país, aos quais seria necessário dispensar uma quantia relevante da verba, sobretudo, para o pagamento dos cachês.

Não vemos nenhum problema na vinda dessas companhias. A questão está na dimensão que se dá a isso. Primeiramente, se elas não cabem no recorte estabelecido pela curadoria, não se pode perder de vista o motivo comercial pelo qual estão vindo. É preciso delimitar o tamanho desse compromisso dentro do festival, para que sejam resguardados os espaços para os objetivos maiores. Depois, é necessário otimizar a presença dessas companhias, ampliando os espaços de troca entre esses grupos e os artistas locais.

Outra questão é a quantidade de público a ser atingida. Ora, será que a preocupação com a quantidade tem de, necessariamente, passar pela perda da qualidade? Será preciso passar por cima dos objetivos maiores do festival para satisfazer as exigências dos patrocinadores? Então, qual o sentido de existir desse festival? O último Festival Nacional Dança em Cena foi o retrato do descuido com a qualidade em favor da quantidade. Sobretudo da qualidade das relações entre instituições e artistas. Como é possível haver troca, haver confraternização, haver reunião de interesses, preceitos primeiros de um festival de arte, quando falta consideração pelos artistas locais, anfitriões do festival e para onde se diz estão voltados seus interesses?

Se a questão é a baixa verba destinada à cultura, poder-se-iam reunir os artistas em torno da reivindicação do aumento.Talvez, para isso, fosse preciso estabelecer outro tipo de relação com os artistas, definir uma política cultural cuja premissa básica seria de estabelecer diferentes tipos de comunicação, buscando mecanismos capazes de preservar a unidade no respeito à diversidade dentro do próprio domínio cultural (Santaella apud Xavier, 2001).

Precisamos refletir sobre as características próprias da nossa realidade sem estarmos presos a modelos de festivais existentes em outros estados. Aproveitarmos os diferentes talentos aqui existentes, posto que não se reconhecem. Pensar na importância da reverberação das ações desenvolvidas no festival, a longo prazo.

O Festival Dança em Cena tem se prendido à priorização do aspecto espetacular, destituído de toda a rede de conhecimento, embutida em um sistema de produção de cultura. Tal sistema é formado por diferentes fases da ação cultural que envolve produção, distribuição, mecanismos de troca e de usufruto das obras, na plenitude do entendimento de seus aspectos formais, de conteúdo, sociais e outros, e só funciona de maneira efetiva quando cada uma dessas fases estabelece comunicação (Xavier, ibid.).
É preciso entender a estrutura dos relacionamentos presentes no mundo da dança no estado de Alagoas. Daí a necessidade de se investir em pesquisa. Estamos desperdiçando o fato de sermos uma comunidade de dança relativamente pequena e facilmente reconhecível como fator positivo ao nosso fortalecimento.

Só quando a dança for vista como conhecimento, poderá ocupar o papel que lhe cabe na comunidade alagoana e não podemos, infelizmente, esperar que esse reconhecimento parta do poder público. Somos nós, artistas, que devemos expressar nossas opiniões e, de forma organizada e conjunta, abrir nossos espaços de comunicação com as instituições. Nesse caso, alegra-nos a crescente adesão daqueles que fazem a dança em Alagoas ao recém-criado Fórum Permanente de Dança. Já em sua reunião inaugural, realizada no dia primeiro de julho deste ano, recebeu pronunciamento por escrito do secretário de estado da Cultura, reconhecendo o Fórum e se dispondo a apoiar a iniciativa. Isso demonstra a força da união e da organização de um grupo em torno de objetivos comuns. Quando pensamos juntos e colocamos nossas idéias em movimentos de troca, a dança ganha e Alagoas também.

Que, em nossos festivais, possamos festejar a responsabilidade dos “cidadãos da dança” em interferir na criação de possibilidades de desenvolvimento da arte em nosso país!

REFERÊNCIAS

BRAVI, Valeria C. Um olhar sobre a incorporação estética do movimento: dança cênica, São Paulo/1991-2001. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da USP. São Paulo, 2001.

XAVIER, Jussara. A política da dança nos anos 90 em Florianópolis. www.idanca.net (síntese da dissertacão desenvolvida no Mestrado em Comunicação e Semiótica – PUC/SP, concluído em 2001).